11 de dezembro de 2014

misstereee

myein (v): to close [eyes], to shut [mouth].

a iniciação ao mistério: a mostração de uma verdade essencial, de uma coisa escondida que se revela. o sentido oculto que permite àquele que foi iniciado uma aprendizagem sobre o corpo e sobre a alma.
condições: experiência de quase-morte e de renascimento subseqüente. só se adentra ao mistério a partir do desconhecimento e do profundo sentimento de que há algo a ser consagrado ao nível do corpo (olhos cerrados, boca fechada), algo que não encerra a totalidade da alma.
o ensinamento apreendido concerne à sexualidade: por aquilo que é convocado ao nível genital não comparecer como registro de diferença, como marca singular de determinação, o homem é iniciado à angústia como a verdade dos sexos.

8 de dezembro de 2014

erótica do pé-da-letra

toda palavra – todo sentido – é bendita quando ao pé do ouvido.

13 de novembro de 2014

faticidade

send (v): send forth; throw, impel; head for; cause to be delivered or conveyed; make to go; journey.
envoy (s): messenger; message, sending; one sent.

na testagem do canal de comunicação, importa-se o estabelecimento de um meio, apresentando provisoriamente a mensagem como preenchimento e brinde enunciativos. primariamente, ela serve para abrir uma trilha, acabando por pairar em busca de destinatários. no entanto, uma vez conquistado o canal, o que dirige o traçado de seu caminho aberto é a angulosidade da mensagem.
mas o que se envia em uma mensagem? palavras, intenções, gestos, o ser.
em um poema, diz-se que o envoi é um fecho de endereçamento e despedida, em busca de possíveis leitores, meio-fim/canal-destinatário por excelência. depois da labuta criativa, o lançamento.
em uma conversa, diz-se que há um assunto latente aos turnos. algo (a mensagem) que diz sobre algo (o assunto) de algum modo (a fala). quando ocorrida pessoalmente, a interação se enriquece e a transmissão verbal do enunciado escapa à articulação dos canais possíveis. a espera do receptor também funciona como um regulador do endereçamento do emissor; daí se conclui que a mensagem se modula de acordo com e está suscetível às reações do receptor de um modo quase involuntário, ainda que a comunicação seja muito monitorada. toda conversa é uma dança de apertos e frouxidões. a demora na emissão da mensagem é também seu próprio envio: uma vez formado um canal, as vésperas da mensagem é também mensagem; algo já se enuncia antes de se dizer de modo articulado. de modo mais radical, a ausência de mensagem é também mensagem. fala-se somente na medida em que se espera ser escutado; nesse sentido, o receptor não precisa ser necessariamente algo ou alguém imediato ou presente. às vezes, a mensagem importa pouco em uma conversa, tornando-se apenas um pretexto que surge no percurso (a conversa mole) para o estabelecimento de um canal (conexões, intimidades, afetos, curas). quando enviada, a mensagem pode se confundir com o mensageiro. como resposta, o que sempre se espera é pelo corpo de palavras do Outro, que reage e reconhece aquele que(m) fala como digno de linguagem. a faticidade do emissor é a ética do seu receptor e vice-versa. conversar é a possibilidade de abraçar formas de alteridade dentro de si, rotineiras, absurdas, conhecidas, estrangeiras, domesticadas, insubmissas, etc.

11 de novembro de 2014

besouro

o nado afogado
na bacia, de vôo baixo;
diversão dos gatos.

9 de novembro de 2014

água mole

a pedra e o calango
na chuva: dureza suja.
a casa em molhança.

7 de novembro de 2014

as quatro paredes, duas a duas em paralelas, uma necessariamente vazada para a porta, encerram um ambiente. reboco e algumas camadas de tinta (às vezes dispensáveis) para ocultar a nudez dos tijolos, se houver tijolos. no que se refere à configuração das paredes, um indicador de tristeza é a presença ou não de outro vazamento enquadrado, receptáculo e portador da janela. no chão, qualquer coisa que o revista de modo que dê continuidade ou à composição do ambiente ou ao restante do que é chão casa adentro: madeira, granito, cerâmica, cimento, resina, terra. a decoração do quarto vai ao gosto psicológico e estético do dono (do quarto, mais sintônico; ou da casa, mais distônico): ensaiam-se estantes, bancadas, escrivaninhas pelos vãos; tapetes e almofadas a concentrar conforto e sujeira; quadros, estantes, às vezes espelhos, a ocuparem os vazios das paredes (algumas se escondem em belos envelopes de papel adesivo ou por trás de armários). mas dentre a mobília comum, encontra-se uma indispensável e, portanto, essência e necessidade: o faz de um quarto um quarto é a cama. retiram-se estantes, bancadas, mesinhas, o quarto prevalece. tapetes, pufs, o quarto prevalece. quadros, armários, espelhos, o quarto prevalece. retira-se a cama, o quarto se descaracteriza. o quarto, sem cama, não é quarto: é cômodo. uma cama, sem quarto, não é cama: é leito. perguntar o que se faz em um quarto é perguntar o que se faz na cama. descansar (deitando-se ou sentando-se), dormir (costumeiramente deitando-se e esperando), transar (sozinho ou acompanhado), comer (a transgressão é de ordem higiênica), são respostas possíveis. a relação quarto-cama pode ser atingida em um nível linguístico em inglês: bedroom. em alemão, atinge-se um componente psicofisiológico: das Schlafzimmer. a relação quarto-cama-dormir determina para além do compartilhamento das funções biológicas vitais: aponta-se para a organização libidinal que se exerce em torno da cama: no quarto do casal, espera-se uma cama que caiba mais de um; no quarto do solteiro, espera-se uma cama que caiba apenas um (mas suficientemente estreita para caberem, por vez ou outra, mais de um); no quarto das crianças, camas individuais e pequenas conforme a suposição de sexualidade ali presente. no quarto da empregada, espera-se uma cama desconfortável e de difícil acessibilidade, dado o apinhamento de outras mobílias de utilidade duvidosa, etc. o quarto ascendido à privacidade também é chamado de câmara ou alcova. uma cama, ascendida à ordem pública, chama-se democracia.

4 de novembro de 2014

chuva no horizonte:
de volta. cheio de sol,
ao sino sem som.
o ônibus que passa na esplanada

23 de outubro de 2014

mosquitos

bafo de calor.
janela aérea. citronela
com ventilador.

19 de outubro de 2014

quando descobri
que o diabo não era
mau tampouco bom,
que o homem-do-saco
não era um homem
nem tinha um saco,
que o bicho-papão
não era diferente
de mim em mim,
tive medo

14 de outubro de 2014

da escada que dava acesso do corredor ao pátio da escola, ficamos no começo, no meio e no fim. no começo, nossa identidade girava em torno dela e das nossas interações: ou sentados, ou brincando com os degraus, ou abraçados aos corre-mãos; estávamos ou sentados um nos outros, ou brincando de carinhos, ou abraçados. esperando qual palavra para sossegar nossos conflitos de adolescentes. no escuro do corredor, imagem tosca para nossos medos, as confissões, os desabafos, as conversas bobas. acabamos por acidente amando com força demais. no meio, nossa companhia começou a se tornar intolerável: proximidade não implica intimidade e, portanto, guardávamos certo respeito tedioso em consideração ao bom convívio. os encontros permaneciam fiéis, mas a escada testemunhava nossos silêncios. os desentendimentos começaram a surgir em nome de uma impaciência frente aos turnos, cada qual ali contando com uma vez, uma exceção, para se pôr único no mundo. ninguém sairia ileso. acabamos por acidente amando somente por distração. no fim, nossos rumos foram traçados a partir da separação eminente. as preguiças, os humores, a obrigatoriedade implícita de manter o que éramos nós: dissolução; cada qual com a sua vida inimaginável mas óbvia. do que éramos nós ficou uma promessa de juntar novamente, fortuna qualquer que viria a coincidir em um futuro já de adultos. "lembra da escada? tempo bom". acabamos por acidente amando sem comoção e responsabilidade.

10 de outubro de 2014

quando ratos, morcegos, aranhas, cobras, baratas, mariposas, besouros, moscas, formigas, escorpiões, traças, pulgas e carrapatos fazem parte do trânsito entre o psiquismo e o ambiente, nada se teme aos níveis do asco.  qualquer comoção vira aprendizagem, como quem por muito tempo em solidão se afasta do mundo e pelas vias de um resgate erótico se insere novamente ao convívio. a novidade é qualquer coisa, satélite orbitando no eixo dos absurdos da vida comum. até o vazio das relações ganha contornos diferentes. ao se habituar aos bichos, o que mais aterroriza é a possibilidade de deixá-los independentes, sem a domesticação dos dias exaustivos de higiene mental. a miséria comum está sentada, contando moedas que serão ou oferecidas a um deus já apagado, ou gastas em uma ilusão necessária à continuidade.

5 de outubro de 2014

o lago

passarinho que me fazia companhia enquanto esperava o dia passar falou que já passeou e namorou bastante. perguntei por onde. árvores, salas de aula, encanamentos, buracos no chão e no cimento. perguntei sobre as namoradas. disse que gostava de cantar, empoleirar como quem não quer nada, estufar o peitinho, uma semente ou uma pedrinha diferente que achou no chão já servia de agrado, mas que nem sempre dava certo. rimos. perguntou se eu já namorei bastante. disse que não, que deveria namorar mais, apesar de estar contente com o que já tinha namorado do mundo. perguntou como eu fazia. brinquei que gostava de cantar, empoleirar como quem não quer nada, estufar o peito, uma semente ou uma pedrinha diferente que achei no chão já servia de agrado, mas que nem sempre dava certo. rimos. perguntou se já passeei bastante. eu disse que não, que deveria passear mais, mas que estava contente com o que já tinha passeado do mundo. ele me deu uma bronca leve, dizendo que gente está sempre achando que deveria fazer algo a mais para viver. depois se envergonhou e disse que eu era um pouco diferente porque me contentava. perguntou qual lugar é o melhor para se passear. o mar. mar? passarinho nunca tinha visto nem ouvido o mar. falei que era um monte de água salgada e brava que se debruçava sobre a areia, bonito de ver e de ouvir e de entrar. fiquei constrangido de ter provocado a inveja. perguntei o que ele achava da água. passarinho sorriu, disse que era do que mais gostava: era para brincar, lavar, beber. rimos. pois então, no mar também! me corrigi dizendo que água é tudo igual, mas que, no mar, o bom é entrar, corpo todo afundado: um sentimento bom de pequenez... fiquei constrangido de ter provocado a inveja – de novo. dessa vez, não escondeu. ficou triste. para reverter, falei que o mar era água, e pronto!, só que muito mexida, parecia um lago em ventania. aí ele ficou feliz. de vento entendia. apontei. viu de longe o lago. aprovei. abriu bem as asas, mirando. nos despedimos.

29 de setembro de 2014

o lugar do pai é sempre incerto: seja certo o seu destino de misérias. após a renúncia de sua designação, surjam os efeitos obscuros: de provimentos insuficientes, abdicação. de potências sem coerência, abdicação. de negações necessárias à existência, mas não à insistência em existir, abdicação. de cópias à mulher que o acompanha para se situar como ser de amor no campo dos filhos, abdicação. de suposições de atributos masculinos em algum lampejo da exclusiva virilidade da horda dos homens, abdicação. de ruínas históricas causadas pela peste da família, abdicação. de ilusões do sagrado reduzidas a altares tristes com fotografias desgastadas de cada morto, abdicação. de documentos extraviados do trabalho por cautela descabida e estupidez afirmada, abdicação. de companhias que mais servem à garantia do sofrimento cotidiano e à purificação de um desconhecido pecado, abdicação. do que resta, o fracasso – os enforcamentos malsucedidos, a overdose de álcool que nunca aconteceu, os tiros falhados rumo à cabeça, os postes macios que o carro beijou com violência, as doenças que brincam com o corpo –, o fracasso em que se atesta o último grão de erotismo na covardia de se matar, empoderamento: que continue o que se nomeia como vida qual trapo rejeitado até que se morra inerte em solidão, esquecimento e loucura.

7 de setembro de 2014

mas tudo se vê
nada se escuta
os objetos desfilam
tal qual data festiva
em ruidosa calma
no olho do furacão

algo se toca
objeto que
se perde e se pede
de tão imaterial
olhar fundo
do olho do furacão
no olho do furacão

3 de setembro de 2014

na grande festa de todas as máscaras, fui de rosto nu à espera de reconhecimento pela coragem, pela audácia de romper com o código e a etiqueta, burrice sem tamanho de não me precaver, não contra os outros, mas contra a música que me entregaria ao devaneio e ao riso particular das seguintes horas vagas, fui servido de pensamentos angulosos que não me desciam à boca, mas ao estômago que se mastigava em compreensão,

na grande fresta de todas as máscaras, os olhos a me julgarem em silêncio, como se não me fosse permitido estar ali sem o que mais me faltava – mal sabiam que por trás da máscara de peles havia uma máscara de carnes que por trás havia uma máscara de ossos que por trás havia uma máscara de vísceras que por trás havia uma máscara de nadas –, algumas aberturas de boca se fechavam ou contraíam ao me ver ali, sem véu ou contraponto para dizer o que não sou, um pequeno incidente a me fazer destoante, mas ainda pertencente, da massa que tanto me denotava e me destacava despido, mas não denunciado – qual meu compasso se me desfaço pelo som?,

na grande máscara de todas as frestas, eu em um esforço de deus a me fazer lugar-comum, a dançar sem jeito as músicas que davam prazer aos mascarados e a mim inclusão, lugar delimitado, território, espaço, horizontalidade possível, o aleph que borges teve de ceder à eternidade para se fazer dobrar, eu fingindo relação e passos, eu que era também tão máscara na vida comum quanto qualquer um ali que tenha elevado a ocasião da festa em "uma noite especial", que vício avesso à virtude,

na grande máscara de todas as festas, tive de esperar pela minha música, a minha hora, se não há espaço, é de se sentar e esperar, dizem que a hora chega, fui munido de razões destras que a premeditação contra o mundo me fez criar o costume de inventar, sem cautela e burro, em busca de reconhecimento pela coragem e pela audácia, pura angústia diante dos outros, mas sustentado por conversas nervosas porém ponderadíssimas, ponderadíssimas, eu tinha um rosto para sustentar a sujeira que é o próprio rosto sem vestimentas,

mas em que lugar me fiz oculto, sem contar com os esparsos abraços que dei em falsa companhia, a companhia das paredes ou dos corpos que rejeitei, sem contar com a música que me nomeava e me velava sem prumo, sem contar com a nomeação inesperada, o assalto de rhythm is a dancer, it's a soul companion, you can feel it everywhere, lift your hands and voices, free your mind and join us, you can feel it in the air.

28 de agosto de 2014

secura

apesar do horizonte poroso, dos humores todos murchos, da luz fosca, do céu desamparado de nuvens, da sobriedade, da textura sem vigor da vegetação, da ilusão de água, da objetividade, do nariz que sangra, da rispidez, do esgotamento temporário das idéias, da pele que trinca, das queimaduras e dos ardores, da magreza: sem que nos percamos em conluios climatológicos, cada dia árido em aguardo pela chuva-salvação da primavera é um dia a menos na contagem da nossa antecipação em ser.

21 de agosto de 2014

o problema do elogio

o problema do elogio é o constrangimento com uma verdade imparcial que é só parcialidade de caráter. o problema do elogio é a exposição maior do sobressalto do elogiador do que a apreciação considerada no elogiado. o problema do elogio é a restrição do valor que é tomado como qualidade positiva em uma suposição. o problema do elogio é o engano ao significar o que é perspectiva como constatação. o problema do elogio é a intimidade ilusória de um saber sobre o outro que lhe escapa. o problema do elogio é o desajuste das virtudes quando desmentidas. o problema do elogio é a deflagração do pudor.

16 de agosto de 2014

perto dos trilhos

fundo do chão, lá vem
apito do ar, lá vem
susto do vão, lá vem
longe do mar, lá vem
"não, joão, mas cá, é lar?"
pra quem? alguém? o quê? também?
o trem, o trem, o trem, o trem

12 de agosto de 2014

já se pode dizer em palavras redondas ou corpos oblíquos que entre o que era e o que é resta um silêncio legível. não se conta com urgência ou sequer pressa em romper o silenciado. mas, antes, conforto de sedução e rodeio já gastos, sem angústia alguma para dar o tom hipotético de amor. já localizado, quando posto, em circunstância propícia - esta avaliada em jogos espirituosos e risos educados e constrangimentos fisgados do nosso desejo -, este mesmo silêncio pedirá licença, tão bem autorizado pelas nossas relutâncias e tortuosidades, este mesmo silêncio dirá, no que seus recursos de expressividade alcançarem: houve, homem, houve outro.

10 de agosto de 2014

estudo sobre homens femininos

a sensibilidade para o mundo. a posição de escuta. os gestos quase infantis. o gosto pelas artes que resvala em erudição. a delicadeza da fala contrastada à anatomia do corpo. a afetação e a frieza a tudo que se refere. os músculos. a hostilidade nos confins íntimos. o desejo da mãe. a projeção das expectativas nunca assumidas. o perfume destoante à virilidade suposta. o rigor sobre o sexo. a fascinação pelas mulheres potentes. os eternos desconfortos materiais. as sínteses advindas do ócio. a resignação à realidade. o choro. os flertes profundos com o impossível. o pai fantasmagórico inventado nas melancolias. a paixão latente por todos que desconhece. a incontinência do bem-querer endereçado sem sabedoria. os outros homens. o desespero por não amar.

3 de agosto de 2014

quando viagem

não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce em um sotaque absorvido: prolongo as consoantes mais macias, engulo o final das palavras, inicio todas as frases com um estalo de língua ou uma interjeição que dará o tom do resto da fala, recheio os pensamentos de ditados e provérbios, termino as conversas rindo com um gosto de letra espirituosa na boca. não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce de um morador local ajustado aos hábitos da cidade: na casa meço conforto e constrangimento a partir dos deslocamentos da hospitalidade, chego todo espantado com o avanço do comércio e o retrocesso da população, me fascino com o frescor das frutas e verduras nos mercadinhos, nas lanchonetes e nos botecos me divirto com o preço destoante do que estou acostumado, as quitandas e quitutes que como no café tão cheio de gosto, descanso sentado sobre o sol de fim de tarde nas ruas mornas, leio os livros que trouxe por pura sobrevivência mental, deito no chão quente pela manhã para pressentir os fatos do dia, no silêncio encontrado escondo choro e gozo de circunstâncias e memórias. não sou um homem de paisagens, prefiro o prazer disfarçado e comovido pelos dias contados no calendário: melhor do que ir, só a garantia de voltar, mas estendidas em programações quaisquer: passeios tensos entre tédio distraído e desejo perturbado, almoços e jantas bem planejados e reciclados, conversas importantes e descartáveis com quem verdadeiramente amo, falsos acontecimentos em nome da certeza de que viagem alguma merece ser narrada.

17 de julho de 2014

tudo que se mexe é distração
da gata, minha
como se lê com presa e pressa envolta?
vento cortina folhinhas
obstáculos para mim
brinquedos para ela
como se lê com outro em volta?
miadinhos cabeçadas patinhas
carinho à força
tudo que se faz interrupção
mais interessante é que o livro
quando sou ser brincado
pelo animal

29 de junho de 2014

Unheimliche

a toalha suja, a letra de forma, a incapacidade de pensar, os longos momentos de silêncio, a cortesia nos tratos às pessoas circunstanciais, a garrafa de água no quarto, a dormência do braço e a dor no punho direito, o refluxo criativo, o excesso da satisfação fisiológica, a iluminação precária, a paz infernal da rotina, a saudade, as descargas culinárias, o trono temporário nos ônibus, o maço de cigarros vencidos na gaveta, o dia em que esqueci como se reza ave-maria e pai-nosso: nada se torna quando ainda não partiu.

26 de junho de 2014

em dia de milagre, é preciso credo. sem sacolas, cabelos livres mas ordenados, olhos limpos, a rainha. firme e guiada, vestindo azul e manta branca, sapatos nos pés certos, purificada e sagrada virgem do mundo, segue tranquila pelos estacionamentos das comerciais. linda. dando a mão em bênção e cumprimento a todos que se aproximavam (rapidamente, numa tentativa ajustada e falha) de entrar no próprio carro e seguir sem tormenta, desavisados da normalidade dos fatos. no céu paira uma mensagem não anunciada por nenhum mensageiro: "vênia, mundo, que a Mãe passará". não é preciso preparo para a salvação, mas que susto: todos sabiam com mais força ou menos força que Alguém viria, contavam com o filho, com o pai, mas a Mãe?, ninguém foi informado. rainha de azul e branco se fez santa, pisando leve, sem história e determinada. ao existir, removeu a transparência das pessoas com fé, deu ao mundo o tom maior de incêndio e ordenação, caos particular e social, de suas religações totais do ordinário da vida com o mistério de seu sexo. ave!

20 de junho de 2014

ambíguos são os estados designados pelos verbos de ligação: permanência, transitoriedade, mutabilidade, continuidade, aparência. ambíguas são as ligações designadas pelos estados de verbo: firmamento, disrupção, certidão, deselegância, condição. ambíguos são os verbos designados pelos estados de ligação: ser, viver; estar, andar, achar-se, encontrar-se; ficar, virar, tornar-se, fazer-se; continuar, permanecer; parecer.

14 de junho de 2014

pena

que o acolhimento genuíno, o asseio da escuta, os vislumbres de som, a incontinência da fala, as interferências sobre o discurso, a repulsa dos juízos, a patologia desmentida, a agressividade inerente aos laços não me seduzam em me tomar como sabedor.

10 de junho de 2014

pedro, não se pode reduzir esta cidade à nostalgia. vivi nela tempo o suficiente para poder retornar esquecido dos nomes e lugares, sem compromisso algum com fortuna ou revés. mas soube assim que regressei: essa cidade guarda nossos dias. procurei entre as circunstâncias, entre as luzes amareladas dos postes, entre a receptividade das pessoas, entre as novidades mais óbvias do comércio, entre os silêncios dos domingos à tarde, entre o canto sujo da rua íngreme próxima ao açougue, entre o comum e o inesperado, felicidade. soube da irreversibilidade dos fatos quando descobri que aquela sorveteria, tão antiga, em frente à praça, fechou. e que, apesar da comoção revolvida em minha busca, ainda pude pouco além de andar. esperei pelo pôr-do-sol de rotina o nome perdido em nossas distâncias; visitei os familiares e vizinhos em qualquer tarde para um café saudoso; vigiei o relógio para coincidir brilho e dureza às sete horas da noite quando o céu do nosso gosto começava a ficar azul escuro; desci atrás das possibilidades de diversão sozinho, como quem esperava se livrar do tédio com a limpeza dos azulejos do banheiro; fui à feirinha em busca das bobagens que comemos (continua tudo muito gostoso); endeusei-me com o transe da sua ausência e vomitei o nervosismo todo em textos ruins e refeições semi-digeridas; li pouco por estar à espreita de qualquer movimento nesta cidade; escutei de novo o triste anúncio do circo - aquela entonação engraçada, cirrrcô, cirrr-cô - que você me negou companhia uma vez (desta vez, não fui por fraqueza); antecipei meu desejo de não voltar a esta cidade com uma promessa furtada. perguntaram por você, como se coubesse a mim responder. fiquei triste por dias. no regresso à mediocridade e à decadência corriqueira, percebi que não há diferença lá ou cá. esta cidade habita nosso corpo. hoje, longe, estou abraçado aos hábitos de solidão e inteligência, desamparo e conforto único para me esquivar das verdadeiras janelas que construímos nas paredes de nossas vidas. apesar da cidade, pedro, estamos livres e à parte.

7 de junho de 2014

entre aqui e ali, onde se perdeu algo.

1 de junho de 2014

estudo sobre roupas femininas

a oscilação entre o fino e o vulgar. a organização dos sofisticadíssimos detalhes. os cortes do tecido e os disfarces intencionais do corpo. as camisas de seda. a difícil escolha. a ditadura da tendência e a anulação do gosto próprio. a sobriedade das lojas senhoris. o vestido floral para o romantismo. o decote acidental. a relação estabelecida com os comichões. o desajuste moral entre a idade e o comprimento da saia. o delineamento da forma em nome da transparência. a boa composição entre estampas. as cores conforme a volúpia. o relevo do sutiã e seu giro em alças. os desalinhos.

27 de maio de 2014

duplo

situa-se oposto à percepção, espécie de avesso denegrido, real e sem ponto de imagem. encontra-se pareado às identificações que só são acessadas por imaginação, autêntico lado de verdades singulares, inversão de si muito além de direita-esquerda ou curvatura de espelho. habita os cantos do desejo, tal qual os vergonhosos e nossos demônios, mas de outra natureza: é mais louco, tem o mesmo tamanho das expectativas do mundo, e, no escuro, solta fumaça pela boca sorridente com certeza de que a vida, a vida é uma papel amassado e devidamente desprezado.

24 de maio de 2014

convite

os afetos empoeirados dos bichos de memória se intercalam com o enquadramento da janela e a luz suja que a atravessa: perenes aranhas, traças e cupins guardam o tecido vivo da tranquilidade decadente da casa fechada. as dores atualizadas dos antigos moradores não fazem mais jus aos fatos que lhe serviram de causa: passados os aborrecimentos que a vida compartilhada implica, restaram apenas as rachaduras do piso hidráulico. as flores plásticas já desbotadas de sol e o calor absorvido pelo mármore marcam o tempo de horizontalidade do casal mais bem chorado da cidade - hoje, residentes da quadra onze, corredor quatorze, recebem familiares e amigos para comemorações e reflexões acerca dos alvos do nascimento e seus marc's implicados em estrelas e cruzes.

18 de maio de 2014

rosto largo de natureza e cansado de circunstância. olhos silenciosos em supercílios inchados. nariz farto. boca bem desenhada e de cores amarronzadas. barba mal raspada e já esbranquiçada no pescoço. estatura mediana, mas muito bem distribuída entre os comprimentos dos membros e as larguras do tronco. pele queimada de desleixo e virilidade. braços e pernas roliços e rígidos. pêlos do corpo já ralos. espessura dos dedos das mãos a indicar outras espessuras. quadris de exímio talento. nádegas bem delineadas. joelhos escurecidos de quem não se importa. pés amplos a pisar o chão sagrado do mundo. roupas de pouca vaidade. pai de pouca lei, mas muita presença. compostura de bom macho. elevado ao nome do amor por uma mulher desprezível. cigarros fugidios nas noites de domingo à meia-luz de seu quarto. aparentemente sem camiseta, sem pudor e honra. a fixar soturno o rosto em qualquer paisagem, distraído de sua vida: seduz e reduz a um quadro erótico qualquer o homem do 302.

10 de maio de 2014

bercholina atendia ao sino que minha vó, acamada, tocava. chispava a gente da cozinha, mas adorava nossos abraços de misericórdia à sua feiura.
toinha me ensinou a fazer comida, limpar, varrer, passar, dobrar. me batia com chinelo.
maria fazia comida mais gostosa na própria casa (fritava bolinhos-de-chuva, punha louro no feijão). surrava os filhos por qualquer coisa.
antônia era completamente imatura: me ensinou a roubar no supermercado e levava a sério meu desvario de criança.
mara se deixava enganar por mim. arranjou um paquera no chat da uol e ficou horas no telefone de casa. foi demitida no dia seguinte em que a dedurei.
linda era discreta, mas soltava o gogó com o rádio ligado. era evangélica e se escondia por trás de deus.
rita era a mais querida pela família. chupava e rodava a dentadura na boca após terminar de comer dispensava o palito de dente sempre.
maria josé parecia um passarinho de tão frágil. gostava de ver televisão e se impressionava fácil com os noticiários.
ubaldina varria o chão com força. era muito desbocada, o que divertia meu avô. fez um caldo com o zézinho.
abadia fumava séria no pé da escada da cozinha, "tirando uma fumacinha".
mirena era muitíssimo amada. contava histórias do filho que fazia enfermagem e do marido que era caminhoneiro. chorava escondida de saudades.
ana se diverte com as desgraças da vida alheia e sabe conversar sobre ônibus como ninguém.

6 de maio de 2014

terrível inseto alucinado que me pousa e me coça por meio da etiqueta mal cortada de minha camiseta, terrível inseto alucinado que me escolhe como obstáculo irrefutável de seus caminhos imaginários, faça de mim presa e predador, apesar de minha brusca resposta em busca de seu corpo: que seja a mais exuberante das baratas aladas, o mais monstruoso dos besouros, a mais asquerosa das moscas de esgoto, o mais alvoroçado dos maribondos, a mais tormentosa das mariposas escuras, o mais gordo dos pernilongos, a mais louca das libélulas, mas, pelo conforto dos costumes e ajustes normais à realidade, que seja concreto, firme, tátil, real, à altura e ao alcance de meu susto e constrangimento.

3 de maio de 2014

a grávida, elevada ao sagrado da mulher, goza por ser a criminosa mais intangível pela lei. na promessa de ser mãe, encarna o suicídio trasvestido de completude suposta, morte mais romântica que qualquer devoção. ela e seu feto, a santa e a sua virgindade, mostram ao mundo o único incesto autorizado - e, como pagamento desta subversão, escolhe morrer por alguns meses ao instalar um ralo dentro de si. a grávida é vista como a fetichista que guarda sua tara na bolsa, masturbando de modo involuntário sua barriga volumosa com os olhos públicos. temporariamente foragida de toda justiça ainda que encarcerada ao seu destino de mãe, a glória da grávida está contada nos meses de gestação, sucumbindo à tragédia que é, não só nascer para o filhote, mas, para a leoa, parir. a partir de então, os dias da grávida (nova mãe) serão marcados pelos desafios e pelas ambivalências (quando não pelo arrependimento) da maternagem e pela solução errada em sua tentativa de resolver a equação de feminilidade e maternidade. daí que, obscenidade lógica levada ao extremo, a única demonstração de amor objetal puríssima de uma mãe para com seu filho é não concebê-lo: se o concebe, é por um (in)feliz engodo: escolha espontânea e/ou forçada, absoluta e/ou individual.

24 de abril de 2014

detesto a leitura em voz alta de poemas.
detesto o tom de importância dado
a cada palavra pronunciada.
detesto a cadência e a decadência
de um verso saltado a outro.
detesto os olhos a acompanhar o fio do percurso
– e suas molduras de sobrancelhas em seleções
e arqueios de passagens ensaiadas, ganchos pensados.
(adoro os lapsos, os gaguejos, o nervosismo).
detesto o silêncio consentido do outro
para que enfim se performe o poema
e seja revelado um sentido
ao pé da letra ou ao pé do poeta.
detesto a modulação da voz de acordo
com o surgimento proposital dos jogos de linguagem,
sinalizando a esperteza, o espírito.
detesto a atmosfera cerimoniosa de vibração muda,
silêncio comunicativo, oxímoros vãos.
detesto a arrogância da leitura findada
e o pousar do texto nos ouvintes, teatro da sensação:
mãos recolhidas, queixos para o teto, para o chão,
livro fechado: todos meio abobados,
insinuando profundidade e meditação.

20 de abril de 2014

mímesis

mapa algum condiz com a fatal realidade do terreno, mais incondizente é se considerarmos seus andantes a alterar o ambiente em suas peregrinações. mapa algum é capaz de cartografar estas interferências. do terreno, podemos tomar apenas a via sensível para apreendê-lo; se sua representação o mente, que dirá o próprio leitor do mapa? que se trata de um falso registro? falso é o afeto que nos media, falso é todo passo dado; a única verdade verdadeiramente verdadeira é aquela que sucumbe à virtude do olhar para a paisagem e afirmar que: sim, há aqui um limite que justifica este tracejado virtual correspondido no mapa. mas sobre este limite: o que podemos afirmar senão que há uma ruptura fundamental entre aquilo que olha e aquilo que é olhado, "o disparate entre o significante e o significado", o amor e o saber? sobre este limite, quem o olhe que o imite.

19 de abril de 2014

des(velo;leixo)

1. grande cuidado, zelo, preocupação, dedicação, vigilância em relação a algo ou alguém. pode se referir em metonímia ao objeto/situação/pessoa.
2. ato de ruptura com o véu, expondo e fazendo conhecer; ato de pôr(-se) à vista. metaforicamente, lançar luz, tornar claro, elucidar.
3. ato de privação de sono em nome de uma vigilância; ato executado com empenho e diligência.

1. falta de atenção, de apuro, de trato, de esforço, de ânimo, de atividade.
2. ato de descuido ou abandono de si ou do outro por negligência, preguiça, indolência, inanição.

que a distância não nos torne descampados selvagens,
que a unidade não nos isole em solidezolidão,
que a proximidade não nos confunda em alteridade.

15 de abril de 2014

não sei escrever para fora IV

meu nome hoje é vários, lixeiro, gari, coletor. comecei a rodar de lixo quando quase morri lá no aterro, minha casa é o lixo. lá eu era catador. uma vez chegou o caminhão pra fazer o despejo, bobiei, fui soterrado. falaram que iam me dar o emprego pra eu ficar calado. fiquei. ganhei uniforme, luva, bota. comecei a rodar. conheço a intimidade de todo mundo, da cidade toda. o que eu pego é lixo, o que ninguém quer saber, só quem chama lixeiro, gari, coletor, catador. conheço vocês todos mais do que qualquer doutor pago por aí. o que você usa e joga fora tem boca, hein? pois se eu conheço o lixo, conheço gente, toda a minha classe é especialista em gente, desbanca muito engravatado, muito psicólogo, psicanalista. o meu lixo, por exemplo, eu solto já lá no aterro, aquele oceano. daí meu lixo lá, misturado com o de todo mundo, privacidade, ninguém me conhece, a não ser por ser o que quase morreu na avalanche e que ganhou emprego. então, comecei a rodar, ainda bem que virei lixeiro, se fosse catador, iria endoidar. o lixo da rua é só o ouro, fresquinho, tudo de primeira, muita coisa diferente aparece, o caldo-chorume ainda não começou a feder, ninguém mexeu muito, tudo nos sacos ou nos containers, o paraíso. mas como meu trabalho é pegar e pôr no caminhão, deixo pra mexer pouco. as pessoas não sabem o que é pra ser descartado, fico doido, agora eu quero ver é com essa coleta seletiva. dia do seco, dia do orgânico, dia do pai, da mãe, dia da família, o caralho. a seleção mesmo é nossa, de quem é do lixo. quero ver quem aguenta esse programa, quero ver os doutores selecionando, ainda mais agora que tá ficando cada dia mais difícil de separar se é lixo o que tá na mão ou tá no chão. quem é do lixo é por falta de condição de vida melhor, tudo sem estudo mesmo, mas já ouvi dizer que igualdade e dignidade é pra todo mundo. sei não. nesse programa de coleta seletiva apareceu caminhão novo, todo cheio de adesivo do nosso governo, "trabalhando juntos", imagina só os doutores correndo atrás de lixo e de caminhão que nem a gente, inclusive o caminhão todo boiola da coleta seletiva. o programa começou sem campanha nem nada, ninguém falou pras pessoas das datas que o caminhão roda, nada. e aí eu pergunto, quem é que seleciona? ninguém quer saber de ficar separando lixo seco de molhado, a seleção é nossa, não teve campanha, nada, só caminhão novo rodando, e aí?, como é que faz pra separar lixo se ninguém ajuda?, tem que vir doutor-de-gravata da universidade falar na televisão? de quando era lixo misturado gostava mais, só pegar e colocar no buraco da prensa, é acostumar com cheiro, por a luva e tomar cuidado pra não se cortar ou não pensar que é lixo também e deitar na boca do caminhão. tem gente que quebra e não embrulha copo, prato, lâmpadas, prego, parafuso no jornal. já vi de pilha a aliança de casamento. é mole? aí fica difícil. mas o caminhão novo, da coleta seletiva, tem uma novidade: colocaram um alto-falante na frente, uma musiquinha como se fosse circo. aí é palhaçada com a gente. a seleção já é nossa, chegar nos pontos, a musiquinha feliz toca, quem tiver com luva se dá bem, quem não, amém, é furar o saco com o dedo e rasgar puxando, ver mais ou menos pelo cheiro e pela água, fedeu muito, babou, molhado, deixa pros cachorros, pros gatos, pros mendigos, agora, seco, é da coleta, seleção nossa, "trabalhando juntos", o circo da coleta. caminhão de boiola do caralho, doutor-gravata devia ir lá ver a cachoeira de caldo-chorume do caminhão no aterro. é fácil me botar pra mexer, moro no lixo, sou do lixo. quero ver é daqui vinte anos, quando o aterro criar perna e começar a bater na porta da casa dos engravatados. quero ver minha casa se misturando com a dos doutores, ninguém nem aí pro lixo que é descartado e pro lixo que a gente é. quero ver, quando o lixo ficar bom mesmo pra não precisar de caminhão, quero ver o tamanho da minha casa, quero ver o aterro vai invadir a cidade, quero ver eu morando com o caralho dos doutores-boiolas que inventaram esse lixo de coleta seletiva

13 de abril de 2014

fenomenologia do branco

este branco se contrapõe a qualquer possibilidade de significação do texto; este branco mostra a vasta circunscrição de si em suas mediações entre cada seta a apontar sentido; este branco demarca irreversível o trajeto a ser percorrido pelo leitor em busca; este branco vem à mente como esquecimento inédito ou novidade rememorada; este branco encerra todos os signos da linguagem, menos os aqui escolhidos; este branco alterna silêncios com a obra que cria; este branco ocupa o que está sobre tudo; este branco é o negativo do senso.

29 de março de 2014

vóz vi

com o entorpecimento causado pela velhice, os que a cercavam se davam a acompanhar a decadência. dizia sombria: ainda não morri. exijo respeito aos meus cabelos brancos - até parei de pintar. não preciso mais fingir vaidade. dizem que ando desbocada. a idade me autoriza. não gosto do jeito que me tratam. todas elas. minhas filhas e as empregadas, as patroinhas. vêm com agrados e boas intenções ao gosto de não sei quem. talvez ao delas. não me perguntam como eu quero ser tratada. com as empregadas: tenho de comer na hora delas, banho na hora delas, tv na hora delas. até as minhas preces ganham ares de permissão, como se eu não fosse dona da minha própria casa. se digo que não estou gostando, sou cruel; se me calo, sou tristinha, apática. com as filhas: se reclamo dos maus tratos, ofendo como se cobrasse a eterna dívida pelo tempo que dediquei na criação. não peço que venham fazer o serviço péssimo da enfermeira e da empregada. peço mais carinho. os remédios não faltam, mas tenho de beber com a água que foi estupidamente servida, o copo entregue com má vontade. o chão da casa só fica limpo se é passado o pano sob meus olhos (e chorava um pouco de indignação). a comida, ganho humilhada, e tenho a marca no céu da boca da colher feita por aquela preta bruta que fiz ir embora de tão espaçosa. não é porque seu vô morreu que essa casa perdeu o prumo, que eu tenho que definhar sem dignidade. só peço a deus para dar cabo às discórdias, as minhas, as da família. ficar velha e ainda ter de me preocupar com pecados... difícil. do tanto que já rezei nessa vida, minha nossa senhora, se eu não for para o céu, ninguém vai.

25 de março de 2014

sua vez em voga, véspera de qualquer fala que decifre os árduos raciocínios frente aos íntimos afetos, o homem-houvido posiciona corpo e argumento para se demorar em suas reflexões anti-circulares, sofrendo da retórica mais refinada que o jargão de seu domínio lhe permite. a esperar por um olho que brilhe em sua revista dos sentidos que produz por palavras e impressões sensíveis. transcorre digressões atestadas pelo ou que denomina de controle experimental ou ao deus da intuição imediata do mundo. em seus deslizes espinhais, ajusta os ombros, rearranja os pulmões, aloja os rubores entre o nariz e as orelhas. constrange-se ao ser elogiado por seus dotes seminaristas. contrange-se ao ser criticado por sua objetividade científica frente ao mais desalinhado caos. cede e derrama em gotas suas pequenas desesperanças sobre as relações - diz que está apaixonado por uma imagem ilusória de si e dos outros -, aguardando contra-ataque e bom amparo. rio como quem se resguarda por saber que sou também outra estátua de sal, mas em possibilidade. marco meu destino: olho para trás: decido que não, apenas não, mas vacilante: não.

21 de março de 2014

do punho aos pés vestida de negro, pele queimada de sol, cabelos em cachos brancos, a rainha e suas sacolas regem o mundo. a julgar pelo clamor de seus olhos, está cansada. atravessando lenta uma rua à outra, demorando-se em frente a vitrines comerciais em busca de uma decisão razoável entre comprar a morte ou vender a vida. passeando as suas sacolas carregadas de vozes e ninharias seriadas, alimenta lendas e rumores: ou viúva apaixonada por seu falecido homem, que era riquíssimo à sua custa e lhe tomou um por um os bens; ou professora aposentada do instituto de artes da universidade que trocou a academia por uma eterna performance; ou mãe abandonada pelos filhos que hoje a sustentam por um império de vergonha moral; ou mulher de família proveniente de uma grande depressão financeira que encontrou na rua uma casa; ou simplesmente a rainha destes terrenos, mulher sonhada por dom bosco, que pisa calçada com seus sapatos trocados a deixar rastros de curupira, guardando em silêncio o segredo da humanidade: que a loucura inflamada e a razão articulada são avesso e direito da mesma ordem.

13 de março de 2014

estudo sobre brincos femininos

o furo aceito das orelhas. a rusticidade das pedras. o obscurantismo dos minérios preciosos. o formato correspondente à circunstância. a coerência do arranjo entre o pescoço e o cabelo. a simetria sem propósito dos movimentos. o enquadramento. o marco da iniciação ao universo. as intolerâncias do corpo. a nudez. o desamparo ao perder um dos pares. o mundo secreto das tarraxas. o desapego forçado. o perigo ameaçador das argolas grandes. os sacrifícios pela exuberância. os de pérolas.

8 de março de 2014

exobjeto

se o perco, já não preciso de sua presença. se o tenho, não encontro correspondente no mundo. se o amaldiçoo, por amor que falo. se o prolongo, apesar da sequência guardo a condição de despojo. se o violento, seu rosto também me concerne. se o fabrico, porque o novo me resta só. se o marco, é meu traço de impermanência no outro.

6 de março de 2014

hermeneuta afetado traduzindo i will wade out de e.e.cummings

antes de se afirmar que a tradução é traição, é bom considerar o compromisso estabelecido entre as partes deste triângulo amoroso. tomemos aqui cada nome abstrato como um nome designador próprio. se o tradutor desliza por entre duas ou mais línguas (a matriz (não chamarei de mãe para não adentrar ao campo edípico) e a(s) amante(s)), sua apreensão do mundo não corresponde diretamente às ideologias e poéticas que cabem a cada uma, isto é óbvio. seu ofício, no entanto, não se assemelha ao do discurso do fiel monogâmico: não é válido aqui esconder os fatos de suas mulheres (ou seus homens) para que guardem uma desconfiança mútua, uma a esperar pelo lugar da primeira, outra de desesperar pela possibilidade de segunda, uma terceira, se houver, na eminência de emergência, etc. o tradutor, antes de ser apaixonado marido e pecaminoso amante, é (ou deve ser) um homem honesto, destes que reconhecem suas virtudes e seus vícios e se comovem a ponto do choro. suas mulheres ou seus homens deverão se interceptar enquanto ele se põe ao trabalho de, se me cabe o perdão do leitor pela redução, verter de uma língua à outra, as salivas com que se engasga ao tentar mais fala do que fôlego. o tradutor é, para dizer de pronto, um silente cúmplice, um mímico discreto. um mudo mal-articulado. se seu produto se aproxima do artesanato, é por saber modelar, a várias mãos, o corpo de sua obra alucinada, que, mesmo não tendo fé ao original, é recoberta pelo brilho viscoso próprio da réplica inaugural (não queremos ofender os plagiários: estes são os verdadeiros cornos resignados). vamos, então, à empreitada masturbatória:

vou ao vau
                  até que minhas coxas rocem como flores incandescentes
Vou suster o sol em minha boca
e saltar ao ar maduro
                                   Plena
                                              d'olhos fechados
para lançar contr'a escuridão
                                   das dobras dormentes do meu corpo
Que entrem os dedos de sutil mestria
com castidade de sirenas
                                       Irei preencher o mistério
                                       de minha carnadura
Vou ascender
                   Depois de milanos
flores
labiais
                   E cravar meus dentes no prateado da lua

em prosa:
tendo o sexo diante de mim, à margem estou e à outra me dirijo. rota corrente, pés oscilantes no leito arenoso, calor do piso incerto de flores. mergulho os dedos em mim. abro os olhos, abro a boca. vejo, engulo. cheio. fecho os olhos. descubro meu corpo no negrume inabordado das águas. que me abracem os monstros da morada doce com seus gestos gentis. dúvida: assim tenho a unidade do mentecorpo? assim tenho a unidade do mentecorpo: depois, no tempo das flores labiais, vou com dentes emergir em águas rumo ao luar que incide na superfície plana do gozo.

2 de março de 2014

co-sideração

o amor está para o desenlace assim como estão os objetos concretos para a sua metonímia.

26 de fevereiro de 2014

o primeiro homem, ao ceder de seu fardo, foi tornado o santo.
o segundo homem, por esperar pelo milagre, fez a si o palhaço.
o terceiro homem, em contar uma versão, era-lhe o próprio.

22 de fevereiro de 2014

(estávamos todos sentados em círculo. era um dia qualquer, em que cada aluno lia uma frase do texto - a história de um sapo que foi a uma festa no céu. iniciados os turnos, eu acompanhava e media o desempenho dos outros, orgulhoso e inseguro nas vésperas do meu momento. o professor coordenava o curso das falas, enquanto eu secretamente também o fazia. mas temia e rezava com violência para apenas que não me fosse dada a interrogação. não sabia entonar a voz duvidosa. todos os sinais gráficos me eram amigos, menos o da desconfiança. o professor era um homem rígido, sem pudor para corrigir de maneira amável. era um bronco. na medida em que meu turno se aproximava, horror: não estava pronto para ser testado na incerteza que um ponto-de-interrogação encena, que o acaso dos justos não se manifestasse em público, que o acaso pudesse esperar para me expiar em um ambiente de conforto particular. não pôde. o deus não atendeu ao meu desespero, precipitando o desgosto pela fé de uma vida inteira ao instante em que eu era confrontado com a própria ignorância. de tão insolente por julgar em silêncio, seria o alvo dos olhares e risos mais recriminantes."a fes-ta fo-i u-ma di-ver-são, mas to-das as a-ves se per-gun-ta-vam: o sa-po che-gou a-qui." foi o que eu li. o professor, destro nas humilhações, "o sapo chegou aqui?" com uma cara arrogante de quem aguarda resposta. eu, em transe com toda a miséria que me foi imposta, arranjei no riso um alívio circunstancial e repeti ao meu modo. e o pior aconteceu: o professor interrompeu seu prazer de torturador e me trouxe à razão incontestável da realidade que não consegui escapar: "você está rindo de quê? não tem nenhum palhaço aqui." todos riram de mim, inclusive eu, que deveria ter me amado nesta provação dos meus crimes de criança. assustado, ofendido em minha humanidade que acabara de nascer, suspenso em pouca idade, só pude retrucar com a sinceridade cabível: que não estava no circo, não, senhor, ria porque não sabia ler a interrogação. mais valeria naquela situação uma mentira do que o relato puro da minha fraqueza. foi como entregar o ouro. o homem explodiu, atacou minha ingênua iniciação no mundo, os nomes mais perfurantes do que qualquer rasgo na superfície do corpo. pivete. moleque. fedelho. pirralho. burro. estúpido. analfabeto. acalmado, se pôs a se perseguir por meio de mim, "acha que eu sou palhaço, é? acha? responde!". eu era pura derrota. não emitia som algum. ele, não satisfeito mas ardil, abriu mão de sua proposta pedagógica: pulou minha oportunidade de entonar o questionamento do sapo - que acabei amargo engolindo -, passou minha frase ao aluno seguinte e sorriu um olhar triunfante se dirigindo a mim ao ouvir um "o sa-po che-gou a-qui?". por vingança, me tornei o melhor aluno da turma. contra o acaso, nada pude.)

18 de fevereiro de 2014

vóz v

a programação da televisão: ando afastada das novelas. gostava daquela última, do tipo mocinha apaixonada pelo galã. mas as de hoje, não suporto. ainda nem deu a hora de eu dormir e já tem beijo na boca, gente pelada, tiro, sangue, gritaria, palavrão. até homem com homem! me deu um nojo. estou muito velha para esse mundo. só ando vendo o canal da minha reza, ponho até copo d'água pra benzer na hora da missa das sete. assisto ao terço bizantino depois do almoço, a novena à tarde, à noite, jornal. jornal também não anda compensando muito, só tragédia, desgraça. a vida já é sofrida, não preciso de mais. ninguém precisa. uma vez vi uma coisa interessante, até fiquei curiosa pra saber se era verdade. no jornal, estava passando uma reportagem sobre as águas aqui de minas, mostrando rio, lago, cachoeira, córrego, mar, barragem. aí veio uma cena com um monte de água vindo na tela, como se fosse sair pela tv. tomei até um susto, estava meio cochilando, meio acordada. será que aqui tem tanta água assim? minas não tem mar, só tem céu. esses dias chegou correspondência da companhia de água dizendo que ia faltar durante algumas horas, manutenção não sei o quê, não entendi muito bem. e aí, na televisão, aquele mundo de água. como é que pode? faltar água em casa e eu quase afogando sentada na sala?

15 de fevereiro de 2014

é o estrangeiro convocado a proferimentos e declarações e anunciados e constatações a respeito de sua substância tornando-se enfim sujeito ou objeto ou pessoa ou animal ou deus entre o que é chamado de comunhão de nossas vidas então dizendo

meu nome secreto é convidado se venho sozinho a este posto é porque me permito só já que as contingências são próprias e também próprio me sou banco o rosto que tenho ponho-o à frente de qualquer lesão que o mundo me desfira aguardo pelo murro porque também quero dá-lo

meu signo é siderado pelos piores cálculos mas conto com o bom trato dos interpretantes em sua apreensão material do que mostro como objeto representado se aqui abro em flor meu desejo é para ter como garantia minha própria insatisfação

meu corpo não registra memórias fulgurantes de um trauma fantasiado se tenho os pontos específicos é porque me permito dentro das confluências do destino a portar esta pele este casco este metal que faço máscara disforme para existir dentre nós podendo então chamar o sintoma de disjunção necessária à existência.

13 de fevereiro de 2014

moça do telemarketing,
a vida costuma não ponderar o peso da mão quando nos bate. este labirinto que percorremos descalços, esta luta desarmada que temos que travar com os leões: precisamos de esperança. o cotidiano é guiado por um deus também cansado, enquanto que nos finais de semanas temos de nos linchar em um hábito autolesivo qualquer para poder seguir mais um pouco, sem promessa alguma de descanso. mas escrevo em nome de um pedido sincero. peço a você que perdoe o mundo. não tome a mim como alguém especialmente designado neste acaso dos números telefônicos que rondam a sua lista triste de clientes não aborrecidos. recuso compadecido este novo plano de cartões de crédito decorrente da parceria da empresa telefônica x com o banco y, mesmo sabendo que com este cartão o valor de minhas compras seria convertido em pontos que poderiam ser trocados por milhas de viagens solitárias ou celulares igualmente solitários. sem falar nos juros baixíssimos, quase próximos à nossa tristeza. por tanta vantagem assim, não posso amar por menos. se interrompo o seu discurso monotônico gentilmente para expor minha estúpida postura, é para poupar seu tempo e sua voz, meu tempo e minha voz. a indignidade do seu trabalho confrontada a seco pela minha agressiva misericórdia. perdoe. a mim e ao mundo. a esperança inesperada ainda irá nos mostrar que o dia é bonito, que a coisa tem jeito. por agora, só tenho a oferecer um pouco de ombro nesta dureza. meus votos: que o acaso lhe permita um ouvido atento, um possível número a menos em suas cotas diárias de venda. que a inesperança não nos mate antes do tempo de morrer. que o deus durma para que, enfim, possamos dormir também.
de seu cliente e consumido consumidor,
um abraço.

11 de fevereiro de 2014

estudo sobre sapatos femininos

a miscelânea luxuriosa de humores em nome de cortes, cores, texturas, alturas. a exposição pensada de um erotismo sucumbido à sacralidade de um altar vazio. o prazer do andar e o registro sonoro ao se aproximar de algum ambiente. o prenúncio da mulher. o cortejo com o enigma do mundo reduzido a um par. a tensão íntima entre as paredes do sapato e a pele. o sofrimento voluntário em nome do belo. a resignação aceita por um conforto ortopédico. o subseqüente alívio de desmascarar a fêmea. a humilhação secreta do confronto com um calçado mais fálico em uma disputa atestada de “quem falta mais”. a loucura da vaidade. a curvatura do pé como medida de feminilidade. o apelo das unhas vermelhas.

6 de fevereiro de 2014

folie, adieux

a quem sublinha bem o fraseado dos pensamentos, resta apenas morar no intervalo de uma letra à outra.

2 de fevereiro de 2014

algumas frugalidades:

chupar uma laranja extremamente doce e cheia de sucos.
dormir depois do almoço em um quarto levemente escurecido.
comer pão-de-queijo quente.
escovar os dentes e beber água mineral em seguida.
tomar banho gelado e vestir roupas limpas e frescas em dias quentes.
cortar as unhas das mãos e dos pés.
alongar as costas depois de muito tempo sentado.
reler um bom conto.
acordar com o calor e a luz do sol no rosto.
cheirar a grama recém-cortada.
dar cabo aos gases do corpo sem ter de se preocupar.
conseguir fazer algo que era julgado difícil de maneira fácil e simples.
ter gatos como companhia enquanto se faz alguma atividade doméstica.
cheirar pedra quente.
nadar em uma piscina aquecida em dias frios.
apagar as luzes antes de se deitar.

30 de janeiro de 2014

extra vagância

às demoras do erro, linguagem. às normas do erro, revolução. às rotas do erro, apagamento. às injustiças do erro, reconhecimento. às certezas do erro, firmeza. às redondezas do erro, virtude. às vaidades do erro, trabalho. às formas do erro, preenchimento. às loucuras do erro, juízo. às andanças do erro, perna. às memórias do erro, criação.

23 de janeiro de 2014

vóz iv

o tédio dominava alguns de seus dias. quando transmutado em ócio, produzia proezas de casa e de pensamento. sobre o pequeno altar que fundou no seu quarto (e que posteriormente virou "o lugar dos remédios", os objetos sabem mais bem da função que ocupam do que nós): essa janela pequena nunca me serviu pra muita coisa. tive uma idéia. casa antiga, parede grossa, muito parapeito:  fecho a janela, pinto de azul por dentro, faço um altarzinho. a imagem da virgem santa já tenho. faltavam o fundo azul e as nuvens brancas. eu mesma que fiz, peguei bucha, tintas azul e branca, saí desenhando. sabia que as nuvens são classificadas a partir das formas e dos jeitos que tomam no céu? cumulus, nimbus, cirrus, stratus. não lembro bem o que cada nome é o quê, mas lembro que existem combinações também; as classificações são várias, se está muito espalhada, se está muito densa, se está muito próxima ao chão, assim vai. quando a gente olha pro céu, não desconfia que existe um sistema difícil pra essas belezas e brancuras que estão lá. chega a ser inútil saber dessas ciências, porque não serve de nada na minha vida de gente simples. mas saber isso envaidece. e as nuvens estão lá, sempre estiveram, pra quem sabe cumulus-nimbus-cirrus-stratus, pra quem não sabe. não estou desprezando os conhecimentos; no fim não faço muita diferença entre o altar ou a janela. mas acaba sendo uma metáfora sobre a vida: saber ou não das nuvens, saber ou não da vida: as duas continuam lá.

21 de janeiro de 2014

o céu de brasília é de alucinações roceiras
o céu de brasília é feminino que se maquia para no fim se limpar
o céu de brasília é conversa
o céu de brasília é desse que faz contorno aos murmúrios
o céu de brasília é mesmo solidão
o céu de brasília é copo d'água pra sede
o céu de brasília é hospitaleiro que não faz vista de chinelo ou sapato
o céu de brasília é beijo de boca seca
o céu de brasília é de uma fome por afeto
o céu de brasília é mar imaginado
o céu de brasília é desse que abraça para evitar contato

19 de janeiro de 2014

ribombo

ato e gesto se contraem quando vistos, mas há uma diferença anterior (não psicológica): o gesto é simulacro do ato. o gesto precede a consumação de qualquer ato: um objeto privilegiado, um pequeno desejo servem como tal. o ato aparece no mundo como mostração; o gesto, anunciação. o gesto é semblante desfigurado de ato. o gesto gesta ato. ato é falseamento inédita de gesto. existe uma relação íntima mas disrupta: o laço entre ambos é possibilitado pelo temor: uma certeza premeditada e incerteza futura, um passo dado com pés avessos. gesto e ato se separam e se aproximam no temor: o gesto, anterior ao ato, o ato, posterior ao gesto, não se sabem seqüentes: a divisão que o temor inaugura faz com que haja, entre eles, imagem vindoura e prenúncio revisitado. o temor, para o gesto, é indeterminação de formas. o temor, para o ato, é garantia de conteúdo.

14 de janeiro de 2014

a-presença-do-animal-(corpo)-a-presença-finda-do-meu-animal-(morte-ou-desaparição)-a-marcação-desta-ausência-presente-(memória)-a-pergunta-que-não-descansa-(cadê-a-dora?)-cadê-a-dora?-o-testemunho-triste-do-meu-gato-como-se-houvesse-sido-mutilado-os-ajustes-em-seus-hábitos-felinos-dormir-sozinho-comer-sozinho-beber-água-da-torneira-sozinho-o-testemunho-triste-da-casa-como-se-houvesse-sido-desanimada-os-ajustes-feitos-por-conta-da-ausência-da-gata-as-bolas-de-papel-foram-recolhidas-os-cordões-das-maçanetas-das-portas-retirados-uma-vasilha-de-ração-a-menos-o-tapete-predileto-guardado-as-sacolas-plásticas-desinteressadas-os-insetos-em-busca-de-serem-novamente-presas-fáceis-e-os-vestígios-de-hábitos-conjuntos-a-mim-o-iogurte-desacompanhado-o-banho-solitário-(mas-o-mistério-do-ralo-continua)-o-modem-e-a-mochila-limpos-de-manhãs-e-tardes-e-noites-de-dormir-os-carinhos-repentinos-cessados-mas-não-a-saudade-a-dora-sumiu-mas-não-a-saudade-

5 de janeiro de 2014

o frescor que o ódio traz rompe com qualquer monotonia dos dias; a destruição se transforma em necessidade, operar o caos do mundo pelas próprias mãos é a sedução mais profunda e doentia que os interditos não dão conta - estas condições de sociabilidade velam o mais secreto desejo - de manter oculto. a lei é a palavra irrefutável do dejeto, é a ordem suprema que autoriza a existência do crime. a transgressão, além de se despontar como ato, é humana, perversa, plena, suja, libertária, horrorosa. é o urro mais primitivo e sincero, que não se mostra como signo aos outros. corpo algum resiste ao tremor e frenesi que a paixão pela ruína desperta: a violência é a forma de amor mais gentil; só se concebe sexualidade a partir da decadência, da diferença em si e de si, como as lacunas de morte que a transição do tempo disfarça. o marco da descontinuidade possibilita os mistérios da obediência, os tratos adequados ao outro, a atuação dos afetos silenciados, o amor e sua aniquilação fundamental, o gozo impossível, mas mirado. mas não o sexo. o sexo é ilusório, dá sensação de haver algo contínuo e contíguo ao "para além do limite". como humanamente sexual, é preciso haver o flerte entre o erótico e o transgressivo - ou, de outros modos, saber-se assassino e mortal, apesar das experiências extremas do corpo. o ódio é osso, instrumento primevo que possibilita matar. o ódio é a morte encarnada sem que se precise morrer.