18 de maio de 2013

seu p. é meu vizinho. mora no terceiro andar. eu, no segundo. já é um senhor de idade avançada. quando pequeno, frequentei muito sua casa, era amigo dos filhos de uma empregada-amante que ele tinha acolhido. tinha um opala 71 verde-musgo-cinza-escuro, que apelidei secretamente de 'banheira', e que fazia um sucesso danado quando nós todos (ele, a empregada-amante, os meus amigos filhos da empregada-amante e eu) íamos para um bairro pobre e distante visitar um parente qualquer dela. um dia, ele brigou com a mulher porque ela, pobre, estava roubando algumas miudezas da cozinha para constituir sua própria morada, colheres, garfos, facas, panelinhas. deu até polícia. aos berros, gritava, devolve as minha colher! ela, desentendida, peguei nada não!, ques colher? e ele a encurralava na parede, prensando e irritadíssimo. no final da história, ele desistiu da acusação, os policiais foram embora. ela ficou morando por mais alguns meses, foi embora dizendo que estava cansada do velho difícil. hoje, ele mora no prédio porque ganha causas jurídicas executadas em ordem de despejo por falta de pagamento de água-luz, causas ganhas por a) ser velho, b) não ter para onde ir e c) não ter renda além da aposentadoria. o apartamento dele é, na verdade, de sua ex-mulher - que é a proprietária legal do imóvel - que às vezes paga as taxas do condomínio por misericórdia. nos nossos encontros breves da vida cotidiana, cumprimentos vão entre os degraus da escada: bom dia, boa tarde, boa noite. eu, sempre numa pressa descabida, ele, na vagareza das suas idades e cabelos bem modelados na calvície profunda e brancos. demora nos seus passos, nas suas falas, nos seus gestos. quando me cumprimenta com a sua voz grossa: bom dia, os olhos continuam cumprimentando, bom dia, o corpo, bom dia, eu, tímido, preso à pressa, bom dia, como vai o senhor? tudo bem. tudo bem nada. seu p. vai mal da saúde, faz cirurgias inúmeras, já o vi sentado nos assentos da fila de espera de atendimento do hospital universitário, sempre com o ar grave e a felicidade recolhida na voz, nos olhos, no corpo. corpo que já se vai, mas não tão já. nunca o vi em plenitude, mas o tempo de fato serviu a afirmar que não há plenitude. uma vez, disse que fez uma cirurgia. espiritual. espiritual? é. agora eu fico bom. que bom. e tinha até melhorado, apesar de prevalecer a vagareza, aquela frase, a maior tristeza da velhice é que não se envelhece. nas minhas insônias, me abro a escutar a noite, os barulhos: o caminhão de lixo na sua hora da baleia (os mecanismos de armazenamento do lixo rangem, emitindo o som oceânico e profundo), a correria da diversão dos gatos pela minha casa, barulho de patinhas e garras sendo raspadas no chão de madeira de verniz já desgastado, alguma música distante, amorosíssima, saída de algum buraco nostálgico que não cabe no hoje, e, o mais importante, rangidos altíssimos de mobília sendo deslocada no andar de cima, seguido de passos firmes e fortes. meu vizinho não dorme, é certo. sempre tive curiosidade pra saber com o que ele se distrai nestes dias. o cheiro de parafina derretida me confirma as devoções religiosas, a luz recortada nas persianas de seu quartinho-altar me revela o hábito das velas acesas, quartinho que me lembro sagrado desde a memória de quando transitava naquela casa, quartinho que ninguém além dele pôs o pé. agora, estes barulhos, estes barulhos são novos. até que, num dia desses, encontros breves nas escadas do prédio, bom dia, como vai o senhor?, fingi intimidade, perguntei: ouço muito sons vindo do seu apartamento à noite, quando todo mundo já dorme, o que o senhor faz tão tarde da noite? e ele, sorrindo voz, olho, corpo, respondeu largo: eu danço.

2 de maio de 2013

vem cá | pega na minha mão | devagarinho | só pra dar um romance | à cena | ou | pega na minha mão | de levezinho | só pra ter uma cena | neste romance | vem cá | pega a sua mão | põe aqui também | me ajuda a abrir | esse verbo tão caro | acena o romance | devagar | vem cá | me dá sua mão | de vagar | na minha mão | tão bem | leve | me dá sua cena | põe na minha | mão mãe | esse romance | tão outro | vem cá | me dá um romance | me ajuda | abrir devagar | esse verbo amor |  meu caro