10 de dezembro de 2015

frente a qual toda exposição será insuficiente, tendo em conta a insaciedade de quem vê, assim como quando tal nudez se apresenta desavisada, levando em consideração o tremor diante do que é gratuito sem menos ou mais, a assertiva provisória sobre o comedimento: o melhor leitor é aquele que não escreve.

4 de dezembro de 2015

gosto desses senhores bem-vestidos que admiram árvores. galhinho na mão, andam e se detêm conforme a curiosidade. o galhinho indica que vêm de longo caminho, talvez já cansados e necessitados de um copo d'água. com o aguçado do gosto para formatos e texturas de flores, frutos, folhas, caules e raízes, regulam o passo e o descanso à medida que olham atentos. quem são esses senhores: botânicos, jardineiros, bruxos, fitoterapeutas, professores universitários, colecionadores? pelo modo que se vestem, aparentam boa razão e algum senso fixo dos costumes (talvez não sejam muito receptivos às notícias do jornal ou aos jovens barulhentos em suas roupas espalhafatosas). obsoletos, têm alguma discrição e cordialidade para com o mundo. têm dedicação para as árvores, contemplação para as árvores, silêncio para as árvores. poderiam ser eles mesmos árvores.

10 de novembro de 2015

noite de ressaca

estrelas em jogos
de dormir. brilho sem cor
quando o mar sobe.

2 de novembro de 2015

cheio de si objeto
george michael
maconha cocaína crack sexo
passa a vida
a errar entre
prisões banheirões
apaixonado pelo consumo desapegado
pronto de tanto poder
se largar
aos prazeres e devaneios
de dias molhados em corpos molhados
às pressas olhos vermelhos
boca seca dedos queimados
latinha furada fósforo
pedindo amor ou seio da mãe

tão bonito sem rumo
george michael sorri
aos sons e gestos familiares
mãos lentamente ensaboadas
intenções afirmadas pelo reflexo
portas cerradas trincos movidos
zíperes deliciosamente abertos
espantoso espanto
george michael distraído
como quem espera algum sossego
interromper esses "vícios"
pela lei de um policial
disfarçado de possibilidade
que arma mais dotada
tiro ao alvo certeiro do cu

iluminado e midiático
george michael canta
sexualidade espetacular
exagera sua natureza
pensador 24 horas por dia
de seu próprio pau
chama pelos helicópteros
pelos repórteres pelas vedetes
pelos boys muitos boys
cruza homens e mulheres
faz música para compensar a vergonha
as fantasias todas nossas
mais profundas que os pedidos
(quem nos dera essa liberdade)
fundidos num órgão só

livre porém subordinado
george michael se entristece
pela escolha impiedosa de ser homem
há sempre um escape de prontidão
seda espelho cachimbo camisinha corpo
e se questiona sobre as regras do jogo
dos prazeres rápidos
qual a finalidade a emoção
de descer aos chãos úmidos do desejo
em busca de uma descarga particular
fazer gemer o som profundo
até regressar como mensageiro
de uma experiência com os limites
e dizer sincero e orgulhoso
"eu sou isso"

28 de outubro de 2015

desce daí
pose pra quem
o reino do carão
é aqui embaixo
mais real que esta prisão
de feridas
masculinas
estátuas de si mesmas
desce daí
sem medo de lâmpada
do armário surdo
uterino
da voz de dentro gritando
viado
viadinho
desce daí
promessa do submundo
do ralo abaixo
pela ciência higiênica
assumir uma identidade
todos diferentes
tão iguais
virados
invertidos
desce daí
ninguém deixou de ser gente
homem macho
mulher fêmea
tesão impossível
por uma verdade
simples e honesta
apesar de todo o dinheiro
o amor ainda não tem preço
mas entre nós se aceita cheque

3 de outubro de 2015

contundência

1. lesão ou contusão causada em um corpo por batida ou choque;
2. dureza, peso; força impressa no ato de descarregar;
3. sofrimento gerado pela agressividade ou violência;
4. decisão ou firmeza.

vejo de longe o conferencista. não consigo escutar com precisão devido à distância entre a platéia e a mesa, levando também em conta minha posição na platéia e meu já desinteresse na mesa. a mim chegam somente alguns ruídos sonoros e o silêncio de profunda pose de compreensão dos que conseguem ouvir ou fingem. escuto então o que vejo: um senhor grisalho a deixar papéis e canetas caírem no chão enquanto espanta do ar o ar. um professor pós-doutor titular emérito aposentado a aparentemente fechar os olhos e a contrair a boca e a arear o nariz (as abas distendidas). o polegar e o indicador fechados em um círculo, os outros dedos esticados, a mão perpendicular ao eixo vertical do corpo em um movimento descendente. descubro então o que vejo. um leão. rugindo, rugindo.

2 de outubro de 2015

o george michael não faria
essas coisas tão absurdas
de dançar sem gosto
de jogar com amores
não faria não tentaria
transgressões nem desafios
sem uma intenção inteligível
bem elaborada a mensagem
pela cintura e pelo corte da barba
futurista e penteado
couro verniz látex
sem medo do ridículo diria que
but if you're looking for fastlove
if that's love in your eyes
com remorsos de um passado
privado mas público

o george michael não faria caso
dos sofrimentos das despedidas
dos olhares prolongados
muito compreensivo com os desencontros
muito apegado aos cantos de parede
por fim curaria a si sozinho
me escreveria cartas de desculpas
em que fingiria umas verdades
apenas por puro apreço estético
entregaria na minha porta
black-tie e rosa na boca
dizendo que se eu quisesse
se eu quisesse
a gente podia sair para jantar
ou largar tudo e velejar
ou perder a tarde num motelzinho

o george michael não faria questão
de saber o que se passa
no mundo ou nos noticiários
sendo o homem frágil que é
ocupado com a própria sensibilidade
estaria entre cordas e correntes
amarras de um coraçãozinho delicado
não gastaria tempo buscando entender
o que é quem é como é por que é
mais preocupado em existir e viver
sem muitas profundidades ou filosofias
mas sempre disposto e em conjunto
casal trisal bacanal igual entre iguais
único jeito possível ou talvez ainda mais
os excessos sem dimensão do pior
sob o globo espelhado? ainda melhor

porque o george michael
este deliciosamente inventado e meu
de vida doméstica e fantasiosa
chão limpo geladeira cheia choros de madrugada
dancinhas e joguinhos cristalinos
só liga para mim
pra cantar e dizer com clareza
cedendo cintura e barba
guilty feet have got no rhythm
sem silêncios ou olhares dúbios
que ainda está disposto
(e muito) apesar de
me espera paciente
todo próprio buracos em flor
sem black-tie
nas mãos a rosa rígida

14 de setembro de 2015

estação

de dia cinzento
se fez o tempo. na vez
do não-sol, além.

24 de agosto de 2015

rotatória

somente uma placa
tão somente uma placa
deveras uma placa
repetida e reiterada uma placa
permanentemente uma placa
bruta e pura: uma placa

a enganar o instinto quase natural
por conduzir consensualmente
em um sentido assim anti-horário
seu carro um homem
achando que o mundo é mundo
e que a placa é placa

17 de agosto de 2015

saudade daquele bailinho

blade runner blues tocando: silêncio dos órgãos: um testemunho: meditação das pedras.

11 de agosto de 2015

quando eu for no foguetão
vou descalço rindo
sundown e cheetos
domingo de todos nós
quase pedindo para não ir
e ir com mais gosto de ir
só pelo não

quando eu for no foguetão
sozinho de pai e mãe
atravessar a ponte
grito surdo sem medo
areia de memória em grão
"é só um brinquedo"
subindo mais alto mais alto

quando eu for no foguetão
já irritado com vida
estourar vermelho o branco
cabeça de criança
do topo à descida
esperando lançamento
ou morte nas serralherias

27 de julho de 2015

(nos fins de tarde, a banda municipal ensaiava. era programação se sentar à varanda e escutar. com pouca ou nenhuma companhia, no alpendre, meus avós. quem estivesse ali de passagem pela calçada ou em visita, aproveitava a cena, chorava algumas memórias insuperáveis ou apenas conversava qualquer bobagem. boas-noites eram distribuídos. ali, quem fumasse, fumava, quem bebesse, bebia. quem calasse, calava. terminado e apreciado o ensaio da banda, eram recolhidos os restos de gente e palavra. e a vida, quando ainda era vida, continuava morosa, amena, meio suspensa.)

22 de julho de 2015

paira no ar

distante da terra
o lago paranoá
sonhando, até.

11 de julho de 2015

entre o corredor e o quarto

parado, com um braço pendente e o outro servindo de máscara, rosto afundado na dobra do cotovelo, respiração modificada pela compressão do nariz ou por alguma irritação imponderada, visão ofuscada de nada a ver, ombros curvados de quem há muito se cansou do mundo, emoldurado por uma luz de sol quente que incide nas costas, ali, em repouso no vão, em vão, tu, antes de jogar este peso de corpo chamado à cama, esperando pelo convite a se perder nos giros do amor de um homem fóbico.

25 de junho de 2015

condição de uma tarde

uma dança de moleza e cansaço: corpos juntos sem simetria: o peso dos quadris e a leveza dos olhos

30 de maio de 2015

me vi animalesco em uma famosa cidade qualquer em frente a uma praça sob a lua e cansado das grandes caminhadas movidas pela escravidão de olhar na condição de turista em busca de uma prova que poderia constatar presença em território estrangeiro além de ímãs e chaveiros temáticos comprados às pressas sob o selo de registro de uma experiência desenrraizada dos dias comuns em que vivi no que ingenuamente chamo de minha cidade tendo por subversão o minuto em que inventei uma posse de uma cidade ou um rosto para a ilusão de eternidade enquanto o mundo ria do meu desconforto frente à câmera e extraía uma imagem eu rosto oleoso e sorriso falso escorado em um parapeito com o fundo do que você indicaria como arquitetura única seguido de um silêncio acusador diante do desinteresse que não escondi pela então nomeada belíssima e excêntrica catedral de são basílio

25 de maio de 2015

ronaldo dionísio da costa
nascido em 1979
des-apareceu em 1988
aos 9 anos
em planaltina, df

hoje com mais de 35 anos
não se sabe se
o menino ronaldo
tem ou teria
história e família para seu não lugar

notado em ausência
dezessete dias depois de seu aniversário
um feito dionísio
decidindo se demora
o tempo de outra vida

denotado pela
secretaria de estado de desenvolvimento social e transferência de renda
dá as costas
ao rosto em cartazes
à busca do ainda buscado

nem por quê, por quem
nenhum rastro do ter sido
mais de 25 anos de procura
talvez por um nome (que resta)
ronaldo dionísio da costa

15 de maio de 2015

esta abelha rondando sua orelha
me faz imitar zumbido, querer ser
igual falar bem íntimo
beber da sua coca-cola
nadando bebendo afogando
fugir do seu gesto vai embora
mas voltar eu-abelha
ferrar braço e perna
por instinto por paixão

10 de maio de 2015

gato olhando buraco de prego

com desejo na
parede, faz, sem ver, crer.
sombra enganada.

5 de maio de 2015

marli se levanta cedo e passeia benedita todos os dias
antes do café
antes do jornal
antes do barulho da cidade
marli e benedita conversando: quem é a lindeza da mãe?

e como marli gosta
de como deita e rola feito gente ou bicho
na terra, na grama úmidas
cuidado benedita! as formigas
benedita feliz por quase nada

marli beijabraça benedita todos os dias
antes do trabalho
antes do mamãe-já-volta
antes da saudade
marli e benedita assistem à novela das nove juntas

e como marli gosta
de como o ônibus vai cheio e jovem
para a universidade, para a esmola
eternas
benedita cheia de notícias por quase nada

marli chora três filhas e marido mortos todos os dias
antes dos comprimidos
antes da tv
antes da solidão
marli chorando e benedita uivando solidária

e como marli gosta
de como o tempo passa e demora
na casa, na cama
vazias
benedita esperando e contando as horas

26 de abril de 2015

faz favor | dá um passo | como quem | não quer nada | mas espera | calor | um pouco | faz favor | de graça | como quem quer | dar cuidado | ao outro | um agasalho | em espera | faz favor | só passar | como graça | de si | em cuidado | mas pelo outro | querer espera | favor | talvez um cabide? | faz dar | não tendo | agasalho ou calor | só | uma graça | cuidado consigo | em passo | faz favor | dá graça | como quem passa | de cuidado | sem espera | ao calor | do outro | por pouco | fazer | talvez calor | dar por fim | a espera | em agasalho | sem cabide

22 de abril de 2015

o tio eric se escondeu atrás da pilastra para me dar um susto. o tio eric fez cosquinhas na minha barriga e depois me abraçou. o tio eric pediu notícias minhas, perguntou como andam as coisas. o tio eric disse que eu podia ir para a casa dele jogar videogame com os meninos. o tio eric disse que gostava muito de mim e que estava com saudades. o tio eric ficou muito feliz em ter me visto, havia tanto tempo. o tio eric pediu licença para me dar um beijo na testa. e aí, aí o tio eric me deu um beijo na testa.

16 de abril de 2015

lembro de, quando estávamos sentados na areia, com a esperança de encontrar algo entre meus olhos e o mar, pensei no descanso que era estarmos ali, tão desobrigados dos compromissos comuns. você já havia terminado seu dia, eu já havia terminado meu dia, tínhamos acabado de comer qualquer coisa. naquele fim de tarde, ficamos em presença um do outro, como já havíamos ficado a testemunhar desde sempre luz bonita de sol caindo. sem palavras. uma missa acontecia perto, missa cantada que cantava melancolias, ao movimento das ondas. forcei uma compreensão para aquele descanso. você riu do meu rosto de criança pensando. avaliando em certo tom de azul o que estávamos fazendo naquela praia de mutismo, concluí desistindo que era vida, então. ali, sentados na areia, encontrei algo para preencher esse acontecimento entre meus olhos e o mar: estava vivendo: vivendo vida, desde sempre.

8 de abril de 2015

antena de prédio

siso do urubu:
ser tão vazio; em vão
pássaro profundo.

26 de março de 2015

em silêncio

ir embora
embora ir
ao encontro de
(de encontro a)
ti
mim.

17 de março de 2015

pelos pudores que a sedução trai frente ao que se cobiça como fragmento de si no outro.
e o perdão negado por caber juízo à indecisão do estado em que se firmam os votos.
pelos silêncios quando impossibilitados de dizer o que faz em uma relação o laço.
e o perdão afirmado à proporção do crescimento dos pêlos no corpo.
pelos abandonos a uma companhia desescolhida por circunstância ou geografia remota.
e o perdão reafirmado esperando que caiba na vida comum um momento.

7 de março de 2015

O diálogo entre o relâmpago e o trovão

– Onde ir?
– Vá à frente!
– Qual direção?
– Onde estiver escuro.
– Você vem logo atrás?
– Onde estiver silencioso.
– Quando nos encontramos?
– No susto e na espera do que estiver no caminho.
– É certo?
– É possível.
– E se não houver susto, nem espera?
– Daí nos encontramos em algo que já espera e, portanto, assusta.

1 de março de 2015

a pouca tolerância à mútua presença ainda nos levará à doença mais próxima do amor. não pelos constrangimentos do contato e pelas pequenas violências que são condição do convívio. não pelo desencontro que faz com que cada tentativa nossa de diálogo se abra em mal-entendidos da própria linguagem – nada mais enlouquecedor do que o apreço pela leitura dos sentidos implícitos. a doença mais próxima do amor é a constatação de que nós aprendemos nossos nomes tarde demais. daí por diante, é ressentimento, fábrica de nova ilusão em ter ainda crença, ainda que oscilante, em saber amar, sentir-se amar, para então ser verdadeiramente amado. não haverá descanso ou respeito à intimidade até que atravessemos novamente esta fome. esta fome criadora que nos fará, então, tu e eu.

23 de fevereiro de 2015

concessão

unhas mordiscadas, boca de ventríloquo, roupas descoloridas, guimba de cigarro, fantasia de cinzeiro cheio, copo marcado de bocas e dedos, ralo semientupido, café de máquina, louça no escorredor, isqueiro com pouco gás, varal vazio, dor de cabeça leve, óculos sem plaqueta, perfume incômodo, plantas sem água, pés apertados nos sapatos, bolo de cenoura sem coberta, curiosidade doméstica, janelas abertas, paredes vazias, mensageiro-dos-ventos em mudo movimento, sorrisos, sorrisos, sorrisos. "mas... e aí?".

14 de fevereiro de 2015

não saberia como começar a dizer tudo que vi, tanto visto por pouco olhado. não pensar havia sido solução temporária para sobreviver à incursão às águas, proposta de viagem que eu mesmo criei, mas que se tornou pesar ao me pensar a companhia inadequada com vistas a uma filiação que não se reduzirá ao sobrenome da família. viajar com uma tia entrando na velhice não é lá inteligência, por mais engajado que eu esteja em reconhecer meu traço como meu. algumas fotos foram tiradas, mas a cama do hotel e o meu humor estavam em desarmonia e não fiquei bem; minha tia não se importou com o estar bem na foto, apenas com o estar. mas lá, engraçado, como lá, em águas de catarata, pude também me cegar um pouco pela circunstância. nos parques, vários quilômetros a pé para se aproximar das quedas, água-grande, tanta gente a ver e a fotografar, optei por não registrar o momento, mas, palavra, tanto que 'catarata' me foi saltado aos olhos assim que a opacidade das águas brancas, o barulho do choque com as pedras, foram pensados. não enxerguei senão água fora e dentro dos olhos, pude me emocionar como qualquer ser humano diminuído à sua real condição. "mas mar?, tão longe daqui", pensamento rápido de que "água é tudo igual" para justificar a remissão do som. nada. sem conforto: água em queda é tão valioso quanto água que vai e vem, preferi não me dar às comparações injustas. chorei quando na garganta do diabo: depois de vencer a insegurança de andar pelas plataformas de metal e abrir mão do imperativo de olhar, fui firme rumo ao lugar que por dentro me referia como 'aquela cena do filme' porque podia jurar um acontecimento, para além de algo que se dissolveria naquela garganta, sabendo da impossível dissolução de afetos em água, outra prova fracassada do que é o recomeço. um grupo de turistas orientais, não saberia dizer se eram ou japoneses ou chineses ou coreanos ou etc., começaram a rezar em coro. qualquer sagrado é reconhecível mesmo em língua desconhecida. o profundo se transmite mesmo assim. inesperado como eu estava, não resisti ao clichê e caí minha própria água.

6 de fevereiro de 2015

de cisão

um a menos
para
um há mais.

19 de janeiro de 2015

é de som

a percepção da realidade externa: o arroubo da tranquilidade de domingo causado pelos santinhos de falecimento escorridos em uma consulta ao dicionário pelo prefixo pod(o)-.

a consciência: as fotos da infância de que não participei, as lembranças esparsas que quase não são minhas não fosse a identidade referida a um corpo que se mantém como meu, o gosto do qual não compartilhei, o time para o qual nunca torci, o painel do he-man com o rosto vazado, o capacetezinho decorativo que eu não entendia o porquê de sê-lo ("capacete" viria a se tornar algo outro, que se parte qual fruta despencada), o abraço que nunca dei - mas que dava escondido, dissimulado -, a música da qual eu me envergonhei, o jogo que teve para receber minha destrutividade, o skate verde que parecia tão divertido e que nunca me atraiu, as festas imaginárias ao som de trem da alegria, o olhar trágico e temeroso para sustentar a presença do nosso pai, o desapontamento para minhas encenações fúnebres, o amor gratuito para mim.

a compreensão interna: o que está gravado na lápide, nascimento, morte, epitáfio ("saudade"), e só por estar gravado, é o que saúda o morto em sua mortalidade, afirmando-o como inevitavelmente morto e autenticamente vivido, e, portanto, saudável na medida em que se pode transmitir a ele (suas) memórias e notícias.

12 de janeiro de 2015

quando chegado verdadeiramente

"diz diz que me - ama":
no rádio, um cantor gago.
areia na cama.

11 de janeiro de 2015

quando chegado

sol, pressa, manhã:
praia. cueca molhada
no pé de poncã.

8 de janeiro de 2015

_ecepção

à prova, o anfitrião se põe como alheio ao seu próprio lugar: cede, empresta, oferece, doa. o anfitrião se põe cansado de seus préstimos e dá aos cuidados rumo próprio conforme a expansão do hóspede. a casa reduzida às satisfações biológicas, o anfitrião se põe como hóspede da animosidade de seu modo de viver assemelhado ao da visita: que também é rotineiro, que também é caseiro, que também é intolerante ao caos, que é, contudo e principalmente, também paternal. quando o anfitrião se põe paterno, assemelha-se ao inimigo próximo que ronda seus medos de ausência de rotina, nomadismo e desorganização: reparte a função em várias pessoas, dilui-se. assim, abdica de seu poder em nome de uma criação plural, na qual todos os modos de viver são apresentados e curiosamente rechaçados de sua hospitalidade: um pai recepciona. sendo o pai um anfitrião, põe-se como provedor, extrato bancário abastado como única virtude. sendo o anfitrião um pai, põe-se influente somente na medida em que deslegitima quem ensaie as boas intenções em ceder, emprestar, oferecer, doar: um pai decepciona. assim resta: homem frágil, apegado a qualquer virilidade frágil.