28 de agosto de 2014

secura

apesar do horizonte poroso, dos humores todos murchos, da luz fosca, do céu desamparado de nuvens, da sobriedade, da textura sem vigor da vegetação, da ilusão de água, da objetividade, do nariz que sangra, da rispidez, do esgotamento temporário das idéias, da pele que trinca, das queimaduras e dos ardores, da magreza: sem que nos percamos em conluios climatológicos, cada dia árido em aguardo pela chuva-salvação da primavera é um dia a menos na contagem da nossa antecipação em ser.

21 de agosto de 2014

o problema do elogio

o problema do elogio é o constrangimento com uma verdade imparcial que é só parcialidade de caráter. o problema do elogio é a exposição maior do sobressalto do elogiador do que a apreciação considerada no elogiado. o problema do elogio é a restrição do valor que é tomado como qualidade positiva em uma suposição. o problema do elogio é o engano ao significar o que é perspectiva como constatação. o problema do elogio é a intimidade ilusória de um saber sobre o outro que lhe escapa. o problema do elogio é o desajuste das virtudes quando desmentidas. o problema do elogio é a deflagração do pudor.

16 de agosto de 2014

perto dos trilhos

fundo do chão, lá vem
apito do ar, lá vem
susto do vão, lá vem
longe do mar, lá vem
"não, joão, mas cá, é lar?"
pra quem? alguém? o quê? também?
o trem, o trem, o trem, o trem

12 de agosto de 2014

já se pode dizer em palavras redondas ou corpos oblíquos que entre o que era e o que é resta um silêncio legível. não se conta com urgência ou sequer pressa em romper o silenciado. mas, antes, conforto de sedução e rodeio já gastos, sem angústia alguma para dar o tom hipotético de amor. já localizado, quando posto, em circunstância propícia - esta avaliada em jogos espirituosos e risos educados e constrangimentos fisgados do nosso desejo -, este mesmo silêncio pedirá licença, tão bem autorizado pelas nossas relutâncias e tortuosidades, este mesmo silêncio dirá, no que seus recursos de expressividade alcançarem: houve, homem, houve outro.

10 de agosto de 2014

estudo sobre homens femininos

a sensibilidade para o mundo. a posição de escuta. os gestos quase infantis. o gosto pelas artes que resvala em erudição. a delicadeza da fala contrastada à anatomia do corpo. a afetação e a frieza a tudo que se refere. os músculos. a hostilidade nos confins íntimos. o desejo da mãe. a projeção das expectativas nunca assumidas. o perfume destoante à virilidade suposta. o rigor sobre o sexo. a fascinação pelas mulheres potentes. os eternos desconfortos materiais. as sínteses advindas do ócio. a resignação à realidade. o choro. os flertes profundos com o impossível. o pai fantasmagórico inventado nas melancolias. a paixão latente por todos que desconhece. a incontinência do bem-querer endereçado sem sabedoria. os outros homens. o desespero por não amar.

3 de agosto de 2014

quando viagem

não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce em um sotaque absorvido: prolongo as consoantes mais macias, engulo o final das palavras, inicio todas as frases com um estalo de língua ou uma interjeição que dará o tom do resto da fala, recheio os pensamentos de ditados e provérbios, termino as conversas rindo com um gosto de letra espirituosa na boca. não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce de um morador local ajustado aos hábitos da cidade: na casa meço conforto e constrangimento a partir dos deslocamentos da hospitalidade, chego todo espantado com o avanço do comércio e o retrocesso da população, me fascino com o frescor das frutas e verduras nos mercadinhos, nas lanchonetes e nos botecos me divirto com o preço destoante do que estou acostumado, as quitandas e quitutes que como no café tão cheio de gosto, descanso sentado sobre o sol de fim de tarde nas ruas mornas, leio os livros que trouxe por pura sobrevivência mental, deito no chão quente pela manhã para pressentir os fatos do dia, no silêncio encontrado escondo choro e gozo de circunstâncias e memórias. não sou um homem de paisagens, prefiro o prazer disfarçado e comovido pelos dias contados no calendário: melhor do que ir, só a garantia de voltar, mas estendidas em programações quaisquer: passeios tensos entre tédio distraído e desejo perturbado, almoços e jantas bem planejados e reciclados, conversas importantes e descartáveis com quem verdadeiramente amo, falsos acontecimentos em nome da certeza de que viagem alguma merece ser narrada.