22 de maio de 2017

sonhava em ser doente do olho e ter que usar óculos. acreditava que quem usava tinha uma inteligência inata. daí a necessidade de óculos para carregá-la e expressá-la. os óculos, ajudando a dar um enquadramento, um limite para a visão, sossegava a ânsia de ver. adorava os nomes difíceis como miopia, astigmatismo, catarata, estrabismo... quanto maior o dano da doença, maior o grau. maior a inteligência. sentia que um mundo lhe era escondido por não usar óculos. e que tinha de fazer um esforço maior para ter acesso àquilo que não via. ele, "tão inteligente!", achando que estava perdendo por não ver. com óculos, as pessoas o olhariam e saberiam: o menino é inteligente, usa óculos. não precisaria de se esforçar tanto. nas consultas oftalmológicas, apresentava muita resistência no olho na hora de pingar colírios, aferir pressão interna etc. porque o olho, como se sabe, possibilita o olhar, e olhar sem reconhecer o olho é falta de inteligência. daí a resistência. mesmo com horror à idéia da cegueira, brincava de se privar do sentido até a angústia: cabra-cega, gato-mia. perguntava-se, em uma brincadeira séria, se tivesse de escolher perder um sentido, qual seria? e não conseguia perder os olhos, a capacidade de olhar. o prazer de olhar. construiria assim brincando seus próprios óculos. porque os óculos, de muita inteligência, não sabiam do que viam e não precisavam nem tinham vontade de ver o mundo por inteiro. ainda assim ele não se confortava com a idéia de poder usar óculos, sem doença do olho, mas de sol. ora, porque nenhum óculos deveria se propor a proteger os olhos da luz do sol, mas sim ampliá-la. como a inteligência. afinal, sol, luz, inteligência. porque quanto mais se via, mais se sabia, quanto mais se sabia, mais se via. mesmo que a ampliação da luz arriscasse a capacidade de ver em uma cegueira temporária, os óculos permaneceriam. sentia dó daqueles que não usavam porque julgava eles burros. e ele, sadio, acrescentava à ausência de óculos um traço de burrice própria. a inveja que sentia dos cegos, dos vesgos, dos míopes. porque esses, felizes, têm então condições de ter olhos para os olhos, para administrar o olhar, serem inteligentes, com visões do mundo, ânsia de ver sob controle. têm óculos. e ele, sem doença ou problema, quando exposto ao sol, franzia a testa e se enrugavam todos os olhos e tinha de se resignar sem inteligência a ser de modo reduzido; sem óculos.