27 de março de 2020

irmãozinho querido, não sei contar tudo nem se caberia a mim. mesmo que soubesse, não poderia; não por maldade, mas impossibilidade. ouso alguma palavra para inventar uma casca, endurecer a pele. estes versos – meio bobos, meios sérios – querem ser um abraço e portanto servem para revestir o desamparo; logo, são insuficientes. a violência de hoje continuará e a que inevitavelmente está por vir chegará – em seu tempo. é preciso ter um pouco de esperança no futuro ou no passado: ambos são formas do desconhecimento e, como tal, podem dar ação à invenção de um presente que valha a dignidade e a alegria de uma vida colorida, coloridíssima. escrevo para redescobrir, ainda que você já saiba, que as palavras, assim como nós, falham e não são livres – e por isso mesmo sempre podem, podemos algo melhor.


i.
todo sentimento é confuso
confusa é toda infância

temem algum desastre
um perigo não perigoso

papai ameaça bater
por andar na ponta dos pés

mamãe grita e dá tapas
quando vê rodopios e piruetas

nosso irmão para provocar
imita seu gesto sua voz

na escola sorriem
e olham torto

assim é o rosto do mundo
aos oito anos de idade


ii.
sobre o que vai dentro
escondido e à mostra

não há o que se dizer
a mais do que está dito

os joelhos se dobram
e a redenção não vem

o corpo é mapa do outro
vertiginoso tesouro

as linhas as luzes
demarcam o invisível

assim é o nosso curso
apesar dos empenhos em fugir

desde pequeno já nos figuram
a determinação do ódio


iii.
jeitos já são trejeitos ou pintas
a sensibilidade é condenável

um destino de ofensas talvez
também pela cor da pele

dia a dia se refaz e se renova
a contragosto o desamparo

esta infância insiste no tempo
contra a urgência de crescer

de todas as cores comuns
o azul ou a penumbra


iv.
entre o medo
e a expressão

entre o risco
e a folha de papel

entre o desejo
e o lápis de cor

surge à vontade
o desenho:

poças de sangue
caveiras que choram

árvores sem folhas
cigarros garrafas

homens desmembrados
entre cacos de vidro


v.
"você vai morrer
de tanto rir"

"você vai se contorcer
de cosquinhas"

sem supervisão de pai,
brincadeira entre irmãos:

começa em paz,
acaba em chateação

de repente um cai,
bate a cabeça e – NÃO


vi.
uma infestação de toda praga
como se vazasse da casa

para o quintal em meio à noite
por baixo das portas

dentro as janelas fecham
a escuridão nos corredores

três pontos brilham sozinhos
na sala como uma meditação

uma fumaça rodopiando
ele se rarefazendo

os olhos vibram enquanto um
cigarro queima as horas

à fuga asquerosa dos bichos
se levanta sorrindo com gosto

papai envolve as cobras na mão
falando nas línguas bifurcadas:

"existem tantos amigos do fogo
enquanto o jardim se incendeia"


vii.
o ruído do balanço aos ares
é o som primevo da felicidade

o mundo é bom e belo
até que descemos o escorrega

os castelos murados
se desfazem com o vento

de repente somos adultos
vida e gangorra se assemelham

no fundo do bolso guardamos
um pouco da areia do parquinho


viii.
dorme, irmãozinho
deixa vir o descanso

banho tomado
dente escovado

brincamos muitos anos
nesses curtos poemas

que o sono ceda
aos sonhos estranhos

experimenta este chão
difuso e movediço

enquanto o corpo repousa
e a alma redesenha os fantasmas

deixa o pesadelo sair
de dentro do armário

vem ele todo monstrengo
contar o que sabe para nós:

"o segredo são os ursos, os lobos"
ou "é tudo coisa da imaginação

rugindo rasgando devorando"
mentira e verdade são uma só

há uma descoberta logo ali:
somos nós o bicho-papão