3 de agosto de 2014

quando viagem

não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce em um sotaque absorvido: prolongo as consoantes mais macias, engulo o final das palavras, inicio todas as frases com um estalo de língua ou uma interjeição que dará o tom do resto da fala, recheio os pensamentos de ditados e provérbios, termino as conversas rindo com um gosto de letra espirituosa na boca. não sou homem de paisagens, prefiro o disfarce de um morador local ajustado aos hábitos da cidade: na casa meço conforto e constrangimento a partir dos deslocamentos da hospitalidade, chego todo espantado com o avanço do comércio e o retrocesso da população, me fascino com o frescor das frutas e verduras nos mercadinhos, nas lanchonetes e nos botecos me divirto com o preço destoante do que estou acostumado, as quitandas e quitutes que como no café tão cheio de gosto, descanso sentado sobre o sol de fim de tarde nas ruas mornas, leio os livros que trouxe por pura sobrevivência mental, deito no chão quente pela manhã para pressentir os fatos do dia, no silêncio encontrado escondo choro e gozo de circunstâncias e memórias. não sou um homem de paisagens, prefiro o prazer disfarçado e comovido pelos dias contados no calendário: melhor do que ir, só a garantia de voltar, mas estendidas em programações quaisquer: passeios tensos entre tédio distraído e desejo perturbado, almoços e jantas bem planejados e reciclados, conversas importantes e descartáveis com quem verdadeiramente amo, falsos acontecimentos em nome da certeza de que viagem alguma merece ser narrada.