29 de junho de 2014

Unheimliche

a toalha suja, a letra de forma, a incapacidade de pensar, os longos momentos de silêncio, a cortesia nos tratos às pessoas circunstanciais, a garrafa de água no quarto, a dormência do braço e a dor no punho direito, o refluxo criativo, o excesso da satisfação fisiológica, a iluminação precária, a paz infernal da rotina, a saudade, as descargas culinárias, o trono temporário nos ônibus, o maço de cigarros vencidos na gaveta, o dia em que esqueci como se reza ave-maria e pai-nosso: nada se torna quando ainda não partiu.

26 de junho de 2014

em dia de milagre, é preciso credo. sem sacolas, cabelos livres mas ordenados, olhos limpos, a rainha. firme e guiada, vestindo azul e manta branca, sapatos nos pés certos, purificada e sagrada virgem do mundo, segue tranquila pelos estacionamentos das comerciais. linda. dando a mão em bênção e cumprimento a todos que se aproximavam (rapidamente, numa tentativa ajustada e falha) de entrar no próprio carro e seguir sem tormenta, desavisados da normalidade dos fatos. no céu paira uma mensagem não anunciada por nenhum mensageiro: "vênia, mundo, que a Mãe passará". não é preciso preparo para a salvação, mas que susto: todos sabiam com mais força ou menos força que Alguém viria, contavam com o filho, com o pai, mas a Mãe?, ninguém foi informado. rainha de azul e branco se fez santa, pisando leve, sem história e determinada. ao existir, removeu a transparência das pessoas com fé, deu ao mundo o tom maior de incêndio e ordenação, caos particular e social, de suas religações totais do ordinário da vida com o mistério de seu sexo. ave!

20 de junho de 2014

ambíguos são os estados designados pelos verbos de ligação: permanência, transitoriedade, mutabilidade, continuidade, aparência. ambíguas são as ligações designadas pelos estados de verbo: firmamento, disrupção, certidão, deselegância, condição. ambíguos são os verbos designados pelos estados de ligação: ser, viver; estar, andar, achar-se, encontrar-se; ficar, virar, tornar-se, fazer-se; continuar, permanecer; parecer.

14 de junho de 2014

pena

que o acolhimento genuíno, o asseio da escuta, os vislumbres de som, a incontinência da fala, as interferências sobre o discurso, a repulsa dos juízos, a patologia desmentida, a agressividade inerente aos laços não me seduzam em me tomar como sabedor.

10 de junho de 2014

pedro, não se pode reduzir esta cidade à nostalgia. vivi nela tempo o suficiente para poder retornar esquecido dos nomes e lugares, sem compromisso algum com fortuna ou revés. mas soube assim que regressei: essa cidade guarda nossos dias. procurei entre as circunstâncias, entre as luzes amareladas dos postes, entre a receptividade das pessoas, entre as novidades mais óbvias do comércio, entre os silêncios dos domingos à tarde, entre o canto sujo da rua íngreme próxima ao açougue, entre o comum e o inesperado, felicidade. soube da irreversibilidade dos fatos quando descobri que aquela sorveteria, tão antiga, em frente à praça, fechou. e que, apesar da comoção revolvida em minha busca, ainda pude pouco além de andar. esperei pelo pôr-do-sol de rotina o nome perdido em nossas distâncias; visitei os familiares e vizinhos em qualquer tarde para um café saudoso; vigiei o relógio para coincidir brilho e dureza às sete horas da noite quando o céu do nosso gosto começava a ficar azul escuro; desci atrás das possibilidades de diversão sozinho, como quem esperava se livrar do tédio com a limpeza dos azulejos do banheiro; fui à feirinha em busca das bobagens que comemos (continua tudo muito gostoso); endeusei-me com o transe da sua ausência e vomitei o nervosismo todo em textos ruins e refeições semi-digeridas; li pouco por estar à espreita de qualquer movimento nesta cidade; escutei de novo o triste anúncio do circo - aquela entonação engraçada, cirrrcô, cirrr-cô - que você me negou companhia uma vez (desta vez, não fui por fraqueza); antecipei meu desejo de não voltar a esta cidade com uma promessa furtada. perguntaram por você, como se coubesse a mim responder. fiquei triste por dias. no regresso à mediocridade e à decadência corriqueira, percebi que não há diferença lá ou cá. esta cidade habita nosso corpo. hoje, longe, estou abraçado aos hábitos de solidão e inteligência, desamparo e conforto único para me esquivar das verdadeiras janelas que construímos nas paredes de nossas vidas. apesar da cidade, pedro, estamos livres e à parte.

7 de junho de 2014

entre aqui e ali, onde se perdeu algo.

1 de junho de 2014

estudo sobre roupas femininas

a oscilação entre o fino e o vulgar. a organização dos sofisticadíssimos detalhes. os cortes do tecido e os disfarces intencionais do corpo. as camisas de seda. a difícil escolha. a ditadura da tendência e a anulação do gosto próprio. a sobriedade das lojas senhoris. o vestido floral para o romantismo. o decote acidental. a relação estabelecida com os comichões. o desajuste moral entre a idade e o comprimento da saia. o delineamento da forma em nome da transparência. a boa composição entre estampas. as cores conforme a volúpia. o relevo do sutiã e seu giro em alças. os desalinhos.