2 de março de 2022

estava a caminho da universidade, na via L3, altura da faculdade de tecnologia, para encontrá-lo. julgava a notícia inesperada, pela sobrevida então descoberta. o trajeto apontava uma decisão pelo estudo das engenharias, talvez mecânica ou química. descendo rumo aos pavilhões, um estacionamento de caminhões ordenados conforme a necessidade de manutenção e reparo: ali uma oficina provisória. confirmava assim minha intuição pela atuação em mecânica, já conhecido seu gosto por motores, rodas, câmbios, graxas. me aproximo apreensivo diante da possibilidade do encontro: um rosto já desvanecido pelos anos que o soterraram seria recuperado, enfim o fim da saudade, a continuação da vida legada ao futuro e fatalmente suspensa. você, dentro de um carro, sentado no lado do motorista, enquanto me inclino à janela do passageiro, sorri: vejo, relembro: o mesmo corte curto de cabelo, partido ao meio; a mesma espessura das sobrancelhas, imponentes; o mesmo nariz montanhoso, marca inegável nossa; os mesmos ângulos bonitos das têmporas, as mesmas bochechas sulcadas, a mesma linha oblíqua da mandíbula bem desenhada; a mesma boca como um borrão arredondado, os mesmos dentes simétricos; o mesmo pomo-de-adão pontiagudo. entretanto, num breve instante após o vislumbre da imagem reencontrada e finalmente entendível como você, seus gestos ganham a gravidade de um trauma: revejo, esqueço: seus olhos se desalinham, sua boca se retorce em queda; embaralham-se suas tentativas de palavras; os movimentos se tornam um ciclo fechado de repetição e angústia; a voz, não recuperada, surge como um grunhido animalesco, somando terror ao amor. reconheço os signos de uma condição demencial adquirida. seu corpo intransponível mostra o que seria, não fosse a morte: subitamente descolado da intimidade consigo por uma lesão severa: um paralítico.