17 de dezembro de 2013

vóz iii

sobre os prazeres da vida, dizia: não tenho mais. quando eu ainda tinha saúde, fazia o serviço de casa, não me humilhava por conta de empregada. cozinhava, lavava, limpava. não sei se gostava, mas seu avô gostava, então por mim estava bem. mas o tempo passou, os médicos proibiram as poucas alegrias que sobraram. mas o pior foi com a comida. culpa da diabetes. até aquele doutor novo, bonitinho, que me acompanhou por último (levou uma bronca por conta da pressão alta e dos possíveis ataques cardíacos), falou que eu não posso com açúcar. não como mais nada: pão, rosca, pão-de-queijo, arroz, batata, sobremesa: só de vez em quando. café, por exemplo, só com adoçante. mas não contei pra eles que aqui em casa tem uns agrados - e não são só os mineirinhos na geladeira - que são meus e dos netos. deixa eu te mostrar. sobe nessa cadeira pra você ver (apontava para a cadeira próxima à escrivaninha). em cima do armário. (eu subia e pegava um saco cheio de sonho de valsa). acho uma delícia.

16 de dezembro de 2013

respiração (nome), movimento duplo dos pulmões: inspiração, expiração.
nariz (nome), orgão sensorial, sentido do olfato; narina; cheiro, essência; usos incomuns: qualquer objeto proeminente; algo óbvio.
pulmão (nome), orgão leve, de pouco peso. diz a lenda que o caçador, ao jogar o pulmão do animal abatido em água, o via flutuar, enquanto que o coração e as vísceras, pesados, dirigiam-se ao fundo.
ar (nome), atmosfera, ambiente que circunda o céu; fluido gasoso.
vento (nome), ar em movimento; sopro ao se falar.
hale (verbo), conjurar, invocar ou evocar; levar algo ou alguém de uma certa condição à outra. em inglês medieval, tensionar cordas (flechas em arcos, rédeas em animais, nós em âncoras).
inhale (verbo), respirar para dentro; uso não-costumeiro: comer rápido.
exhale (verbo), respirar para fora; evaporar.
hale (adjetivo), livre de injúrias (uninjured), íntegro (entire), aproxima-se de saudável (healthy) e inteiro, completo (whole).
breath (nome), odor, essência, cheiro, vapor (vapour remete à fraqueza ou ao padecimento ocasionado por algum choque).
breathe (verbo), respirar; cheirar.
spirare (verbo), respirar, soprar, respirar-fundo; estar vivo, ter inspiração.
respirare (verbo), soprar (em direção contrária); respirar-de-novo (o movimento duplo? a calma depois da tormenta?), recuperar-se do medo, tomar fôlego.
aspirare (verbo), inspirar pelos pulmões; estar favorável a, assistir (auxiliar), almejar, alcançar, buscar êxito, infundir; inflar(-se) de sentimentos e emoções
expirare (verbo), expirar pelos pulmões; passagem, último-respiro: morrer.
halitus (nome), hálito (o ar), hálito (o cheiro), bafo (o ar), bafo (o ato: bafejo), sopro.
spiritus (nome), respiro, sopro gentil de vida, inspiração, disposição; orgulho, coragem, vigor, arrogância; = princípio vital (anímico?) dos homens e dos animais.

um poeminha:
seus pulmões
vejo você de costas: sobem e descem
vejo você em arquejo: sob-des
vejo você dormindo: sobem. descem.
vejo você em movimento: sobem-descem-sobem-descem
vejo você assustado: sob
vejo você em euforia: sobemsobemsobem
vejo você falando: sobem, descem,
vejo você em tristeza: sobem. descem. e descem. e descem.
vejo você soluçando: so.bem,  des.cem
vejo você feliz: sóbem.

uma prosinha:
me concentrei na linha dos seus ombros, tomei o limite do espaldar da cadeira em que você se sentava - eu estava atrás - e as oscilações da sua blusa como eixo, acompanhei seu corpo por minutos, os ruídos da sua respiração, as desordens e as tréguas que os efeitos da postura persistente traz, abandonei minhas pequenezas pela sutileza deste ato, tentei decidir minha vida com pressa (como quem se livra de mais um compromisso da agenda), não consegui, concluí desvairado: estou apaixonado por um traço.

15 de dezembro de 2013

está o estrangeiro furioso por não ver humanidade em rosto alheio que não consiga reconhecer a si mesmo seja em olhar seja em fala e se ri louco dos paraísos tristes que vê pela janela ao se encaminhar a um local de passados e margens mal delineadas de memória declarando que

pedra alguma é suficiente para se dizer eterna por mais atemporal e perene que a dança molecular faça a solidez restando à pedra ser somente pedra e pedra em seu espaço de pedricidade ou animal algum atende ao chamado que lhe é dirigido apenas por hábito mas por evocações superiores de designador que lhe serviu de batismo se existencial ou essencial cabe a quem o chame resolver ou homem algum se diz falante autorizado sem mortificar a própria história

reflexão alguma vale as certezas centrais de sua vida por mais bem construídos que sejam os argumentos não há deslocamento quando se trata de crendice articulada nas firmes premissas de que harmonia não é calmaria reconhecimento não é aceitação passagem não é transição esquiva não é recusa e júbilo ao se repetir em suas máximas até que todas sejam uma só ato não é fato ato não é fato ato não é fato

elevadores filas assentos espelhos utensílios e esquecimentos cotidianos não são alteridades dignas de serem consideradas como tal e dignas é tomado aqui como conduta moral de se elevar o outro a mesma condição de si mas que elevadores filas assentos espelhos utensílios e esquecimentos cotidianos são planos quaisquer imanências duplas captação e apreensão da mesma percepção genuína que o configura como profano e santo e portanto sexuado e descontínuo.

12 de dezembro de 2013

hermeneuta afetado em r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r de e.e.cummings

o poema. a impressão primeira é de que se trata de um poema cujo acesso é impossível. mas assim que se entende a operação acerca da criação e da estrutura factual que subjazem à obra, a prevalência lúdica do texto (que poderia muito bem ser taxado como infantil) dá espaço aos desfechos éticos que metonimicamente auxiliariam na configuração estética de escritura.

DA EXPERIÊNCIA
é tido como fato (se real ou ilusório, não cabe a discussão) que o poeta está a se concentrar (a esperar pela inspiração, alguns diriam) em seu quarto ou seu escritório, em frente à máquina datilográfica, em uma casa localizada perto de uma região de mato grosseiro no interior americano ou europeu, em um dia ou uma tarde ou uma noite quente de verão, mantém a janela aberta para se aliviar da sensação abafada que o clima veranil traz. é então surpreendido pelo animal invasor - o qual adquirirá por metáfora o mesmo valor de 'poema', metalinguagem fatídica - que se empenha estupidamente a girar e bater em torno da luz (que supõe-se também ser elétrica e se localizar próxima ao teto). tomado pelo susto de ter seu aposento antes calmo e aconchegante atormentado por um grotesco inseto em momento tão precioso, o poeta visa o teto a tentar identificar o objeto saltador que emite sons estranhos. juntando o estranhamento mais o esforço identificativo, a experiência do novo versus a cognição aplicada em vislumbre de categorias já comuns, acompanhando o voo do tal inseto que, ao pousar, num grande avanço ou salto, é nomeado: gafanhoto. um sorriso tranquilizante possivelmente se esboçou.

DA CRIAÇÃO
passada a tormenta, bonança: assim, a tal da idéia vem, ou não, e o poeta o consagra então como objeto de sua pesquisa poética. de início, vê-se, no primeiro verso, o movimento desconexo do gafanhoto (experimente ordenar as letras em "grasshopper" para consolidar a experiência estética com o saltear dos olhos em juntas as letras), seguido dos sons oriundos dos baques e pousos deste insetinho tão querido em sua oscilação (experimente pronunciar as letras separadamente para consolidar a experiência estética com o som primitivo dos fonemas exilados). tomado pela estranheza, who. dirige-se ao teto, para a luz, as we look up. busca identificar (gathering into) o inseto, PPEGORHRASS. não consegue, mas o movimento de pouso é ensaiado (a leap, as arriving), tornando o borrão sonoro (gRrEaPsPhOs) próximo às categorias de conhecimento da realidade; animal pousado, nome atribuído: grasshopper. linearmente rearranjando e matando a estrutura tipográfica do poema, tem-se: r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r: who? as we look up now gathering The PPEGORHRASS into a leaps: arriving: gRrEaPsPhOs: to rearranginly become: grasshopper.

DA ÉTICA
explicado o processo criativo e seu desfecho formal, resta a ética do poema e sua escritura. o animal, encarado aqui como totalmente outro, aparece em dois níveis: o experimental e o factual. ambos se cruzam como fenômeno, mas a alteridade é primária e pedra angular. em relação à experiência, pode-se afirmar que o poema eticamente adentra ao campo do humano por meio de uma aproximação tão costumeira do que é chamado de perspectivismo, mas aqui com uma particularidade: há, desde início, uma questão apontada no campo da criação, a saber, os recursos tipográficos para a formulação desta iniciação do animal aos subjetivismos do humano. não que não se tome o animal como sujeito (a ciência o faz muito bem), mas aqui ele comparece primordialmente como um outro em sua dessemelhança física, mas unicamente humano. enquanto fato, o animal sempre será doméstico (não há aqui confusão entre o doméstico e o domesticável; este se apresenta como dado a ver, primordialmente escópico. o doméstico, por sua vez, é concebido pela externalidade do que é intimamente próprio ao sujeito homem), independente de sua liberdade. o interesse como outro diz respeito à possibilidade de concebê-lo como não-eu, atendo-se à corporeidade distinta, mas em uma comunhão cosmológica primitiva. a experiência do estranhamento e seu subsequente nomear é uma boa ilustração do deslizamento da distinção desumana e anônima em convergência à aproximação a uma fraternidade comum, uma espécie de irmandade totalizante. tipograficamente, as letras maiúsculas, as pontuações que interrompem a frase, as rupturas morfossintáticas (nem sempre nas divisões desinenciais) das palavras, o espaço (e a forma do gafanhoto, se houve força imaginativa para ligar os desenhos das letras isoladas), a distância, em suma, os recursos formais da experiência de domesticação apontam à tese central do poema: o animal, sendo outro, preserva a estranheza das naturezas originárias e a familiaridade do laço humano.

7 de dezembro de 2013

que vem, que chega, que volta, que se faz a cada ano.

3 de dezembro de 2013

vóz ii

devido à distância próxima ou à proximidade distante, as visitas que eu lhe fazia aconteciam poucas vezes por ano; quando ela se acidentou (subindo as escadas que ligavam a cozinha à sala da televisão), fraturou um pedaço da bacia. a mobilização das filhas, o desespero momentâneo, alvoroço e horror à possibilidade de "ser agora" (quão inédita é a morte?). um acontecimento que não sei bem como de fato foi e que me foi tardiamente informado. numa das minhas visitas, sua narrativa (macerada por minha memória e criação) ao ser perguntada sobre o que aconteceu: estava indo para a sala, quando um lance, uma tontura, uma confusão (tinha labirintite "e suas vertigens") me tomou; caí. ficou tudo branco. o tempo parado. eu parada. esperando socorro. tentei gritar, mas não saía nada. muita dor. até que então eu vi que estava bem acompanhada enquanto esperava alguém aparecer e me acudir: no canto da sala, a morte. olhando bem de perto o fundo dos meus olhos. a um palmo de distância. nos cumprimentamos.

depois, um desgosto particular se arranjou: nunca mais pôde ir à cozinha da própria casa.