24 de novembro de 2018

angústia

seus olhos escuros mãe obscura
lúcida descoberta
o português é provisório
da que tenho dentro da boca
ganho um nome a ser fazer próprio
dou ao mundo este órgão
em busca de um livro de segredos
textos luminosos páginas brancas
balbuciando a reza que ouvi dentro da água
mãezinha do céu eu não sei rezar
só sei dizer eu quero te amar

aprendo este amor
sou tornado usuário
de uma língua que não sei o nome
materna maternal
tomo de empréstimo as palavras
para as coisas os pensamentos
os sentidos não visíveis
um nome é necessário mas nunca suficiente
há ainda um mal
impossível de recobrir
haja portanto fé

obscura mãe seus olhos escuros
uma religião se anuncia
em casa uma canção ingênua
e a morte a ser conquistada
por não derrubar paredes
e restar um corpo feito para depredação
"um dia vou cortar sua língua fora"
definitivamente
e cantando com voz de me ninar
azul é teu manto branco é teu véu
mãezinha eu quero te ver lá no céu

17 de novembro de 2018

alguma leveza

receber com tímidos passos o pesar
dos homens que não sabem dançar:
dois pra lá
dois pra cá

13 de outubro de 2018

anti-vestal

romper a paz dos dias
pacificá-los à força

queimar as árvores
purgar nenhum pecado

secar os rios
expandir os desertos

devastar as cidades
admirar as ruínas

destruir as rotas
que não haja estrangeiros

invadir as casas
que ninguém as invada

apagar os fogos
acendê-los sob os corpos

rasgar os véus
que não guardem nudez

estuprar as virgens
depois nomeá-las imaculadas

matar as crianças
imolá-las com sais e cinzas

humilhar os homens
que se curvem mais

arruinar as mulheres
que se pareçam com os homens

sangrar os animais
prazer

fazer honrarias e homenagens
não despertar a fúria dos deuses

rezar à deusa héstia
que seja de novo firmada

receber amor genuíno
não haverá punição

ouvir o silêncio
se lembrar da história

ouvir o silêncio
completamente

aprender a receber abraços
aprender a dar abraços

4 de junho de 2018

melancoilha

emerge
coisa na água boiando
solo negro e desolado
apartada dos nomes, da terra constrangida
sem margens certas
visível aos ventos
nadas: horizontes, sóis, luas, colunas de neblina
desaparecem, aparecem
monotonia das nuvens, dança das torrentes
existe insulada
sem cães magros e esguios
sem anjos entediados em meditação
compassos, mapas, réguas, globos
sem a morte a cavalo pintando de roxo os campos
sem espelhos prateados
sem a luz contaminada de deus
apenas a violência da natureza
os desastres à vontade
residência de um só
sem mundo
caído de nenhum céu
produto de crueldade alguma
o tempo imóvel gotejando os dias
distraindo-se de si nas praias escuras
pensamentos confusos
visões de correspondências
sem prazeres
o prazer mórbido da ausência de prazeres
o homem, este homem
espontaneamente
não encontra no universo
um sentido para os signos
um símbolo à altura da ausência dos nomes
preenche-se com areias soltas névoas brancas
sideração perpétua sobre as espumas
pudesse criar mitos sobre a origem e o futuro
pudesse inventar uma gente de sangue leitoso e ralo
pudesse curar desesperos com a calmaria do tempo
maldições: não vacilará ante os próprios passos, não haverá caminhos
não divagará a mão sobre a cabeça de seus filhos, não haverá prole
não sorrirá às mulheres, não haverá companhias
não se ombreará aos outros homens, não haverá outros
não construirá civilizações para executar com razão a barbárie, não haverá casa que não seja ilha
sob as paisagens o homem desce a si
rente a si a ditar a própria queda
lança-se ao curso dos vapores
traça um rastro que não se segue
uma cortina vertiginosa de fumaça o veste
nenhuma nostalgia nenhum ódio o acompanham
talvez um poema aguardasse ser achado nestes nadas
vindos os segredos escondidos nos versos
os nomes arrancados da espera por nomeadores
o homem, este homem apenas reconhece a si mesmo
reverencia a si mesmo, honra a si mesmo
contempla-se no silêncio antecede sua pergunta
"de que servem fluidos, terras,
horizontes, sóis, luas, colunas de neblina?"
e submerge

20 de abril de 2018

às pressas, na vontade de esquecer, foi criado um porão. abismal e opaco, feito para guardar e amortecer tudo do tempo. caído da paisagem do mundo, se encheu do que não se emprestou sentido e hojedorme gigantesco. ressoa em seu sono alguma história interrompida, reverberando bandejas de prata de um casamento que não vingou, caixa de ferramentas que não tem dono, livros escolares que não educam ninguém, uma cadeira de balanço que simula o ambiente uterino, carrinhos de controle remoto que não são mais brincados. o porão fica próximo à memória da pele, mas distante do toque possível do despertar, do arrepio. e sonha como uma tempestade no ferro velho. sonha com seu criador, deixando vestígios ao ranger em seu sono. às pressas, a tensão que o fecha treme, recua ante os convites à claridade e as recusas dos mistérios. o porão ressona já cansado de circular a morte. fechado, o porão é tentativa de não escutar o ruído que as coisas fazem quando estremecem ao gosto da imaginação e do silêncio. aberto, é eco da loucura íntima do que é de som e escapa: você é aquilo que apaga (apaga aquilo que há) você é aquilo que você apaga (apaga aquilo que há) você apaga vogê paga (apaga aquilo que há) você apaga o quê (apaga aquilo que há) apaga aqui(o que há) apaga aqu

29 de março de 2018

como quem tenta roubar o descanso da falta de palavras inventando brincadeiras, você olha para cima e dobra o rosto em alguns pensamentos. apesar da nossa aparente distração, você me pergunta o que vejo quando olho para o céu. e se responde sem me dar prazo: "vejo um mar sem ondas. um deserto multicor. o império do sol. o tédio dos giros dos planetas." e eu acho graça das imagens naturais, seria o olhar sobre o mundo também natural? seria essa visão extensa na verdade apenas uma percepção daquilo que se espreme entre as lâminas de um microscópio? "a vigilância de deus. vejo a casa das almas limpas, das virgens e dos anjos rechonchudos. a festa e o tribunal da providência. o tumulto ordenado do universo se criando e se desfazendo. vejo a lona do circo que é a humanidade." e rio desistindo da sua mania de transcendência mais uma vez próxima à analogia cristã, eu dentro da minha ironia ingênua. "vejo um desfile branco, cinza e preto. a grade das coordenadas cartográficas do globo. uma folha infinita. as linhas invisíveis das rotas aéreas. a ganância crescente dos prédios. vejo o peso sobre atlas. vejo o alívio dos românticos." e me desconcerto com a dificuldade de dar ternura ao que foi um tempo colegial, nosso presente embaralhado em lembranças de lascas de madeira de lápis apontado e idéias difíceis de expressar. "vejo o manto da virgem, que se estende calmo, pleno. um engano estratosférico de gases e vapores. o pé de feijão sumindo. a alegria combustível das estrelas cadentes. um lugar de onde se cai. um relógio sem ponteiros nem números. a casa dos pássaros." e fico curioso com a possibilidade de algum futuro adiado das bobagens da abóbada celeste, um futuro que seja encontro nosso assim terreno, portanto indeterminado. "vejo a paleta das cores do seu silêncio: variações de azul, cinza, preto, azul, vermelho, rosa, laranja, amarelo, branco. vejo uma lua à espera da alvorada. as estrelas e suas gatas: clarice, dora. vejo uns mapas que levam a nenhum tesouro. o abismo que nunca olha de volta. vejo o céu que você guarda dentro. vejo o próprio céu". sob a esplendorosa indiferença diante de nós, pude sorrir diante da descoberta.

8 de fevereiro de 2018

batido de vento de dia e curado de lua à noite, os montes recortavam o horizonte todo em dois como dois arcos de paisagem dividida de nossa casa. a família sempre ficava sob as dobras dos barrancos e sob a família ficávamos nós, os filhos, que chamamos pai de pai, mãe de mãe. daqui todo o mundo via as curvas longes e tortas, só ao trato do sol e chão seco incerto para o pé da gente e dos bichos. ninguém pisava os montes porque nos montes ninguém tinha o que fazer porque tudo da vida ficava dali para trás, sem precisar ultrapassar aquele cerco pedroso e checar do outro lado nada que havia lá. para pasto não servia porque não crescia verde e a terra se desfazia com a força do pé. para comida também não servia porque se rasgasse a terra mais terra se fazia e era só farinha de chão. a água que se derramava sumia rápida e ficava já seco o caminho do úmido, como se os montes fossem assim um grande deserto amontoado de jeito firme de pedra de areia mas frouxo. nunca chovia e se chovia nunca a chuva ia ou escorria. diziam que os montes eram enfeitiçados porque impossíveis de guardar vida e aquela pobreza imprestável juntava assim mais poeira e mistério. diziam que no passado onde nada existia aquilo era floresta de força poderosa, jardim da bíblia, onde deus criou um homem que depois criou uma mulher que depois criou o mundo e deixou aquilo ali esquecido para dar sujeira e contorno.

a casa todo dia era cheia de pó fino que vinha dos montes durante à noite e dia era dar vassoura ao chão e bater os panos e ventilar os quartos pelos atalhos certos em homenagem ao asseio de mãe. pai seguia calado na sua vida de dar sobrevivência à família com seu trabalho de roça e bicho. dispensava nossa companhia, gostava da família mas segundo mãe amava ninguém e assim ela se sentia e era assim. depois da arrumação, a gente inventava histórias para dar tento aos montes e ao silêncio de pai e seu amor de ninguém. dos montes a gente só tocava a poeira porque não tinha chance de subir ou escalar, e punha a cabeça para imaginar o que era aquele mundo depois dos montes que ninguém fazia questão de nem saber se é mundo ou só vazio bobo, buraco de abismo. e aí os montes eram rolha de um paraíso só de besteira da criação nossa. ou se debaixo desse juntado de tudo que é poeira e areia e pedrinha e pedregulho rodando no vento do planeta que eram os montes existisse uma piscina enorme de água limpa ou preta de barro. e aí os montes eram um vaso de barro com mais barro dentro. o silêncio de pai dava para a gente pensar em um homem quieto cheio dos motivos estranhos, imaginando que nosso pai ali era para tampar ou molhar essa linha longe no fim do céu com o fim da terra dos montes. porque sempre voltava para casa marrom com suor de lama no corpo e escolhia alguma tranquilidade para terminar o dia vendo o sol descendo e a poeira entrando e beijando nossas cabeças confusas.

a gente já meio sabia do descanso de pai, que às vezes se tocava pra dentro do quarto e ficava escurecido no escuro fazendo nada atrás de nada o dia inteiro, ruminando tempo de cabeça sem descer o corpo para trabalho de sempre de roça e bicho. passava com garrafa cheia de água e copo de boca trincada e bebia seguido silencioso. mãe ficava colada na porta ralhando, pau de mé, quem tem de dar à terra e aos bichos não pode ficar nessas virações, anda trabalho e chega de gole!, e surrava doida a porta e pai gritava de lá, me deixa descansar, me deixa! descansar!, e a gente ficava com aquilo ouvindo e tremendo dentro, com o barro do corpo agitado e o olho brilhando de água para derreter e cair. mãe dizia que ele era alcóolatra, e a gente estranhava, palavra de pouco giro na nossa boca; mãe dizia que ele era muito, muito doído, cheio dos motivos, e a gente calava e entendia. mas pai não era doído em lugar nenhum. porque pai achava que não falando não falava, mas dizia tudo quando agia na roça, nos bichos, em mãe e nós. e se beber era descansar e isso punha mãe doida, era melhor não doer e pedir canoa e se entocar para viver num rio distante atolando a remo comendo das minhocas que davam na piscina podre do fundo dos montes. ou ir para o nada besta do paraíso e ficar ali por conta das frutas podres esquecidas de apanhar. mas depois do descanso pai saía do quarto e mãe entrava e encontrava garrafa e gritava, é água, é água. pai fazia sério e saía do quarto ainda pai, para o trabalho de sempre de roça e bicho, para a tranquilidade no fim do dia e mais importante para os beijos para nós porque vinham também descansados para fazer descansar nós da imaginação do que seria o silêncio do barro e a rolha que era o amor.

até que depois do descanso um dia pai se decidiu desaparecer para os montes. não fez de cuidar da terra e dos bichos, não se molhou de lama do trabalho nem tampou as necessidades da família e da casa. não pediu para tirar prato da mesa dizendo que iria passar vida agora nos montes e adeus, vida agora por subir e descer os montes até sossegar indefinido. não se pôs botina nem chinelo, nada de pé calçado para aquele chão frouxo. e nossas cabeças ainda mais confusas trabalhando com as contas de quantas minhocas para comer tinham socadas naquela terra, da limpeza da água da piscina para beber e banhar, da proximidade perigosa com aquela burrice para depois dos montes. todos cálculos sem prestar. ninguém sabia se aquilo era o efeito do xingado pau de mé ou decisão pensada de pai ainda pai e seu trabalho de sempre. ninguém também fez jeito de ir atrás porque eram os montes e era lugar de nada além de curiosidade e entulho, só deixou ir porque pai, muito muito doído. e saiu rasgando vida nossa afora deixando mãe, nós e até garrafa de água para a única urgência de ir embora para os montes. deixou uma intranquilidade comprida assim esticada nas nossas caras de ver a poeira entrar ao fim do dia sem beijos. e mãe chorosa clareando o quarto antes escurecido aos gritos de maldições, que suba num pedestal invertido e se meta num buraco daquele chão bambo, que morra seco cheio de poeira na boca. e a gente arrepiava, brilhando olho, derramando água e amolecendo barro.

os dois arcos por cima de longe eram só rachadura e o vento trincando aquela sujeira só dava caminho de pó para a casa. os bichos secavam com a falta de trato do pai, a roça murchava igual feito nós. ninguém queria fazer semelhança ao descanso de pai e já se desistia da ideia de também passar e escurecer, mas o jeito de deixar sair a lama que se fazia dentro era imaginar alguma vida dos montes, a vida nossa perdida pelos montes. nosso desejo era só de ser pó e sair por aí rodando e ser espanado por mãe. mãe minguava de tampar os buracos de pedestais que tinha amaldiçoado, deixava copo d'água parado em cima da mesa para quando pai chegasse e se refrescar, molhar a boca e ganhar vida junto a nós de novo, sem fazer conta de nada. mas nunca. com o sumiço os montes tiveram mais mistério juntado àquelas dobras. porque de longe se via que o vento que lá soprava mexia naquelas curvas, os arcos arquejando e rodando a poeira para casa. os montes estavam parados de sempre mas se mexiam. e o que era vento para explicar aqueles feitiços de deslizar e de remexer a terra e as pedras, para nós era andança de pai. os montes mexendo eram o pai e mexendo-se o pai eram os montes. com ou sem garrafa, na piscina. assim dava notícias para nós. por vontade decidida ou impensada.

de perto aquele chão mole ainda continuava cedendo para nosso pé, o mesmo firmamento de farinha amontoada que engolia água e talvez até gente. mas não para o pé de pai, que nossa imaginação endurecia para fazer caminhar seco e escorregar bêbado de água pelos barrancos. ninguém via nada de gente andando nos montes mas a gente podia jurar um vulto de forma quebrada que ondulava junto às pedras: era pai dia e noite fazendo cumprir sua vontade. era pai sem canoa remando num rio de terra que corria deslizando enquanto mãe mastigava na cabeça era água, era água. pelos caminhos incertos, pai chegava e se espalhava em casa pela poeira ao fim do dia. os beijos confusos eram uma secura no céu da boca, um ardido no nariz. mãe enganava o asseio perseguindo o vento e batia vassoura com força no chão para afastar o pó. porque o pó lembrava pai. e mãe se sentia sentida e doída também de ter pai distante ou transformado nos montes. vigiava o vento pela casa fingindo visita. a lida com a roça e os bichos foi passada para nós contra a nossa vontade porque restava alguma esperança rachada de ver ainda pai. mas pai era lá vulto e poeira. aprendemos sem molhar olho e derramar água a guardar o suor de lama do corpo no corpo e cultivar em segredo amor e silêncio. era tampar um jeito nosso de ser menos espanado.