21 de dezembro de 2017
dar rumo às memórias
motor do segredo
que se desdobra em voz
nada semelhante a uma caixa postal:
ante a impossibilidade de coexistir
uma preparação
da vida imaginada em brasília
apelando a nenhuma garantia
impossível diferenciar
solidão acompanhada e abandono
existe alguma resistência
em desobedecer ao silêncio
(meu irmão disse que tenho que me comportar)
da vida que sobra (onde?)
resta alguma tentativa:
conjugar resignação e revolta
encontrar no livro dos espíritos um panfleto
ver na televisão uma propaganda da nova honda
ir ao casa park uma ironia
premoldados brasil: desde 1983 ajudando nossos clientes a realizarem seus sonhos
não ia cortando giro ou chamando no grau
não fechava nem costurava
não ia pelo corredor
muito prudente com a direção
motivo de orgulho e medo
desejo de máquina não encaminhado
(estou com saudades do seu irmão)
manhã tarde oficina
noite supletivo
vida contrária à vida
fim de semana lavar estudar esperar fumar um
sumir para taguatinga atrás das piriguetes
sempre em trânsito (fugindo?) e cansado –
a bença da minha mãe pairava
cuidado juízo
o corpo é a lataria
deus e os anjos da guarda te guardem
o meu pai calmo como um pai
entre esculturas de latas de cerveja
os cabelos lisos cheirando à fumaça
vestindo roupas que não são dele
cigarro aceso na vela de sete dias
chorando quieto ao lado do capacete
(seu irmão disse que ia voltar)
o ronco da moto enchendo a entrada do prédio
o kiko latindo agitadíssimo
quando você vai chegar mais cedo?
eu descendo as escadas
quando você vai me levar na garupa?
eu subindo as escadas
quando você vai embora?
brincadeira fundamental:
recebê-los em casa com uma cena de velório
mamãe muito preocupada
horror diante da necessidade de se salvar e salvar
coroas de flores imaginadas no meu quarto
os travesseiros que pus debaixo do cobertor fingindo ser eu
(meu irmão disse que mais pareciam um caixão)
dezesseis de dezembro de dois mil e três
por volta das quinze horas sgcv em direção à epia sul
abre-se lentamente uma fenda na realidade
toma forma um acontecimento
menos próximo da gravidade
mais entregue ao curso do outro
um carro à vista e uma moto invisível
no instante suspenso do voo
alçado por um cálculo do acaso
entre a curva e o encontro
antes de pousar brusco e se juntar às pedras
aos 20 anos e eterno
uma aprendizagem: um acidente
um acidente é uma certeza
( )
cuidado juízo
o corpo é a lataria
deus e os anjos da guarda te guardem
9 de dezembro de 2017
ainda não cheguei completamente lá. meus filhos estão grandes; já sou vó e tenho três netas e um netinho que já vindo. não posso mais me movimentar muito, passo meus dias assim inventando o que fazer, acompanhando o povo pelo whatsapp, pedindo notícias, rezando... vou todo dia à missa aqui da minha varanda, mas a fé não tem mais tanta serventia. celebro as visitas da minha e da nossa família, minha alegria é assim, dar bença, prosear. fico aqui teimando contra a minha doença, vendo meu corpo me emperrar cada vez mais dentro de casa. fico aqui teimando, não entrego os pontos, saio com esforço mas saio; é mais fácil vocês virem até a mim do que eu até vocês. a menina do salão vem pintar o meu cabelo, arrumar a minha unha. no sacolão eu ligo e o rapaz já deixa tudo separado, coloca as compras até no carro pra mim. não dou conta de limpar a casa sozinha, arranjei uma mocinha que é boazinha só cê vendo... vou devagar e assim com fé faço as coisas. mas não posso com os sábados à tarde. não posso. acho uma hora arrastada e difícil de passar, aquele depois do almoço. nada na tv: olho pela janela e vai pela rua um carro de som vendendo não sei o quê... baixinho uma galinha de quintal cacareja cócócó... o sol queimando a praça toda, o vento sacudindo as árvores... ninguém na rua, o som do semáforo trocando as luzes. aquele paradão. aí, a vida pesa. pesa. não quero ser preocupação mas sei que preocupo. tá tudo bem, os meninos estão todos bem e é o que me importa. me sinto velha e sozinha... e fico calada. a velhice, joão, é o tempo da vida em que a gente é deus e, sendo deus, fica guardando grave o silêncio... o mesmo silêncio.
29 de outubro de 2017
25 de outubro de 2017
se empresto minha voz ao poema, tentando alguma declamação galante, um bom fraseado que me é falso, e que o poema pedia, veja, que o poema pedia, se leio um poema em voz alta, com a devida detenção nas palavras, fico perdido nos versos, entre os versos, fico perdido naqueles que me escutam desorientados pelo ritmo que desconheço do texto. fico perdido diante daquele cuja voz me acusa de não saber ler poemas, então regulador inesperado de poemas e não poemas e que julga que o som bem soado resume o poema. fico perdido naquele que me toma o alcance do texto dizendo que "é assim que se lê um poema", fico perdido me perdendo sem os versos e os sons e o branco da página. perdendo o poema de mim, fico perdido pelo gesto rude e pela poesia impossível daquilo que nos lia tão próximo. fico mais sozinho no amor.
31 de agosto de 2017
8 de agosto de 2017
parada
abram abram alas
o poema vai passar
cheio de plumas de rasuras
espaço! abertura!
é grande a criatura
vejam ele lá
extravagante vem
galopando selvagem vem
uma cabeça outras mil e cem
seis mil braços pernas bocas olhos
é um monstro! melhor
rezar pai-nosso amém
o poema vem vindo
atenção há tensão
para os versos para os sons!
cuidado com seus corações
é um bicho que come de tudo
sentimentos sobretudo
crianças velhos e pães
é alta e feia a criatura
caminha com alguma formosura
mas tem as pernas tortas: tortura!
há lá sua elegância
um metro estranho: extra vagância!
exibe rimas e ternuras
mil dentes trinta mil unhas
todas sujas todos gastos
seus estilos? velhos! ritmos? fracos!
o poema vem vindo
chegando e vindo diz assim
com uma voz horrível
sem fôlego e carmim:
"corr am! fuj am! ráp-id-o!
esp-a-lh em-sep ar...a lo-nge
vem v in...do v em ta mbém
o MUN-DOa trásd emim!"
apostem em suas pernas!
fogo! água! tragam
água pro fogo! há
mais fogo para a água!
o mundo o seguiu! imundo!
o poema não conseguiu
descobrir a charada:
o que é se acende
quando se apaga?
acudam! corram todos
vão pra casa! já!
perigo outro monstro maior
vinda enorme ainda tarda!
O MUNDO! quer saber o-que-é-o-que-é
se ele também chega
e não há gente fugida
ai! não vai sobrar mais nada!
passa! nem poema nem amor!
"sariema rima com dor?"
escapole daqui! fugir!
a charada, a resposta
posta a aposta
pés pelas mãos corram
pernas corram pernas pernas
é a vida é a vida
3 de agosto de 2017
hermeneuta afetado diante de a total stranger one black day de e.e. cummings
duas personagens possíveis chegam ao sujeito lírico do poema: num dia escuro, um completo estranho ou estrangeiro ("a total stranger one black day"). essas personagens forçam a interpretação a concebê-la como uma só, uma vez que não há maiores designações no poema a respeito dos atributos daquele ou daquilo que chega. alguém ou algo desconhecido chega. e o sujeito lírico, obscuro e complexo como se espera que seja, por exceção do acontecimento poético estava distraído vivendo até ser defrontado pelo contato com a dita personagem. tal encontro de violência e arrebatamento ("knocked") em decorrência de sua presença estranha ou estrangeira, ambas no entanto afirmativa e inteiramente desconhecidas, aviva ou retira ("living" [ou talvez "leaving"]) com muita intensidade ("the hell out") o sujeito de seu estado de distração ("of me -").
inicia-se, entre travessões, um movimento duplo de contastação e de questionamento que advém do encontro do sujeito com o estranho estrangeiro: encontrar um perdão difícil ou em um caminho dificultado ou esclarecer o gesto de quem realiza o perdão com dificuldade ("who found forgiveness hard because"). porque há uma confusão a respeito de quem realiza o quê na circunstância de perdoar e ser perdoado ("my(as it happened)self he was"). ele [o estranho ou o estrangeiro ou o estranho estrangeiro] era ele [o sujeito lírico]. logo, a personagem estrangeira é alguém, não algo. mesmo que não haja explicação do contexto e do motivo do perdão, é clara a mistura identitária entre a personagem e suas características e o sujeito lírico.
por fim, o sujeito reconhece a sua tamanha condição na personagem que era tomada como inimiga, tornando-se dela amiga inseparável ("- but now that fiend and i are such/immortal friends"). conclui-se que os perdões são feitos; as relações, conciliadas. a partir deste desfecho, se soluciona a confusão identitária entre o sujeito lírico e quem lhe chegou, estrangeiro ou estranho estrangeiro. sendo cada um em separado ("the other's each"), preservam individualmente o traço amigo que lhes possibilita comunhão.
uma ressalva se faz necessária sobre a versão interpretativa deste poema: trata-se da indeterminação inicial quanto à natureza daquele que chega como personagem. o estranho ou o estrangeiro, ou ainda o estranho estrangeiro, só é reconhecido ao longo do poema como tal pela condição de haver partilha de humanidade entre ambos. antes, era ser ou coisa amorfa, talvez a própria estranheza a bater portas e abrir infernos. se sujeito e personagem comungam o corpo, a cultura, o pensamento, a visão de mundo, tal imposição de sentido foge ao alcance interpretativo do texto do poema. tende-se a acreditar que o sujeito lírico e a personagem compartilham, por humanidade, da capacidade para a linguagem e da intimidade com a língua. quem ele efetivamente é, no entanto, fica em aberto. se este fosse um poema explícito de amor, diria o sujeito lírico que "não fosse o jeito de linguar, quase nos perderíamos um no outro". mas o amor escapa a este poema e à virtude da verdade.
1 de agosto de 2017
ainda assim brasília
22 de maio de 2017
7 de abril de 2017
2 de março de 2017
ao centro do país sobre uma grande pedra plana recheada de cristais
projeto místico talvez pressagiado no sonho de um padre também tomado pelos arroubos modernistas
ansiosa congênita (cinquenta anos em cinco)
erguida por candangos iludidos que foram logo limpados para o entorno de uma capital-oásis
brinca com o olhar de deus
que se interroga avião ou borboleta?
arrogância e sublimidade se confundem nas vias do eixo monumental
linhas retíssimas para homens tortuosos
mais aterrados em burocracia e poder sem escalas
uma cidade-cemitério planejada contra o código natural dos afetos
terra do você-sabe-com-quem-está-falando?
do bom-dia educado que vira acontecimento
a humanidade resiste
no chão fora dos caminhos ociosos das quadras
inventam-se trilhas de terra vermelha
atalhos batidos no meio do verde organizado dos jardins
nas luzes das casas empilhadas ou espalhadas sistematicamente
algo de esperança utópica se cria em meio ao deserto
no cansaço das pessoas tomadas de solidão ao fim do dia
brasília brasília
sempre esquecendo de acolher
a vida de quem não é do plano de quem não tem um plano
mania de horizonte que enclausura tudo todos com arcos concreto carro e céu
grandiosa espaçosa cidade
feita para se sentir pequeno
19 de fevereiro de 2017
2 de fevereiro de 2017
24 de janeiro de 2017
hermeneuta afetado traduz to nobodaddy de william blake
To Nobodaddy
Para Pai de Ninguém
Why art thou silent and invisible,
Por que tu és silêncio e não visível,
Father of Jealousy?
Pai do Ciúme?
Why dost thou hide thyself in clouds
Por que te escondes em nuvens
From every searching eye?
De todo olho buscante?
Why darkness & obscurity
Por que escuridão & obscuridade
In all thy words & laws,
Em todas tuas palavras & leis,
That none dare eat the fruit but from
'Que ninguém ouse comer da fruta senão pelas
The wily Serpent’s jaws?
Mandíbulas da Serpente sagaz?
Or is it because secrecy gains females’ loud applause?
Ou é [assim] porque o mistério atrai grande apreço das mulheres?