28 de dezembro de 2022

de antemão, peço desculpas e licença por ousar alguma palavra. preciso de um fechamento, mesmo que seja para dar fim a um vínculo mais fantasioso e vazio do que efetivo e real. nem que seja para, com esse gesto de resolução e encaminhamento dos afetos, não dar continuidade aos impasses que testemunham o desespero da minha imaginação ou a carência do meu corpo. trata-se da assunção de uma posição subjetiva para não mais me ocupar de mim em relação a você ou, de uma maneira mais romântica e patológica, não mais pensar em nós. "nós" que, fora da virtualidade unilateral cultivada por mim, nunca existiu. contemplo, portanto, as sobras de um amor não consumido, amor estéril cuja ausência de concretude foi pretexto para movimentar ideias e ideais. se amar é, em nome de alguma felicidade e intentando uma completude sabidamente impossível, ofertar aquilo que subjaz a todo desejo a alguém que não o pediu, desamar é dolorosamente descobrir a necessidade de uma nova realidade – portanto, um novo objeto – e buscar por inventá-los. esta é, inevitavelmente, uma carta de desamor.

no entanto, acho graça do meu pedido inicial: estou diante da escrita de uma carta que (espero, pretendo) não chegará. admito, um pouco a contragosto, que "pedir desculpas e licença" é uma síntese precisa daquilo que sou ou me sinto ser diante dessa circunstância desamorosa. um resumo um tanto franco e desagradável da forma como me percebo diante do que foi você: eu: fixado em um quase que não se materializou em ação efetiva, sempre atribuindo a mim a responsabilidade (não digo culpa, apesar de tudo) ou me interrogando sobre a parte que me coube pelo fracasso e insucesso dos desfechos da relação. não que isso corresponda à verdade dos fatos: sempre existe o outro lado, o outro, você; intenções e expectativas não convergentes são premissas de qualquer desencontro, amoroso ou não. para mim, essa suscetibilidade ainda é difícil de conciliar; me perco entre o risco de desejar e a dor de ser frustrado, veja só o próprio motivo desta carta. lamento minha imperícia nessa dança de improvisos, credito tais feitos à minha inexperiência no campo amoroso. existo há tanto tempo sob essa crença que, resignado, funciono assim. no fim das contas, não me parece de todo ruim ter dois pés esquerdos nessa valsa surda. peço desculpas – mas também peço licença:

iniciar conversas com emoji de fantasma foi, durante um tempo, um gracejo comunicativo seu. avaliando retrospectivamente, não deveria ser o prenúncio velado de uma dinâmica estranha a ser consolidada entre nós. ironias à parte, os fantasmas costumam tomar forma na brincadeira com o outro. a diferença entre a assombração traumática e a fantasia imaginativa é de perspectiva e interesse: em um caso ou noutro, estamos diante dos impasses da nossa frágil capacidade de transformar os fatos da vida por meios simbólicos. daí surgia alguma novidade frente à reiterada repetição de seus fantasmas: como meio para puxar papo, passei do susto divertido com suas aparições inesperadas ao terror pelo desconhecimento de suas intenções. o que diz um fantasminha meio abobalhado, com a língua de fora, bracinhos erguidos, olhos meio esbugalhados? diversão? escárnio? manipulação premeditada? convite à loucura? desejo incerto de sua forma? amor que não ousa dizer seu nome? eu adentrava (adentrávamos?) o campo da comunicação ruidosa, dos sentidos não explícitos: armadilhas perfeitas para alguém cujo letramento erótico se deu pela suposição de afetos para suprir palavras que não foram ditas. aprendi a amar assim; portanto, é o mesmo que dizer que assim invento o amor: soletrando, balbuciando, gaguejando, monologando.

nossos encontros sempre serviram de pretextos para ressentimentos e desgostos meus. cercado de apreensões imaginárias e à espreita dos pequenos sinais, me punha atento às frestas das suas notícias, contadas distraidamente com frases calculadas, você muito ciente dos assuntos não abordados em profundidade. não abordados em profundidade porque sabia existirem neles círculos de intimidade nos quais eu não cabia. eu inferia: outros homens sobre os quais eram investidos tempo, cumplicidade, carinho, lazer, sexo. intuindo a existência de outros a gozarem daquilo a que não tinha acesso por escolha sua, eu, veladamente, entre a certeza equivocada e a desrazão assumida, comprovava minha hipótese pelas suas próprias palavras não ditas, seus giros e movimentos de corpo em desalinho com a ternura do seu tom de voz enquanto selecionava o que era conversado. comprovava minhas teorias pela negação de seus não assuntos, cativando uma violência pela qual tinha apreço e que me era garantida de modo inesgotável: afinal, bastava insistir em uma ideia inconveniente de que seu corpo, enxergado voluptuosamente por mim em seus ombros largos e braços interessantes, traía a doçura inocente da sua voz, a serenidade desafetada dos seus olhos.

pensando hoje, admito para mim que nós nunca de fato convivemos, e eu, nesses poucos encontros, como um erotômano ciumento, descobria que qualquer homem citado me doía diante do limite criado pelo seu desinteresse em mim. não o culpo por isso; também valorizo reciprocidade e consentimento, por mais que eu questione a sua facilidade em se doar à pegação, a esses arranjos eróticos, como você insinuava ou eu maquinava. certa vez, falando abertamente sobre nosso impasse, você me assegurou que não era pelo meu corpo, que gostaria de tentar cativar nossa amizade assim, uma vez que nunca havia tido algum rapaz com quem, iniciada uma troca afetuosa e sincera, acabasse se envolvendo de modo casualmente sexual. eu me ofendia, não tanto pela rejeição indireta ao meu corpo, mas por não conseguir conceber como você, alguém que se apresentava com tamanho desapego de si, não poderia, afinal, se disponibilizar também a mim, já que, aparentemente, investimento romântico não era um critério afetivo para sua condição de encontros sexuais. a exceção: nós. entre "nós", eram sua crueldade não intencional e sua negativa cristalina contra a minha esperança delirante e meu ódio autodestrutivo.

sentia pena de mim por me colocar em tais condições; no entanto, não sabia evitar a montagem desse tipo de situação ou cena de violência amorosa em que era reproduzida minha educação sentimental. dela surgem figuras condensadas em uma pessoa só: por meio ou a despeito de você, diante de paixão e tesão não correspondidos, eu me tornava vítima e agressor de mim mesmo. daí a conclusão inescapável de que o amor era, na verdade, um ato de caridade e salvação, em que migalhas doadas a esmo e tão despretensiosamente me eram servidas num prato o qual eu lambia como um faminto. passados os encontros, vinha a rememoração ruminante em busca de qualquer vestígio que pudesse ser interpretado como sedução ou flerte às avessas, que pudesse sinalizar atração indireta, dissimulada ou não nomeada. passados os encontros, ignorando a premissa de que nenhum interesse amoroso-sexual existia, vinham os silêncios de nenhuma gravidade, as distâncias não vividas como separação abrupta ou trágica, os compromissos com a vida comum se impondo naturalmente e que poderiam justificar a perda de contato. quando percebia, a cena tinha novamente se ocultado pela ação do tempo e da vergonha; e eu estava já distraído da minha recreação masoquista e buscando dignidade nas demandas que o mundo me apresentava. nunca pensei que minha dignidade pudesse estar tão ao alcance da mão ou da mera vontade de ser digno: um gesto mínimo e disciplina podem, aos poucos, muito.

e o mundo já havia girado novamente: sem nunca estarmos próximos, estávamos afastados, quase esquecidos, você estava em outra cidade, outro país, outro momento, outra vida. nunca entendi muito bem seu gosto por viajar. confesso: sempre achei meio boba essa sua imagem criada para si mesmo de cosmopolita de instagram. percebia isso que você chamava de "experiência intercultural ou turística" como pretexto para registro de si em lugares exotizados pelo seu olhar deslocado, um tornado bon-vivant por ascensão social. apesar do meu julgamento, não menos verdadeiro é o fato de que seu espírito viajante é um modo afirmativo de despertencimento, de recusa a qualquer territorialidade comum para se ampliar em um mundanismo irrestrito (e, por isso mesmo, leviano, eufórico, sofisticado). reconheço seu gosto pela apreciação do cotidiano de uma cidade que lhe é nova ou revisitada, seu gosto pela captura fotográfica daquilo que, estranho a si, escapa ao comum dos locais, já habituados à paisagem e aos costumes. além disso, como você mesmo contava, as viagens poderiam ser chamadas tanto de fugas existenciais, pela sua indeterminação do desejo de viajar ("qualquer lugar é um lugar" é a expressão-chave para esse desespero escapista), quanto também de inusitadas aventuras – sexuais, inclusive. sei que suas viagens eram e são novidades inventadas, aberturas para o desconhecimento, renovação da experiência de si no mundo. você merece muitíssimo. afinal, são anos dedicados para a conquista dessa autonomia; nada mais justo do que se recompensar com esse gesto de se tornar outro de si mesmo, desfrutando da liberdade de não estar imerso na mesquinharia dos conflitos familiares, no tédio melancólico da cidade costumeira, nos problemas recorrentes do trabalho, na mesmice de ser quem se é todos os dias. que me sirva, além de contraponto, de inspiração, quiçá exemplo.

dos banquetes alucinados às fomes ascéticas, consegui resistir à ideia de que o amor fosse apenas uma forma de caridade egoísta para descobrir, em outra chave e com a liberdade que ser desprezado proporciona, que o amor é simplesmente uma forma de alegria. não uma alegria que se compraz na violência para consigo e com o outro, mas uma alegria que é advertida acerca da nossa condição inevitável de fragilidade, desamparo e dependência. uma alegria que se sabe provisória e, por isto, ainda mais prazerosa em sua duração. sem a obscenidade das minhas expectativas, faço votos para que tenhamos uma vida mais rente àquilo que é importante e menos ilusória diante das possibilidades disponíveis à nossa própria existência. mesmo sabendo que não há alegria que sobreviva aos superlativos da eternidade, desejo de modo genuíno que você seja alegre ou siga buscando ser; eu, finalmente, depois de muito, também me dignei a ser ou buscar, mesmo que comedidamente e sem saber muito bem como. apesar do tom de superação adotado agora, contrário à morbidez de antes, não é falsa a minha intenção de que haja alegria para nós. esta carta de desamor é um exercício diante da verdade, e não seria justo para comigo e para com ela me dar a equívocos a essa altura.

não há por que falsear esta tentativa de elaboração com rancores e ressentimentos criados, reconheço, de uma situação assimétrica derivada de um equívoco meu. se ainda me é permitido, admito que sinto muito por não termos criado condições de honestidade e cuidado minimamente fraternais um para com o outro: não fosse esse descuido, esta carta não existiria. tomo esse fato constatado como uma pequena violência que perdura (perdoável, inesquecível): a responsabilidade quanto a algum zelo recíproco recai e recairá imperativamente sempre sobre nós, sem aspas desta vez, amigos, amigados ou não. por mais ruidosos que sejam os fantasmas, não estamos isentos dos acertos e desenganos que a comunicação pode promover. em nome de minha responsabilidade diante da palavra, termino esta carta como quem nivela as próprias esperanças ao rés do chão da realidade: agora, em homenagem a esse acordo tácito de silêncio e indiferença que firmamos, seremos história que não se realizou levada a termo, museu construído em torno de ruínas de um ideal caído. se me é possível algum aprendizado, extraio da queda e do tempo o efeito reparador de uma escolha mútua de respeito e renúncia. assim, tornamo-nos, um para o outro, sem exageros e alegremente, meros estranhos que um dia se conheceram. com o perdão do trocadilho de mau gosto e sua cordialidade: foi um prazer.