21 de julho de 2022

hermeneuta afetado às voltas com it may not always be so;and i say de e.e.cummings

o valor de um soneto é o seu movimento: ascendente, descendente, transcendente, vai de um estado lírico a outro, buscando por, senão resoluções precárias, externação de conflitos internos, afirmação do direito a afetos ambíguos, lapidação de declarações contraditórias, falseamento de si em lamentos dilatados, ocultação de dores magníficas em formas mínimas, cultivo da prolixidade e do preciosismo beletristas, invenção de futuros possíveis e mundos imaginários, etc. o rigor da forma estética se contrapõe à variedade criativa dos enleios dramáticos ou sublimatórios propostos em seus versos, e o soneto, assim, representa infinitamente em sua comunicação lírica a complexidade dos estados da alma humana e seus voos. no tratamento de despedidas e separações amorosas, o gesto erótico se expressa por meio de uma gramática já gasta na cultura: choros chuvosos, tristezas em tons de azul, apatias brancas, rememorações em sépia, lutos escuros e prolongados; quanto às espécies de gêneros da poesia lírica, os especialistas fixam elegias, nênias.

tema eleito deste soneto (cuja declamação musicada por björk recupera uma camada de linguagem poética há tanto esquecida da arte da palavra), cummings desdobra o sofrimento grandioso em metro decassílabo e rimas interpoladas e cruzadas e em duas estrofes que somam os famigerados quatorze (8+6) versos, rezando bem e torto a cartilha italiana. partindo da constatação da transitoriedade do amor, o sujeito lírico recorda suas experiências eróticas, contrastando a sensibilidade da experiência sexual com os recortes do corpo da amada: lábios, dedos das mãos, coração, cabelos, silêncios, palavras: todos lançados a um passado ou redesignados a um novo corpo que não o do amante, que então canta seu lamento. todavia, como quem sofre diante de uma novidade a ser inaugurada pela condição de liberdade da amada, o giro ético do eu é o ponto de inflexão do poema: por meio dos votos maiúsculos de alegria amorosa, consuma-se em gesto sacrificial que sela o afastamento o término. a ruptura, por meio dessa atitude conciliatória de cumprimentos ao novo amado, incita a comoção do amante condensada em um rosto virado, perdurando tal solenidade no canto longínquo de um pássaro habitante de terras perdidas.

para além dos alívios terapêuticos que a leitura possibilita por meio da identificação à sua voz e da recepção de sua sabedoria, o poema também se soma a um modo de elaboração do luto de nossa moderna condição congênita de desamparo. ousadias genéricas: um poema é sempre uma experiência de despedida e de encontro; ler, escrever um poema: dizer adeus e saudar. confissões: comove-se também este hermeneuta afetado, que elege tal soneto como meio escamoteado de se traduzir em expressão subjetiva. homem já cansado das letras, comete, entre a brincadeira e a seriedade de sua tradução, pequenas inscrições de si ao optar pelo gênero linguístico masculino para designar o referente-amado, discreta alusão homossexual a que não se dispõe delongar em seu ato transcriativo. em seu exercício tradutório, também se autoriza inserir recursos gráficos não contidos no soneto original, valendo-se do estilo de cummings para perpetrar pequenos delitos (perfeitamente perdoáveis) em nome de uma solidariedade compartilhada com o poeta norte-americano de seus vícios tipográficos. de resto, são compensações, lampejos, aproximações, fracassos, esconderijos:

não será pra sempre; portanto canto
se seus lábios, amados, tocarão
outros; seus caros dedos fisgarão
outro coração (o meu não há tanto);
seus cabelos noutro rosto são panos
(conheço) de silêncio, ou então
falas gostosas que, gemidas tão
cheias, ficam retidas em recanto;

se assim deve ser, se assim deve ser —
diga algo, amor, palavra-ferida;
eu, talvez, ao seu outro (de mãos dadas):
De mim receba alegria e dádiva.
Rosto à prova, ouvirei longe a vida —
cantar de pássaro longe do ver.