27 de maio de 2014

duplo

situa-se oposto à percepção, espécie de avesso denegrido, real e sem ponto de imagem. encontra-se pareado às identificações que só são acessadas por imaginação, autêntico lado de verdades singulares, inversão de si muito além de direita-esquerda ou curvatura de espelho. habita os cantos do desejo, tal qual os vergonhosos e nossos demônios, mas de outra natureza: é mais louco, tem o mesmo tamanho das expectativas do mundo, e, no escuro, solta fumaça pela boca sorridente com certeza de que a vida, a vida é uma papel amassado e devidamente desprezado.

24 de maio de 2014

convite

os afetos empoeirados dos bichos de memória se intercalam com o enquadramento da janela e a luz suja que a atravessa: perenes aranhas, traças e cupins guardam o tecido vivo da tranquilidade decadente da casa fechada. as dores atualizadas dos antigos moradores não fazem mais jus aos fatos que lhe serviram de causa: passados os aborrecimentos que a vida compartilhada implica, restaram apenas as rachaduras do piso hidráulico. as flores plásticas já desbotadas de sol e o calor absorvido pelo mármore marcam o tempo de horizontalidade do casal mais bem chorado da cidade - hoje, residentes da quadra onze, corredor quatorze, recebem familiares e amigos para comemorações e reflexões acerca dos alvos do nascimento e seus marc's implicados em estrelas e cruzes.

18 de maio de 2014

rosto largo de natureza e cansado de circunstância. olhos silenciosos em supercílios inchados. nariz farto. boca bem desenhada e de cores amarronzadas. barba mal raspada e já esbranquiçada no pescoço. estatura mediana, mas muito bem distribuída entre os comprimentos dos membros e as larguras do tronco. pele queimada de desleixo e virilidade. braços e pernas roliços e rígidos. pêlos do corpo já ralos. espessura dos dedos das mãos a indicar outras espessuras. quadris de exímio talento. nádegas bem delineadas. joelhos escurecidos de quem não se importa. pés amplos a pisar o chão sagrado do mundo. roupas de pouca vaidade. pai de pouca lei, mas muita presença. compostura de bom macho. elevado ao nome do amor por uma mulher desprezível. cigarros fugidios nas noites de domingo à meia-luz de seu quarto. aparentemente sem camiseta, sem pudor e honra. a fixar soturno o rosto em qualquer paisagem, distraído de sua vida: seduz e reduz a um quadro erótico qualquer o homem do 302.

10 de maio de 2014

bercholina atendia ao sino que minha vó, acamada, tocava. chispava a gente da cozinha, mas adorava nossos abraços de misericórdia à sua feiura.
toinha me ensinou a fazer comida, limpar, varrer, passar, dobrar. me batia com chinelo.
maria fazia comida mais gostosa na própria casa (fritava bolinhos-de-chuva, punha louro no feijão). surrava os filhos por qualquer coisa.
antônia era completamente imatura: me ensinou a roubar no supermercado e levava a sério meu desvario de criança.
mara se deixava enganar por mim. arranjou um paquera no chat da uol e ficou horas no telefone de casa. foi demitida no dia seguinte em que a dedurei.
linda era discreta, mas soltava o gogó com o rádio ligado. era evangélica e se escondia por trás de deus.
rita era a mais querida pela família. chupava e rodava a dentadura na boca após terminar de comer dispensava o palito de dente sempre.
maria josé parecia um passarinho de tão frágil. gostava de ver televisão e se impressionava fácil com os noticiários.
ubaldina varria o chão com força. era muito desbocada, o que divertia meu avô. fez um caldo com o zézinho.
abadia fumava séria no pé da escada da cozinha, "tirando uma fumacinha".
mirena era muitíssimo amada. contava histórias do filho que fazia enfermagem e do marido que era caminhoneiro. chorava escondida de saudades.
ana se diverte com as desgraças da vida alheia e sabe conversar sobre ônibus como ninguém.

6 de maio de 2014

terrível inseto alucinado que me pousa e me coça por meio da etiqueta mal cortada de minha camiseta, terrível inseto alucinado que me escolhe como obstáculo irrefutável de seus caminhos imaginários, faça de mim presa e predador, apesar de minha brusca resposta em busca de seu corpo: que seja a mais exuberante das baratas aladas, o mais monstruoso dos besouros, a mais asquerosa das moscas de esgoto, o mais alvoroçado dos maribondos, a mais tormentosa das mariposas escuras, o mais gordo dos pernilongos, a mais louca das libélulas, mas, pelo conforto dos costumes e ajustes normais à realidade, que seja concreto, firme, tátil, real, à altura e ao alcance de meu susto e constrangimento.

3 de maio de 2014

a grávida, elevada ao sagrado da mulher, goza por ser a criminosa mais intangível pela lei. na promessa de ser mãe, encarna o suicídio trasvestido de completude suposta, morte mais romântica que qualquer devoção. ela e seu feto, a santa e a sua virgindade, mostram ao mundo o único incesto autorizado - e, como pagamento desta subversão, escolhe morrer por alguns meses ao instalar um ralo dentro de si. a grávida é vista como a fetichista que guarda sua tara na bolsa, masturbando de modo involuntário sua barriga volumosa com os olhos públicos. temporariamente foragida de toda justiça ainda que encarcerada ao seu destino de mãe, a glória da grávida está contada nos meses de gestação, sucumbindo à tragédia que é, não só nascer para o filhote, mas, para a leoa, parir. a partir de então, os dias da grávida (nova mãe) serão marcados pelos desafios e pelas ambivalências (quando não pelo arrependimento) da maternagem e pela solução errada em sua tentativa de resolver a equação de feminilidade e maternidade. daí que, obscenidade lógica levada ao extremo, a única demonstração de amor objetal puríssima de uma mãe para com seu filho é não concebê-lo: se o concebe, é por um (in)feliz engodo: escolha espontânea e/ou forçada, absoluta e/ou individual.