24 de abril de 2014

detesto a leitura em voz alta de poemas.
detesto o tom de importância dado
a cada palavra pronunciada.
detesto a cadência e a decadência
de um verso saltado a outro.
detesto os olhos a acompanhar o fio do percurso
– e suas molduras de sobrancelhas em seleções
e arqueios de passagens ensaiadas, ganchos pensados.
(adoro os lapsos, os gaguejos, o nervosismo).
detesto o silêncio consentido do outro
para que enfim se performe o poema
e seja revelado um sentido
ao pé da letra ou ao pé do poeta.
detesto a modulação da voz de acordo
com o surgimento proposital dos jogos de linguagem,
sinalizando a esperteza, o espírito.
detesto a atmosfera cerimoniosa de vibração muda,
silêncio comunicativo, oxímoros vãos.
detesto a arrogância da leitura findada
e o pousar do texto nos ouvintes, teatro da sensação:
mãos recolhidas, queixos para o teto, para o chão,
livro fechado: todos meio abobados,
insinuando profundidade e meditação.

20 de abril de 2014

mímesis

mapa algum condiz com a fatal realidade do terreno, mais incondizente é se considerarmos seus andantes a alterar o ambiente em suas peregrinações. mapa algum é capaz de cartografar estas interferências. do terreno, podemos tomar apenas a via sensível para apreendê-lo; se sua representação o mente, que dirá o próprio leitor do mapa? que se trata de um falso registro? falso é o afeto que nos media, falso é todo passo dado; a única verdade verdadeiramente verdadeira é aquela que sucumbe à virtude do olhar para a paisagem e afirmar que: sim, há aqui um limite que justifica este tracejado virtual correspondido no mapa. mas sobre este limite: o que podemos afirmar senão que há uma ruptura fundamental entre aquilo que olha e aquilo que é olhado, "o disparate entre o significante e o significado", o amor e o saber? sobre este limite, quem o olhe que o imite.

19 de abril de 2014

des(velo;leixo)

1. grande cuidado, zelo, preocupação, dedicação, vigilância em relação a algo ou alguém. pode se referir em metonímia ao objeto/situação/pessoa.
2. ato de ruptura com o véu, expondo e fazendo conhecer; ato de pôr(-se) à vista. metaforicamente, lançar luz, tornar claro, elucidar.
3. ato de privação de sono em nome de uma vigilância; ato executado com empenho e diligência.

1. falta de atenção, de apuro, de trato, de esforço, de ânimo, de atividade.
2. ato de descuido ou abandono de si ou do outro por negligência, preguiça, indolência, inanição.

que a distância não nos torne descampados selvagens,
que a unidade não nos isole em solidezolidão,
que a proximidade não nos confunda em alteridade.

15 de abril de 2014

não sei escrever para fora IV

meu nome hoje é vários, lixeiro, gari, coletor. comecei a rodar de lixo quando quase morri lá no aterro, minha casa é o lixo. lá eu era catador. uma vez chegou o caminhão pra fazer o despejo, bobiei, fui soterrado. falaram que iam me dar o emprego pra eu ficar calado. fiquei. ganhei uniforme, luva, bota. comecei a rodar. conheço a intimidade de todo mundo, da cidade toda. o que eu pego é lixo, o que ninguém quer saber, só quem chama lixeiro, gari, coletor, catador. conheço vocês todos mais do que qualquer doutor pago por aí. o que você usa e joga fora tem boca, hein? pois se eu conheço o lixo, conheço gente, toda a minha classe é especialista em gente, desbanca muito engravatado, muito psicólogo, psicanalista. o meu lixo, por exemplo, eu solto já lá no aterro, aquele oceano. daí meu lixo lá, misturado com o de todo mundo, privacidade, ninguém me conhece, a não ser por ser o que quase morreu na avalanche e que ganhou emprego. então, comecei a rodar, ainda bem que virei lixeiro, se fosse catador, iria endoidar. o lixo da rua é só o ouro, fresquinho, tudo de primeira, muita coisa diferente aparece, o caldo-chorume ainda não começou a feder, ninguém mexeu muito, tudo nos sacos ou nos containers, o paraíso. mas como meu trabalho é pegar e pôr no caminhão, deixo pra mexer pouco. as pessoas não sabem o que é pra ser descartado, fico doido, agora eu quero ver é com essa coleta seletiva. dia do seco, dia do orgânico, dia do pai, da mãe, dia da família, o caralho. a seleção mesmo é nossa, de quem é do lixo. quero ver quem aguenta esse programa, quero ver os doutores selecionando, ainda mais agora que tá ficando cada dia mais difícil de separar se é lixo o que tá na mão ou tá no chão. quem é do lixo é por falta de condição de vida melhor, tudo sem estudo mesmo, mas já ouvi dizer que igualdade e dignidade é pra todo mundo. sei não. nesse programa de coleta seletiva apareceu caminhão novo, todo cheio de adesivo do nosso governo, "trabalhando juntos", imagina só os doutores correndo atrás de lixo e de caminhão que nem a gente, inclusive o caminhão todo boiola da coleta seletiva. o programa começou sem campanha nem nada, ninguém falou pras pessoas das datas que o caminhão roda, nada. e aí eu pergunto, quem é que seleciona? ninguém quer saber de ficar separando lixo seco de molhado, a seleção é nossa, não teve campanha, nada, só caminhão novo rodando, e aí?, como é que faz pra separar lixo se ninguém ajuda?, tem que vir doutor-de-gravata da universidade falar na televisão? de quando era lixo misturado gostava mais, só pegar e colocar no buraco da prensa, é acostumar com cheiro, por a luva e tomar cuidado pra não se cortar ou não pensar que é lixo também e deitar na boca do caminhão. tem gente que quebra e não embrulha copo, prato, lâmpadas, prego, parafuso no jornal. já vi de pilha a aliança de casamento. é mole? aí fica difícil. mas o caminhão novo, da coleta seletiva, tem uma novidade: colocaram um alto-falante na frente, uma musiquinha como se fosse circo. aí é palhaçada com a gente. a seleção já é nossa, chegar nos pontos, a musiquinha feliz toca, quem tiver com luva se dá bem, quem não, amém, é furar o saco com o dedo e rasgar puxando, ver mais ou menos pelo cheiro e pela água, fedeu muito, babou, molhado, deixa pros cachorros, pros gatos, pros mendigos, agora, seco, é da coleta, seleção nossa, "trabalhando juntos", o circo da coleta. caminhão de boiola do caralho, doutor-gravata devia ir lá ver a cachoeira de caldo-chorume do caminhão no aterro. é fácil me botar pra mexer, moro no lixo, sou do lixo. quero ver é daqui vinte anos, quando o aterro criar perna e começar a bater na porta da casa dos engravatados. quero ver minha casa se misturando com a dos doutores, ninguém nem aí pro lixo que é descartado e pro lixo que a gente é. quero ver, quando o lixo ficar bom mesmo pra não precisar de caminhão, quero ver o tamanho da minha casa, quero ver o aterro vai invadir a cidade, quero ver eu morando com o caralho dos doutores-boiolas que inventaram esse lixo de coleta seletiva

13 de abril de 2014

fenomenologia do branco

este branco se contrapõe a qualquer possibilidade de significação do texto; este branco mostra a vasta circunscrição de si em suas mediações entre cada seta a apontar sentido; este branco demarca irreversível o trajeto a ser percorrido pelo leitor em busca; este branco vem à mente como esquecimento inédito ou novidade rememorada; este branco encerra todos os signos da linguagem, menos os aqui escolhidos; este branco alterna silêncios com a obra que cria; este branco ocupa o que está sobre tudo; este branco é o negativo do senso.