25 de dezembro de 2016

na noite de natal de 2016
extraordinária ou comum
a todos nós
a qualquer um de nós
com grande tristeza
familiares, amigos e assessores
confirmam que george michael
(parada cardíaca)
"passed away peacefully at home"

a família solicita ao mundo
respeito à sua privacidade
(como não calar diante da morte)
afirmam os familiares em nota que
"there will be no further comment at this stage"
não haverá mais comentários sobre esse momento
não se falará mais sobre
para a posteridade a memória
george michael será
símbolo e silêncio

rendidas as homenagens
do menino ao homem
de wham! à carreira solo
percurso de uma vida
bandeirando em nome do desejo
da liberdade ainda que submisso à toda carne
semelhante ao dos que morrem pelos outros
iludidos com a possibilidade
de ultrapassagem de si pelo transe

o espírito natalino encarnado
estação de esqui ceia farta
momentos em frente à lareira
luzes piscando compulsivas
talvez brincadeiras na neve
abraços e tilintares e brindes
até se ouvir a ambulância passar
em algum condado da inglaterra
nuvens fartas acumuladas no céu
sirene estridente árvores imóveis

corpo datado de 53 anos
não se sabe com qual insistência
de ter vivido o fim sem muito brilho
sem aguardar pelo presente
além de exigir a exatidão do que é incerto
george michael talvez esperasse da noite um milagre
e vem então a morte
freedom
freedom
freedom
you've gotta give for what you take

26 de novembro de 2016

hermeneuta afetado e a tradução de l(a de e.e.cummings

em uma celebração confusa do gênero, l(a se situa próximo à aporia e à desvirtuação do poema. equilibrado entre o haicai vibrante e a ode sem canto, apresenta a natureza de forma assubjetiva em seu tema e seu conteúdo. ainda que lírico, atinge uma imparcialidade discursiva, alcançando a descrição do fato puro, cheio de números e designações fixas, ainda que indefinidas. como característica do autor, pode-se identificar o apreço pelas formas tipográficas como recurso estilístico de analogia ao desenho do mundo, considerando a impossibilidade de representar a imagem por meio da interferência, no fio do verso, dos sinais gráficos. assim, tendo a ausência como voz do poema, revela o verdadeiro nome das coisas por meio de uma folha caindo eternamente. simulacro vivo da natureza humana, esta folha em queda surge brincando sonoramente (la-le-af-fa) no poema e é impossível de ser traduzida com a preservação de suas ludofonias. também, no quinto verso ("ll"), é possível ler, conforme augusto de campos sugere em seu livro, uma pausa em ícone, reforçando a quietude cíclica da folha que cai ou a solidão compartilhada de um a um. para suprir tal luto de sentido, optou-se, na tradução, por se centrar no movimento da queda por meio de uma supressão gráfica e uma modificação morfossintática (verbo por advérbio; predicador verbal por adjunto adverbial). para tanto, elegeu-se a reprodução da imagem estática encarnada no apóstrofo que sinaliza crase e pende de um grafema (ou, vá lá, um grafema pendendo de um apóstrofo). os diversos uns (substantivo, pronome, numeral) presentes na versão original surgem discretos na tradução; se comparados, em quantidade desigual. mas sabemos que não é (somente) isso que se traduz. torço para que o aspecto humano, fixando-se na forma incerta do tipo, encontre-se cadente e soli(d/t)ário em sua possibilidade de leitura à proposta desta tradução:

s(uma

fo
l
h

a'

baixo)
ol
id

ão

3 de novembro de 2016

sin rumbo

quando você me vem todo machucado de tanto escutar dificuldades sem predições, sem considerar a minha impossibilidade de receber você em tais ânsias, sofro a violência do seu desamparo por me lembrar do meu; quando você me vem todo vulnerável diante da agitação do mundo, esperando companhia para suas idas ao chão do sentido em busca de algum sossego para este desconhecimento, faço esforço para me manter em pé, por fora, firme na idéia alvejada de que seus pedidos não são para mim; quando você me vem todo adoecido por falta de caminho, acusando que nossa solidão fez de um hábito alguma religião, sem promessa de grandes dogmas ou mudanças, quase resisto, reconheço que sigo sob feitiços e que nada posso contra a doçura feminina que coleto na sua voz.

22 de outubro de 2016

o dia em que vi um centauro

irritado por ter de ir à universidade, cansado com o excesso de cotidiano, distraído pela psicologia do ônibus, eu indo, como mais uma vez iria. fui temporariamente escolhido para sair do estado de apagamento que estava (quando me dei conta havia retornado à vulnerável condição de ser e ver comum) para habitar um espaço potencial entre a percepção e a realidade. tive de fazer força para fixá-lo no meu campo de visão. ele: em movimento, se dirigindo ao palácio da justiça na esplanada dos ministérios. se mostrou longe, borrado, como quem não quisesse ser descoberto. era negro na parte animal, branco na parte humana. as quatro patas e os dois braços ritmados em trote. parecia calmo pelo jeito que andava e se dissolvia. não pude perguntar quem era, que fazia ali, de quem descendia, de quais céus derivava sua sorte. se fugia como eu, se as histórias sobre quíron eram reais, se o conto de josé saramago havia sido fidedigno, e, mais importante, perguntar como dormia, se com desejo inconfesso de repousar as costas, e sobre os sonhos que tinha.

12 de outubro de 2016

desconfio do seu ato de fumar. da pressa, da insistência amadora do dedo no isqueiro. da dependência inventada a um vício que o corpo não se dedica. do apelo a uma elegância que é só teatro, ainda que você se deixe enganar em nome de uma apreciação episódica, social. julgo a pouca habilidade em conduzir a fumaça para dentro (língua queimada, tosse, pigarro, voz falhando), para fora (a mão abanando o ar como quem se preocupa tarde). testemunho certo despreparo para a simulação de si. é preciso sabedoria, algum treino, talvez. ser capaz de manejar de modo desapegado mas firme o cigarro, de levar os dedos à boca com o olhar um pouco desinteressado ainda que muito circunspecto. ser capaz de manter a postura estacionada conforme o pensamento cria forma e movimento. sustentar o jeito próprio de se vestir de fumaça, portar uma aura de nenhuma espiritualidade, para então ultrapassar o espírito superficial da coisa, alçar-se leve e sensual à decadência assumida. para usar do cigarro como quem se expõe é preciso ser e estar à altura: sujo, breve, queimando. desconfio enfim da espontaneidade do seu ato de fumar. de resto, sigo acreditando, com olhos ardendo e pulmões irritados.

15 de setembro de 2016

quase primavera

tarda qualquer hora
cigarras cantem: "molhar,
paisagem porosa!"

1 de setembro de 2016

ninguém se elevará à dignidade dos cachorros.

30 de julho de 2016

abrir janelas. moldar uma circunstância. inventar algum amor. postar-se decapitado. deitar armadilha. esperar pela angústia. fugir do olhar. cair no buraco. reduzir-se à carne de moedor. abrir janelas. moldar armadilha. inventar circunstância. decapitar-se. deitar olhando. esperar dentro de um buraco. fugir do amor. cair sem angústia. moer-se voluntariamente até a redução de si a mero objeto. abrir janelas. moldar-se contra a circunstância. inventar alguma armadilha. lembrar-se do próprio rosto. deitar nenhum amor. esperar ser olhado. fugir para o buraco no peito. ser angústia. cair como carne moída. reduzir-se a janelas.

9 de julho de 2016

fogo de artifício

um risco, um brilho
no escuro do céu. barulho
esperando abrir.

19 de junho de 2016

nota azul

em que espera se faz este aguardo?
vai
quando a passagem
dois reais
o meu e o seu
didier-weill
constrói uma distância
muito além
da tarifa
do ônibus

6 de junho de 2016

minas ou são paulo ou tristeza

ao que me perguntei, com certa desconfiança, se tal convite era mesmo honesto. diante da nossa condição alagadora, que costumava demover toda a mobília de afetos postos em ordem, havia esforços para manter a normalidade dentro dos confins de realidade que fingimos ter noção da circunscrição. se aceito, crio alguma expectativa que provocará certo incômodo não só na vida que se leva cotidiana, mas na vida que se bifurcou anos atrás; se considero aceitar, pressinto algum entusiasmo de saudade matada em apenas suposição, como uma sede que passa ao começar a chover. se considero recusar, admito que, ainda que incerto do encontro real de nós, já vale, para a virtualidade, a visita em pensamento; se recuso, e de fato decido recusar, argumento que tenho me distraído aos poucos, como quem retoma devagar o jeito para com a intimidade consigo depois de uma grande crise. a gente poderia tanta coisa, inclusive sair dessa pobreza acidental de ter se tornado menos gente. nossos ideais, se revisitados, são sempre uma curadoria de ruínas.

2 de junho de 2016

minas ou são paulo ou tristeza

dormir no sofá,
sem se trocar, depois de
dia de trabalho.

30 de maio de 2016

ô, ana paula, facilite, faça o favor de deixar menos sofrer a este rapaz que encontrou uma lata de tinta spray e marcou as placas das rodovias, este rapaz que encaroçou e portanto fez algum voto declarado por meio de sinalizações poéticas, entre "não ultrapasse" e "me perdoa me liga", "fim da pista dupla" e "volta longo", "respeite a vida" e "ana paula saudade", este rapaz que talvez nem saiba o valor da solidão mas que, ainda para os olhos e as fantasias dos viajantes que tangenciam as cidades de guarda-mor, vazante e lagamar, ama você e espera você.

7 de maio de 2016

algo inesperado, vi você em um outro corpo. cabelos cortados conforme os ditames da moda, roupas sóbrias que talvez lhe cairiam bem. um movimento calmo de passar a mão nas sobrancelhas enquanto falava sobre o chiste de heine citado por freud no mal-estar na civilização (tive vontade de dar um soco na sua cara quando riu mas se gabou secretamente da própria capacidade de se recordar da imagem bucólica que se converte em vingança). reparei em algumas pintas bem localizadas no seu pescoço, casa antiga minha. os seus cantos de boca estavam borrados, como que dissolvidos na superfície da pele do rosto. não senti saudades. não consegui sentir. apesar da curiosidade um pouco absurda, achei que faria mal em pedir notícias. soube assim de intuição que você ainda se recusa a ficar em silêncio quando sem assunto e a usar hidratante labial, como quando éramos. houve algum acerto.

6 de abril de 2016

jair

no dia trinta e um de dezembro de dois mil e quinze, esteve no bar, com os amigos, comemorando o adeus ano velho, feliz ano novo. não se lembrou de levar o celular para cumprimentar a noiva, o filho e suas irmãs na passagem. fez duas promessas, sair do emprego de vigilante noturno e fazer o curso da protege. ficou triste quando pensou nos moradores do bloco. ficou alegre quando pensou na carreira de segurança particular. chorou quando tocou love of my life, do queen, "aquela bicha do mercury canta pra macho". esperou dar duas horas da manhã para voltar para casa, trânsito. decidiu meio bêbado pagar a conta. abraçou todo mundo. brigou com o dono porque estava pagando coisa que não bebeu. fez um gesto bruto de pegar algo no bolso para pagar mesmo assim – e morreu com dezesseis facadas. um foi um susto, estava procurando dinheiro. dois sentiu uma náusea muito forte. três um líquido quente escorrendo. quatro uma dor na barriga. cinco a respiração fugia. seis escutou um rojão e sentiu cheiro de pólvora. sete bateu a cabeça quando caiu no chão. oito ficou tudo escuro e silencioso. nove foi criança correndo atrás de um carro. dez beijou sua primeira namorada. onze foi pai e descobriu a felicidade. doze entrou para o exército. treze as madrugadas em frente ao estacionamento do mcdonalds. quatorze era morto. quinze já estava morto. dezesseis teve seu cadáver perfurado pela segunda vez.

22 de março de 2016

minas ou são paulo ou tristeza

quando assim em um estado turvo de espírito, já de costume antigo, nos encontramos, de passagem você de moradia eu, nesta cidade devido aos encaixes de um destino indevidamente acidental, tive a impressão de que seríamos ainda os mesmos. ilusão antiga dos paraísos de terra postos em água, o desastre de mariana a mudar nossas essências, tão distante hoje do que somos. tamanha lama para o que é só tempo comprimido em memória. apesar de mim, ainda preservei alguma crítica à razão para guiar as circunstâncias, sem entregar à angústia o juízo demandado. apesar de nós, ainda preservamos alguma crítica à comunhão para separar privacidades, sem forjar à ocasião o afeto esperado. apesar de você, ainda percebi preservada alguma opinião à vida para ir embora assim que fosse sábado às duas da tarde, sem integrar o contato a alguma aprendizagem possível. mas quando vi você devorando a luz branca da tela de seu celular, perdida entre as imagens como alguém que se olha profundamente no espelho, senti um desprezo irresistível diante daquilo que nomeava como você, visita fora de hora. o sentimento desterritorial do aeroporto caía bem à sua aura cosmopolita. se você me perguntasse pelo que estava acontecendo, pela minha cara, tanto desespero por quê?, responderia sintético que a vida continuava na mesmice, sem o agravo da tristeza que é morar em um iphone.

28 de fevereiro de 2016

minas ou são paulo ou tristeza

pra quê vai-não-vai,
morar à margem do mar?
poste cabisbaixo.