22 de outubro de 2016

o dia em que vi um centauro

irritado por ter de ir à universidade, cansado com o excesso de cotidiano, distraído pela psicologia do ônibus, eu indo, como mais uma vez iria. fui temporariamente escolhido para sair do estado de apagamento que estava (quando me dei conta havia retornado à vulnerável condição de ser e ver comum) para habitar um espaço potencial entre a percepção e a realidade. tive de fazer força para fixá-lo no meu campo de visão. ele: em movimento, se dirigindo ao palácio da justiça na esplanada dos ministérios. se mostrou longe, borrado, como quem não quisesse ser descoberto. era negro na parte animal, branco na parte humana. as quatro patas e os dois braços ritmados em trote. parecia calmo pelo jeito que andava e se dissolvia. não pude perguntar quem era, que fazia ali, de quem descendia, de quais céus derivava sua sorte. se fugia como eu, se as histórias sobre quíron eram reais, se o conto de josé saramago havia sido fidedigno, e, mais importante, perguntar como dormia, se com desejo inconfesso de repousar as costas, e sobre os sonhos que tinha.

12 de outubro de 2016

desconfio do seu ato de fumar. da pressa, da insistência amadora do dedo no isqueiro. da dependência inventada a um vício que o corpo não se dedica. do apelo a uma elegância que é só teatro, ainda que você se deixe enganar em nome de uma apreciação episódica, social. julgo a pouca habilidade em conduzir a fumaça para dentro (língua queimada, tosse, pigarro, voz falhando), para fora (a mão abanando o ar como quem se preocupa tarde). testemunho certo despreparo para a simulação de si. é preciso sabedoria, algum treino, talvez. ser capaz de manejar de modo desapegado mas firme o cigarro, de levar os dedos à boca com o olhar um pouco desinteressado ainda que muito circunspecto. ser capaz de manter a postura estacionada conforme o pensamento cria forma e movimento. sustentar o jeito próprio de se vestir de fumaça, portar uma aura de nenhuma espiritualidade, para então ultrapassar o espírito superficial da coisa, alçar-se leve e sensual à decadência assumida. para usar do cigarro como quem se expõe é preciso ser e estar à altura: sujo, breve, queimando. desconfio enfim da espontaneidade do seu ato de fumar. de resto, sigo acreditando, com olhos ardendo e pulmões irritados.