23 de outubro de 2014

mosquitos

bafo de calor.
janela aérea. citronela
com ventilador.

19 de outubro de 2014

quando descobri
que o diabo não era
mau tampouco bom,
que o homem-do-saco
não era um homem
nem tinha um saco,
que o bicho-papão
não era diferente
de mim em mim,
tive medo

14 de outubro de 2014

da escada que dava acesso do corredor ao pátio da escola, ficamos no começo, no meio e no fim. no começo, nossa identidade girava em torno dela e das nossas interações: ou sentados, ou brincando com os degraus, ou abraçados aos corre-mãos; estávamos ou sentados um nos outros, ou brincando de carinhos, ou abraçados. esperando qual palavra para sossegar nossos conflitos de adolescentes. no escuro do corredor, imagem tosca para nossos medos, as confissões, os desabafos, as conversas bobas. acabamos por acidente amando com força demais. no meio, nossa companhia começou a se tornar intolerável: proximidade não implica intimidade e, portanto, guardávamos certo respeito tedioso em consideração ao bom convívio. os encontros permaneciam fiéis, mas a escada testemunhava nossos silêncios. os desentendimentos começaram a surgir em nome de uma impaciência frente aos turnos, cada qual ali contando com uma vez, uma exceção, para se pôr único no mundo. ninguém sairia ileso. acabamos por acidente amando somente por distração. no fim, nossos rumos foram traçados a partir da separação eminente. as preguiças, os humores, a obrigatoriedade implícita de manter o que éramos nós: dissolução; cada qual com a sua vida inimaginável mas óbvia. do que éramos nós ficou uma promessa de juntar novamente, fortuna qualquer que viria a coincidir em um futuro já de adultos. "lembra da escada? tempo bom". acabamos por acidente amando sem comoção e responsabilidade.

10 de outubro de 2014

quando ratos, morcegos, aranhas, cobras, baratas, mariposas, besouros, moscas, formigas, escorpiões, traças, pulgas e carrapatos fazem parte do trânsito entre o psiquismo e o ambiente, nada se teme aos níveis do asco.  qualquer comoção vira aprendizagem, como quem por muito tempo em solidão se afasta do mundo e pelas vias de um resgate erótico se insere novamente ao convívio. a novidade é qualquer coisa, satélite orbitando no eixo dos absurdos da vida comum. até o vazio das relações ganha contornos diferentes. ao se habituar aos bichos, o que mais aterroriza é a possibilidade de deixá-los independentes, sem a domesticação dos dias exaustivos de higiene mental. a miséria comum está sentada, contando moedas que serão ou oferecidas a um deus já apagado, ou gastas em uma ilusão necessária à continuidade.

5 de outubro de 2014

o lago

passarinho que me fazia companhia enquanto esperava o dia passar falou que já passeou e namorou bastante. perguntei por onde. árvores, salas de aula, encanamentos, buracos no chão e no cimento. perguntei sobre as namoradas. disse que gostava de cantar, empoleirar como quem não quer nada, estufar o peitinho, uma semente ou uma pedrinha diferente que achou no chão já servia de agrado, mas que nem sempre dava certo. rimos. perguntou se eu já namorei bastante. disse que não, que deveria namorar mais, apesar de estar contente com o que já tinha namorado do mundo. perguntou como eu fazia. brinquei que gostava de cantar, empoleirar como quem não quer nada, estufar o peito, uma semente ou uma pedrinha diferente que achei no chão já servia de agrado, mas que nem sempre dava certo. rimos. perguntou se já passeei bastante. eu disse que não, que deveria passear mais, mas que estava contente com o que já tinha passeado do mundo. ele me deu uma bronca leve, dizendo que gente está sempre achando que deveria fazer algo a mais para viver. depois se envergonhou e disse que eu era um pouco diferente porque me contentava. perguntou qual lugar é o melhor para se passear. o mar. mar? passarinho nunca tinha visto nem ouvido o mar. falei que era um monte de água salgada e brava que se debruçava sobre a areia, bonito de ver e de ouvir e de entrar. fiquei constrangido de ter provocado a inveja. perguntei o que ele achava da água. passarinho sorriu, disse que era do que mais gostava: era para brincar, lavar, beber. rimos. pois então, no mar também! me corrigi dizendo que água é tudo igual, mas que, no mar, o bom é entrar, corpo todo afundado: um sentimento bom de pequenez... fiquei constrangido de ter provocado a inveja – de novo. dessa vez, não escondeu. ficou triste. para reverter, falei que o mar era água, e pronto!, só que muito mexida, parecia um lago em ventania. aí ele ficou feliz. de vento entendia. apontei. viu de longe o lago. aprovei. abriu bem as asas, mirando. nos despedimos.