21 de dezembro de 2017

para escapar do assombro
dar rumo às memórias
motor do segredo
que se desdobra em voz
nada semelhante a uma caixa postal:
ante a impossibilidade de coexistir
uma preparação

da vida imaginada em brasília
apelando a nenhuma garantia
impossível diferenciar
solidão acompanhada e abandono
existe alguma resistência
em desobedecer ao silêncio
(meu irmão disse que tenho que me comportar)

da vida que sobra (onde?)
resta alguma tentativa:
conjugar resignação e revolta
encontrar no livro dos espíritos um panfleto
ver na televisão uma propaganda da nova honda
ir ao casa park uma ironia
premoldados brasil: desde 1983 ajudando nossos clientes a realizarem seus sonhos

não ia cortando giro ou chamando no grau
não fechava nem costurava
não ia pelo corredor
muito prudente com a direção
motivo de orgulho e medo
desejo de máquina não encaminhado
(estou com saudades do seu irmão)

manhã tarde oficina
noite supletivo
vida contrária à vida
fim de semana lavar estudar esperar fumar um
sumir para taguatinga atrás das piriguetes
sempre em trânsito (fugindo?) e cansado
a bença da minha mãe pairava

cuidado juízo
o corpo é a lataria
deus e os anjos da guarda te guardem

o meu pai calmo como um pai
entre esculturas de latas de cerveja
os cabelos lisos cheirando à fumaça
vestindo roupas que não são dele
cigarro aceso na vela de sete dias
chorando quieto ao lado do capacete
(seu irmão disse que ia voltar)

o ronco da moto enchendo a entrada do prédio
o kiko latindo agitadíssimo
quando você vai chegar mais cedo?
eu descendo as escadas
quando você vai me levar na garupa?
eu subindo as escadas
quando você vai embora?

brincadeira fundamental:
recebê-los em casa com uma cena de velório
mamãe muito preocupada
horror diante da necessidade de se salvar e salvar
coroas de flores imaginadas no meu quarto
os travesseiros que pus debaixo do cobertor fingindo ser eu
(meu irmão disse que mais pareciam um caixão)

dezesseis de dezembro de dois mil e três
por volta das quinze horas sgcv em direção à epia sul
abre-se lentamente uma fenda na realidade
toma forma um acontecimento
menos próximo da gravidade
mais entregue ao curso do outro
um carro à vista e uma moto invisível

no instante suspenso do voo
alçado por um cálculo do acaso
entre a curva e o encontro
antes de pousar brusco e se juntar às pedras
aos 20 anos e eterno
uma aprendizagem: um acidente
um acidente é uma certeza
(                                                                    )

cuidado juízo
o corpo é a lataria
deus e os anjos da guarda te guardem

9 de dezembro de 2017

depois de muito vivido, a proximidade com a morte. natural e esperada, luto antecipado de si mesma. a experiência com o próprio corpo é nojo e lembrança de juventude. a pouca autonomia para os dias, atravessados com angústia, tédio, tristeza. o horror de saber que todos aqueles a quem amou e ama estão distantes ou ocupados com suas vidas. os pais já morreram há muitos anos. impossível restituir o valor da vida e se mover invisível prezando por alguma hipótese de futuro. não há futuro. há pequenas paranóias e insatisfações acentuadas, na tentativa de um cotidiano. as preocupações com os outros são um engano para si, gestos inúteis entre carinho e carência. o desinteresse nas coisas do mundo, como se o tempo possível de sentir prazer e se maravilhar já tivesse se esgotado. as confusões com os remédios, com a programação da televisão, com os folhetos de supermercado. a saúde demandando cuidados sem fim diante do único fim iminente, mas não para já. os sentimentos consumidos pela memória, que se falseia em excesso de realidade e histórias mal contadas. a ruína e o vigor simulados para os familiares na busca de trazê-los perto ou mantê-los longe.

ainda não cheguei completamente lá. meus filhos estão grandes; já sou vó e tenho três netas e um netinho que já vindo. não posso mais me movimentar muito, passo meus dias assim inventando o que fazer, acompanhando o povo pelo whatsapp, pedindo notícias, rezando... vou todo dia à missa aqui da minha varanda, mas a fé não tem mais tanta serventia. celebro as visitas da minha e da nossa família, minha alegria é assim, dar bença, prosear. fico aqui teimando contra a minha doença, vendo meu corpo me emperrar cada vez mais dentro de casa. fico aqui teimando, não entrego os pontos, saio com esforço mas saio; é mais fácil vocês virem até a mim do que eu até vocês. a menina do salão vem pintar o meu cabelo, arrumar a minha unha. no sacolão eu ligo e o rapaz já deixa tudo separado, coloca as compras até no carro pra mim. não dou conta de limpar a casa sozinha, arranjei uma mocinha que é boazinha só cê vendo... vou devagar e assim com fé faço as coisas. mas não posso com os sábados à tarde. não posso. acho uma hora arrastada e difícil de passar, aquele depois do almoço. nada na tv: olho pela janela e vai pela rua um carro de som vendendo não sei o quê... baixinho uma galinha de quintal cacareja cócócó... o sol queimando a praça toda, o vento sacudindo as árvores... ninguém na rua, o som do semáforo trocando as luzes. aquele paradão. aí, a vida pesa. pesa. não quero ser preocupação mas sei que preocupo. tá tudo bem, os meninos estão todos bem e é o que me importa. me sinto velha e sozinha... e fico calada. a velhice, joão, é o tempo da vida em que a gente é deus e, sendo deus, fica guardando grave o silêncio... o mesmo silêncio.

29 de outubro de 2017

onde está joão lucas | com curiosidade nos olhos | caretas para a câmera | o sorriso colado na boca | os braços caídos aos meus | onde | onde estava joão lucas | (sentado no sofá) | quando cresci quando precisei | para o amor que não tive | não esperei | onde | onde esteve joão lucas | na minha festa de aniversário | rei leão de todos nós | soprando velas celebrando | ao meu lado mas longe | onde | onde estará joão lucas | depois de esquecido nas fotografias | meu primeiro amigo amor | tia lu tia ju | ainda são tias | onde | onde estaria joão lucas | morando no ouro vermelho | cercado de incensos e ópio | vivendo dentro de montanhas de gelo | vivendo | onde

25 de outubro de 2017

essa leitura que não alinha rima e metro, que se realiza apenas guiada pelo ritmo, estrutura mínima da criação: leitura pouco modulada e tonal, quase prosaica, de versos soltos ou presos na página (que também é pouco lida ao se dar voz alta). leitura de voz impostada, "voz de ler poema", na qual o texto se perde ao se mudar em voz, poema cuja voz se perde ao ser lido em voz alta. teatro: em vez de ler, declamar; em vez de respirar, aspirar; em vez de vibrar, entonar; em vez de silenciar, alternar entre um erotismo errático das letras e um acontecimento que se constrói contra toda a imaginação poética...

se empresto minha voz ao poema, tentando alguma declamação galante, um bom fraseado que me é falso, e que o poema pedia, veja, que o poema pedia, se leio um poema em voz alta, com a devida detenção nas palavras, fico perdido nos versos, entre os versos, fico perdido naqueles que me escutam desorientados pelo ritmo que desconheço do texto. fico perdido diante daquele cuja voz me acusa de não saber ler poemas, então regulador inesperado de poemas e não poemas e que julga que o som bem soado resume o poema. fico perdido naquele que me toma o alcance do texto dizendo que "é assim que se lê um poema", fico perdido me perdendo sem os versos e os sons e o branco da página. perdendo o poema de mim, fico perdido pelo gesto rude e pela poesia impossível daquilo que nos lia tão próximo. fico mais sozinho no amor.

31 de agosto de 2017

vejo sem ser visto. me sei ausente. espio. sinto ciúmes. não entendo. extraio um prazer velado. participo somente pela tensão de ver parcialmente. gosto do que vejo. me realizo por não me ver vendo. me masturbo. viro um objeto puro. não me responsabilizo por ver. gozo da onipotência equiparada à invisibilidade. não guardo segredo. protejo a minha ausência por meio da perscrutação. não tenho intenção além de ver. não sei o que sinto sobre a crueldade. existo só. invento ilusões de inclusão. anseio por ser visto. então descubro o que sou. um voyeur cego.

8 de agosto de 2017

parada

abram abram alas
o poema vai passar
cheio de plumas de rasuras
espaço! abertura!
é grande a criatura
vejam ele lá

extravagante vem
galopando selvagem vem
uma cabeça outras mil e cem
seis mil braços pernas bocas olhos
é um monstro! melhor
rezar pai-nosso amém

o poema vem vindo
atenção há tensão
para os versos para os sons!
cuidado com seus corações
é um bicho que come de tudo
sentimentos sobretudo
crianças velhos e pães

é alta e feia a criatura
caminha com alguma formosura
mas tem as pernas tortas: tortura!
há lá sua elegância
um metro estranho: extra vagância!
exibe rimas e ternuras
mil dentes trinta mil unhas
todas sujas todos gastos
seus estilos? velhos! ritmos? fracos!

o poema vem vindo
chegando e vindo diz assim
com uma voz horrível
sem fôlego e carmim:
"corr am! fuj am! ráp-id-o!
esp-a-lh em-sep ar...a lo-nge
vem v in...do v em ta mbém
o MUN-DOa trásd emim!"

apostem em suas pernas!
fogo! água! tragam
água pro fogo! há
mais fogo para a água!
o mundo o seguiu! imundo!
o poema não conseguiu
descobrir a charada:
o que é se acende
quando se apaga?

acudam! corram todos
vão pra casa! já!
perigo outro monstro maior
vinda enorme ainda tarda!
O MUNDO! quer saber o-que-é-o-que-é
se ele também chega
e não há gente fugida
ai! não vai sobrar mais nada!

passa! nem poema nem amor!
"sariema rima com dor?"
escapole daqui! fugir!
a charada, a resposta
posta a aposta
pés pelas mãos corram
pernas corram pernas pernas
é a vida é a vida

3 de agosto de 2017

hermeneuta afetado diante de a total stranger one black day de e.e. cummings

a total stranger one black day é impossível de ser traduzido para nossa língua sem desintegrar a sua essência. a tradução, em geral, trabalha, na passagem de uma língua à outra, com escolhas de matar-ou-morrer, requerendo uma antecipação do luto dos sentidos. o bom tradutor já está consciente e advertido dos prejuízos inerentes de seu ofício e não sofre do silêncio da impossibilidade de comunicação. todavia, um poema não serve para comunicar. particularmente, a tradução poética tem de se atentar, além da estrutura interna da língua e da linguagem quando em versos, às transformações das figuras e dos sons para tentar algumas compensações nas imagens, nas metáforas e nas alegorias, e também na métrica, na rima e no ritmo. o bom tradutor de poesia é um fracassado insistente que tenta ganhar em algum acabamento no processo de derramar textos entre líguas. no entanto, a tradução não é uma possibilidade no caso deste poema de nosso autor. a tentativa mesma de verter este poema faz com que ele se transforme em gás ou evapore. apesar de preservar sua i.materialidade, não há como produzir de modo mínimo ou similar as transformações ou as características formais nele presentes quando tentado em nossa língua. nada se preserva o suficiente a ponto de haver identidade e relação possível entre o poema original e o traduzido. dizem que a tradução é uma transcriação, que uma obra traduzida é uma nova e outra obra; sim, quando a tradução é possível. nesse caso, o poema se despedaça ou desaparece e é vítima de uma aniquilação. impossível manter o poema poema sem poder fixá-lo minimamente em sua forma de apresentação ou seu conteúdo manifesto. portanto, não há compensação a ser feita; e sim alguma leitura orientada. na primeira estrofe, uma ambiguidade quanto ao sujeito que chega, estranho ou estrangeiro (o autor? o leitor?). somam-se a ela uma polissemia (presente na expressão 'knocked the hell out') e uma homofonia sutil (living/leaving). na segunda estrofe, mais ambiguidade, a respeito ao que se refere o pronome who, implicando em alterações semânticas que apontam em uma confusão entre o agente e o receptor da ação de perdoar. a personagem ambígua da primeira estrofe é identificada como 'he', mas a indeterminação de sua figuração não se resolve. por fim, na terceira estrofe, as personagens se resolvem. trata-se de uma poema de assombração e conciliação com e pelo desconhecimento. na melhor das hipóteses, a leitura do poema original pode ser orientada pela elucidação das relações de sentido e de significações advindas de cruzamentos sintáticos, das homofonias e expressões idiomáticas, das considerações ao enjambement, que dão corpo e imagem à composição do poema. assim:

duas personagens possíveis chegam ao sujeito lírico do poema: num dia escuro, um completo estranho ou estrangeiro ("a total stranger one black day"). essas personagens forçam a interpretação a concebê-la como uma só, uma vez que não há maiores designações no poema a respeito dos atributos daquele ou daquilo que chega. alguém ou algo desconhecido chega. e o sujeito lírico, obscuro e complexo como se espera que seja, por exceção do acontecimento poético estava distraído vivendo até ser defrontado pelo contato com a dita personagem. tal encontro de violência e arrebatamento ("knocked") em decorrência de sua presença estranha ou estrangeira, ambas no entanto afirmativa e inteiramente desconhecidas, aviva ou retira ("living" [ou talvez "leaving"]) com muita intensidade ("the hell out") o sujeito de seu estado de distração ("of me -").

inicia-se, entre travessões, um movimento duplo de contastação e de questionamento que advém do encontro do sujeito com o estranho estrangeiro: encontrar um perdão difícil ou em um caminho dificultado ou esclarecer o gesto de quem realiza o perdão com dificuldade ("who found forgiveness hard because"). porque há uma confusão a respeito de quem realiza o quê na circunstância de perdoar e ser perdoado ("my(as it happened)self he was"). ele [o estranho ou o estrangeiro ou o estranho estrangeiro] era ele [o sujeito lírico]. logo, a personagem estrangeira é alguém, não algo. mesmo que não haja explicação do contexto e do motivo do perdão, é clara a mistura identitária entre a personagem e suas características e o sujeito lírico.

por fim, o sujeito reconhece a sua tamanha condição na personagem que era tomada como inimiga, tornando-se dela amiga inseparável ("- but now that fiend and i are such/immortal friends"). conclui-se que os perdões são feitos; as relações, conciliadas. a partir deste desfecho, se soluciona a confusão identitária entre o sujeito lírico e quem lhe chegou, estrangeiro ou estranho estrangeiro. sendo cada um em separado ("the other's each"), preservam individualmente o traço amigo que lhes possibilita comunhão.

uma ressalva se faz necessária sobre a versão interpretativa deste poema: trata-se da indeterminação inicial quanto à natureza daquele que chega como personagem. o estranho ou o estrangeiro, ou ainda o estranho estrangeiro, só é reconhecido ao longo do poema como tal pela condição de haver partilha de humanidade entre ambos. antes, era ser ou coisa amorfa, talvez a própria estranheza a bater portas e abrir infernos. se sujeito e personagem comungam o corpo, a cultura, o pensamento, a visão de mundo, tal imposição de sentido foge ao alcance interpretativo do texto do poema. tende-se a acreditar que o sujeito lírico e a personagem compartilham, por humanidade, da capacidade para a linguagem e da intimidade com a língua. quem ele efetivamente é, no entanto, fica em aberto. se este fosse um poema explícito de amor, diria o sujeito lírico que "não fosse o jeito de linguar, quase nos perderíamos um no outro". mas o amor escapa a este poema e à virtude da verdade.

1 de agosto de 2017

ainda assim brasília

a universidade com os corredores vazios; a secura; a tarde no ccbb; o sotaque miscigenado e as gírias; o tédio dos mendigos deitados na grama; os abacates espatifados no chão; os ipês; a rodoviária de manhã cedo; a paciência das jacas no pé; os ônibus cheios; a l2 em início de tarde de sábado; a feira da torre; a feira do guará; a feira dos importados; as banquinhas nas entradas das quadras; o jardim zoológico no domingo; o plano-pilotismo; os pombos da praça dos três poderes; o conic; o cheiro das queimadas; o metrô fora do horário de pico; o lago paranoá; as esculturas do darlan rosa em frente ao memorial dos povos indígenas; o palácio itamaraty visto de longe; as pontes; as caminhadas dentro do aeroporto; o parque da cidade; o brasiliense.

22 de maio de 2017

sonhava em ser doente do olho e ter que usar óculos. acreditava que quem usava tinha uma inteligência inata. daí a necessidade de óculos para carregá-la e expressá-la. os óculos, ajudando a dar um enquadramento, um limite para a visão, sossegava a ânsia de ver. adorava os nomes difíceis como miopia, astigmatismo, catarata, estrabismo... quanto maior o dano da doença, maior o grau. maior a inteligência. sentia que um mundo lhe era escondido por não usar óculos. e que tinha de fazer um esforço maior para ter acesso àquilo que não via. ele, "tão inteligente!", achando que estava perdendo por não ver. com óculos, as pessoas o olhariam e saberiam: o menino é inteligente, usa óculos. não precisaria de se esforçar tanto. nas consultas oftalmológicas, apresentava muita resistência no olho na hora de pingar colírios, aferir pressão interna etc. porque o olho, como se sabe, possibilita o olhar, e olhar sem reconhecer o olho é falta de inteligência. daí a resistência. mesmo com horror à idéia da cegueira, brincava de se privar do sentido até a angústia: cabra-cega, gato-mia. perguntava-se, em uma brincadeira séria, se tivesse de escolher perder um sentido, qual seria? e não conseguia perder os olhos, a capacidade de olhar. o prazer de olhar. construiria assim brincando seus próprios óculos. porque os óculos, de muita inteligência, não sabiam do que viam e não precisavam nem tinham vontade de ver o mundo por inteiro. ainda assim ele não se confortava com a idéia de poder usar óculos, sem doença do olho, mas de sol. ora, porque nenhum óculos deveria se propor a proteger os olhos da luz do sol, mas sim ampliá-la. como a inteligência. afinal, sol, luz, inteligência. porque quanto mais se via, mais se sabia, quanto mais se sabia, mais se via. mesmo que a ampliação da luz arriscasse a capacidade de ver em uma cegueira temporária, os óculos permaneceriam. sentia dó daqueles que não usavam porque julgava eles burros. e ele, sadio, acrescentava à ausência de óculos um traço de burrice própria. a inveja que sentia dos cegos, dos vesgos, dos míopes. porque esses, felizes, têm então condições de ter olhos para os olhos, para administrar o olhar, serem inteligentes, com visões do mundo, ânsia de ver sob controle. têm óculos. e ele, sem doença ou problema, quando exposto ao sol, franzia a testa e se enrugavam todos os olhos e tinha de se resignar sem inteligência a ser de modo reduzido; sem óculos.

7 de abril de 2017

eu tentava educar os sentidos às notícias que contávamos como se fossem importantes, realmente importantes. eu tentava, até felicitarmos em segredo os saltos à grande melancolia que nossa presença implica mutuamente. sentimento de nada-novo-sob-o-sol. conversando a mesma conversa, evitando os mesmos assuntos, sempre. até nos perdermos, quase infantis, em detrimento da vida de responsabilidades e obrigações, na ternura de nossos saltos. ainda não romper com os círculos de silêncio entre nós. nenhum golpe de sorte nos salvará do desencontro. depois de tanto tempo penso aflito sobre o perfume impregnado que me fica no nariz quando nos cumprimentamos. sobre o pinicar de sua barba no pescoço. sempre nos encontramos depois de caminhada ou sol forte, nada novo, os cheiros à mostra, indecentes. os corpos detidos após o abraço. observo impune a textura granulosa de sua camiseta nas regiões demarcadas pelo suor, o volume dos pelos apertados contra o tecido. fantasio paraísos mentais para fugir, como qualquer um. em desmedida, concluo rápido que nada acontecerá: optamos por perdurar ainda o silêncio. lamento a inescapabilidade da inércia, do não avanço. por imprudência e desejo, compenso sozinho, lamento, sinto inveja dos desodorantes, dos sabonetes, dos barbeadores, das cuecas.

2 de março de 2017

ao centro do país sobre uma grande pedra plana recheada de cristais
projeto místico talvez pressagiado no sonho de um padre também tomado pelos arroubos modernistas
ansiosa congênita (cinquenta anos em cinco)
erguida por candangos iludidos que foram logo limpados para o entorno de uma capital-oásis
brinca com o olhar de deus
que se interroga avião ou borboleta?
arrogância e sublimidade se confundem nas vias do eixo monumental
linhas retíssimas para homens tortuosos
mais aterrados em burocracia e poder sem escalas
uma cidade-cemitério planejada contra o código natural dos afetos
terra do você-sabe-com-quem-está-falando?
do bom-dia educado que vira acontecimento
a humanidade resiste
no chão fora dos caminhos ociosos das quadras
inventam-se trilhas de terra vermelha
atalhos batidos no meio do verde organizado dos jardins
nas luzes das casas empilhadas ou espalhadas sistematicamente
algo de esperança utópica se cria em meio ao deserto
no cansaço das pessoas tomadas de solidão ao fim do dia
brasília brasília
sempre esquecendo de acolher
a vida de quem não é do plano de quem não tem um plano
mania de horizonte que enclausura tudo todos com arcos concreto carro e céu
grandiosa espaçosa cidade
feita para se sentir pequeno

19 de fevereiro de 2017

me acredita 'que se eu guardo
prato que meu avô almoçou jantou
cocho que criou a família inteira
é por fome histórica de comer

2 de fevereiro de 2017

vingança

minha gata me ensina a fazer poesia;
quando peço um verso, se exijo uma rima:
mia.

24 de janeiro de 2017

hermeneuta afetado traduz to nobodaddy de william blake

obediente e contraventor cristão, william blake é um questionador dos valores do deus-pai. padecendo daquilo que desconfia mas não desacredita, é um metafísico que se equilibra mal, ora na razão, ora na fé. religioso e criador de sua própria mitologia, recorre a um simbolismo profundo, arquetípico e transcendental, para investigar sobre as versões das ontologias inventadas. atinge um nível de compreensão delirante ultratensionado, de difícil conjugação entre o conhecimento racional do homem diante da crença e o inominável do sagrado, fundando novos mistérios de conotação ordinária e apoteótica. em suma, é um ambivalente, amor e ódio para e contra o deus cristão. 'to nobodaddy' (palavra-valise formada por 'nobody+daddy', nome quase desrespeitoso criado pelo poeta para se referir a deus) é endereçado como uma carta, sem padrão métrico, estilizado pelo inglês arcaico e pelas maiúsculas alegorizantes. o poema, questionando um dos dogmas da sua devoção, se faz denúncia e anúncio da ruína da estória cristã. é uma profanação elogiosa que rebaixa deus às mulheres e o humaniza com paixão e maçã, ridicularizando a palavra divina, ainda que em busca dela. munido de um humanismo iluminista quase herético, o iconoclasta fervoroso põe à prova a divindidade de deus e a simbologia bíblica por meio de um apelo da razão à predileção do discurso religioso pelo obscurantismo e à constatação incontornável do desamparo dos homens. a tradução é primitiva, no sentido de se afeiçoar mais ao conteúdo, em detrimento de seu aspecto formal, e não se fixa à imagem ou àquelas suscitadas pelo poema, mas sim às relações semânticas dos versos, tratados como se em fossem linhas de prosa. o original e a tradução:

To Nobodaddy
Para Pai de Ninguém

Why art thou silent and invisible,
Por que tu és silêncio e não visível,
Father of Jealousy?
Pai do Ciúme?
Why dost thou hide thyself in clouds
Por que te escondes em nuvens
From every searching eye?
De todo olho buscante?

Why darkness & obscurity
Por que escuridão & obscuridade
In all thy words & laws,
Em todas tuas palavras & leis,
That none dare eat the fruit but from  
'Que ninguém ouse comer da fruta senão pelas
The wily Serpent’s jaws?
Mandíbulas da Serpente sagaz?
Or is it because secrecy gains females’ loud applause?
Ou é [assim] porque o mistério atrai grande apreço das mulheres?

7 de janeiro de 2017

hora da baleia

às vezes passa mais cedo, o caminhão de lixo. às vezes eu já 'tou dormindo, mas o cheiro é tão forte, o barulho é tão alto, que eu acordo. se eu 'tou acordado, corro até a janela pra ver os garis. gosto de esperar o caminhão passar pra depois ir fazer outra coisa à noite, dormir ou jogar videogame. os garis têm um apelido engraçado: cenourinhas. como será que eles conseguiram se acostumar com esse trabalho? meu pai que me disse que eles se acostumaram. ele disse também que eles não são bem pagos para isso. não sei se fico triste ou feliz pelos garis. triste porque meu pai disse que dinheiro nenhum vale esse serviço. feliz... não sei porquê. meu pai diz que é um trabalho de lixo e ri. eu rio também mas não acho engraçado. gosto de quando o caminhão começa a mexer a pá para apertar ainda mais o lixo lá dentro. faz um barulho muito triste, como se uma baleia 'tivesse chorando. acho que os garis também gostam. durmo só depois do caminhão, acho melhor. acho que dormir é como ir pro fundo do mar. quando eu acordo no meio da noite, às vezes meu pai e minha mãe 'tão brigando. se o caminhão 'tiver atrasado e passando bem nessa hora, eu gosto. mas às vezes escuto minha mãe chorando, dizendo que não é lixo. meu pai fica gritando lixo! lixo! lixo!, fico com muito medo. eu sei que ela não é lixo, de onde ela tirou isso? ele diz isso por quê? nem meu pai nem minha mãe sabem que eu acordo com a briga deles. minha mãe acha esquisito eu me interessar por lixo. um dia eu disse que o lixo é muito importante pras pessoas, e ela riu de mim. eu disse que sem o lixo as pessoas não teriam como ajudar os garis. acho que sei por que fico feliz com o trabalho deles. é porque gosto de saber que tem alguém que leva o nosso lixo pra longe. o lixo é engraçado porque ninguém gosta dele, mas tem gente que gosta, eca. eu não sei por que as pessoas choram. acho que é pra não guardar lixo dentro delas. minha mãe é engraçada. ela chora muito. eu não acho que ela é lixo. às vezes penso nela como uma baleia, nadando, nadando. meu pai 'tá mais pra caminhão, apertando com a pá.