30 de julho de 2012

Felicidade

do inconsciente: ler.
da transferência: ler junto.
da pulsão: fazer ler.
da repetição: traduzir.
do sexo: re-citar.
do consciente: ler só o que é para ser lido.
do id: ler com a língua mais arcaica.
do eu: ler pau-sa-da-men-te para prender a forma.
do super-eu: ler dentro da língua normal.
do instinto: ler e entender.
da libido: ler e subetender.
do eu ideal: ler a língua normal.
do ideal do eu: ler em outra língua.
do complexo de édipo: ser gramática.
do incesto: ser sintaxe.
do pai: ser morfema.
da mãe: ser fonema.
da criança: aprender a ler morfossintaticamente.
da histeria: ler o mistério estéril e não saber (ins-/es-/des-)crever mesmo assim.
do neurose obsessiva: ler tudo o que é legível sem situar o que é lido em si.
do psicose: tentar ler a língua sem códigos e conseguir ora sim, ora não.
do perversão: ler os grafos primordiais para poder reproduzi-los em uma língua amorfa.
do chiste: ler o que está escrito.
do ato falho: ler o que não está escrito.
do sonho: ser estilística.
do sujeito: ler sem ser objeto.
do objeto: ser lido sem ser sujeito.
do outro: ler sendo sujeito e objeto.
do Outro: ler lá.
da demanda: saber ler.
do desejo: ler e saber que lê.
do sintoma: ler para saber que lê.
do sinthoma: ler sem saber que lê.
da angústia: não saber o que ler.
do gozo: não saber o que lê.
do real: ler o pronome.
do imaginário: ler o nome.
do simbólico:  ler o verbo.
do significante: gaguejar ao ler.
da metonímia: ler aquém.
da metáfora: ler além.
do nome-do-pai: conseguir ler.
da foraclusão: não conseguir ler.
do espelho: formar palíndromo.
do falo: ser palavra.
da Lei: ser letra.

em tempo:
do analista: ensinar a redondeza das palavras.
do analisante: aprender a escrever.

27 de julho de 2012

(das poucas tristezas do vegetarianismo, a maior é o pouco caso frente aos frangos e aos peixes. sempre recebo um rosto de espanto contido quando digo que sou vegetariano. rosto maior quando respondo que não "come nem frango? nem frango. nem peixe? nem peixe". que pobreza de pensamento incita a considerá-los tão menos quanto o boi? por que tão descartados assim da categoria carne? seria a falta de sangue vermelho para deixá-los menos brancos? sangue é qualidade do que é animado?)

24 de julho de 2012

Poesia de dicionário

queixume
s.m.
lamento; ai; suspiro.

(priberam.pt)

23 de julho de 2012

Não sei escrever para fora

Dona Maria, senhora de suas idades, preta das boas, viúva desde a mocidade. Gorda. Largada com três filhos, homens de dar gosto, que moravam na cidade grande para tentar uma vida fora da roça. Varria o alpendre todas as manhãs; gostava de recolher as folhinhas e as formigas amarronzadas mortas por conta do veneno batido na noite anterior. Prendadíssima. Preferia de ser chamada de Domaria, “pra não ter que dar muita volta com a língua”.
Casou virgem com um zé bom-copo qualquer que prometeu amor à mão e casa. O amor nunca veio – “veio foi o desgosto no lugar” –, mas a casa castigada pela chuva ainda se manteve. Sentiu, no começo, um apreço pelo marido. Enquanto o homem não estava trabalhando na roça, fazendo coisas de macho – tocando os bichos (enquanto ela arrumava a casa), cuidando da terra (enquanto ela preparava o almoço), fazendo cerca (enquanto ela cerrava humilde as portas dos poucos cômodos da casinha) –, bebia até ver sua preta branca. E com a boca com gosto de água ardida, cuidava dos fundinhos de Domaria, "sempre tinha um bichinho no matinho para cercar"; experiência tão quente que era o mesmo que esquentar a barriga no fogão. Tão bonita se sentia quando era cuidada que se sentia árvore forquilhada por semanas.
Um dia, o marido morreu. Virou-se para o lado quando descansava depois de comer o arroz-com-feijão, disse “Vou-me embora, preta. Não volto, mas você dá conta” e fechou os olhos. O veneno das formigas. Depois disso, só rancor. “Me largou com a barriga cheio de menino, sozinha, sem homem e dinheiro para dividir o gás. Nem deu tchau direito”. E punha a mão no peito gordo, sentindo a falta do homem que jurava amor com a língua mais doce, a cabeça mais alta, o riso mais frouxo.
O dinheiro do sustento chegava por meio de um vizinho manco, sempre meio assustado, sempre na pressa. Dava porque estava “pagando aquela dívida com o seu falecido marido”. Entregava o dinheiro, olhava no relógio de correias de couro velho e saía com o passo apertado, sempre despedindo até-mais-ver-Domaria. Ficava encabulada a preta, mãozinha gorda no queixo. O homem tinha lá os seus mistérios, mas nunca faltou com o pão, nem depois de ter partido.
Na gravidez, parecia que carregava pedras na barriga, que “de tão pesada, vai parir criança já adulta”.Os filhos, quando nasceram, foram todos de uma vez, “benção do Senhor”. Quando viu os três pretinhos, todos iguais, pensou que era praga do velho por não ter derramado a caninha que ele tanto gostava no caixão afundado na terra. “A vontade dos mortos é a desgraça dos vivos”.
Criou os filhos como quem cria animais domésticos: dava de comer, dava de beber, dava onde deitar. E assim foi até os três, um dia, sumirem. Domaria, aflita, comentou com o vizinho manco sobre as suas crias. “Foram pra Cidade, Domaria. Cansaram da roça e foram atrás de emprego e moça bonita”. Então é assim?Chegada a hora de ir, vão-se embora, sem dar tchau, igual ao pai? Sem dizer que ama a mãezinha? Que vão morrer de saudades e que, quando estiverem ricos, vão voltar para consertar a pia da cozinha, a caixa d'água, o encanamento podre do banheiro? Então é assim?
Chorou dias seguidos, até enrugar o canto dos olhos e da boca. De tanto desamor, criou casca dura de planta triste. Só a espera para fazer companhia.
Para o morto, acendia uma vela de sete dias no cantinho da sala, o copinho americano ao lado, cheio da água que ele bebia com tanto gosto. Para os filhos, dedicava mais amor: limpava a casa toda com bucha amarela – guardava as esponjas velhas em um saco plástico transparente, “para não perder a conta” –, esfregando parede, chão, louça, mobília. E assim, quando cansava de “arrumar a casinha” para o retorno dos filhos, cortava as buchas em cubinhos e fazia almofadas com restos de panos velhos para enfeitar o sofá vazio tão preenchido com a ausência dos filhos em seus respectivos assentos.

17 de julho de 2012

como se o dia fosse lido, o texto olhou.
recolheu, copiosamente, palavras que por ventura vinham ao corpo; autonomia alguma o re-tira do lugar do nome. autonome joão-bola, fechando-se em torno do nome contornado pelo verbo.
em ato girante e insíginia, disposto à passagem, de nome furado se fez o texto.
e, furado, anoiteceu: para se escurecer, o texto abriu aspas "e gozou pelo enquanto, até repetir o dia, que foi olhado como se fosse lido". na luz, abriu-se o texto para a falta, sempre a repetir os mesmos nomes gastos que o verbo assi.g.nou para se fazer fala, habitando, por instância, o lado preenchido do descurso.
do infinito ao adiante, da dianteira à origem, o texto perdeu os traços suspensos e pôde gozar do Outro lado.

16 de julho de 2012

o relógio age sem pressa. alongam-se os ponteiros respirantes. o braço percorrido se estica nas casas que margeiam a rua escura das horas findas. pousa o dedo no pó do tempo a hora: faz-se milagre entre o silêncio sem cor e a noite da fala aquarelada.
estando a luz ausente, o pensamento obliquado pela memória, o corpo quente que não cede ao sono, resta desejar que não haja barulho para atormentar a vigília do que vigia (aquil)o que dorme.