29 de maio de 2020

coada pela rede incide recortadamente a estrela
em feixes retangulares o retalho impossível
no chão um mosaico irregular e temporário
se desenha pelo tapete outro tapete
iluminados nos banhamos como quem se cobre
dos destinos do mundo natural – apenas existimos
e os gatos olham e piscam sem suspeitar

(à noite incandescem as luzes domésticas
rente às janelas o tempo passa à deriva
os sóis descem à paisagem dos apartamentos
perguntamos acima e desde antes apartados
pelo nosso insistente erro ou engano humanos –
no frágil pano cósmico se trama nenhum desígnio
longe responde certeiro um sorriso prateado de foice)

21 de maio de 2020

assincronia dos pássaros

vão sem pouso ao pouso
do dia. cantam sem fim
à noite: agouro.

6 de maio de 2020

praia do morro

I

segurando no meu ouvido a concha retorcida
que na mesa de centro da sala da minha tia
decorava a casa – meu primo
"reconhece esse barulho?" (cf. Bruna Mitrano, "moro a 70km do mar")
pela primeira vez ouvi o rumorejo
por aquela boca de nácar casa de nenhum molusco
"é o mar" "como é o mar?" perguntei como se
ao que meu primo me apresentava
fosse explicável de outra boca
à graça da minha razão de criança

"ah, o mar... é o mar" "assim não"
invejava o queimado na pele daquele que
testemunhava as férias na praia de jacaraípe
em serra no espírito santo onde sua mãe possuía casa
"o mar é perigoso" "como?" assim tinha de ser
pela espuma raivosa pelo cheiro dos peixes salgados
pelas maldições lançadas na areia
como eu imaginava mas não sabia
"o mar... mata" sim – como matam
os carros as doenças o desgosto a velhice

"como?" "com a força da água" sim a força da água
saindo das torneiras das hidrelétricas
dos bocais das piscinas da ponta
da mangueira pressionada com o dedo
"como?" "o mar é onde as pessoas vão para morrer"
longe da linha que demarcava e se perdia
entre azul borrado e verdadeiro céu
era o mar massa gigantesca que a tudo toma
e também casa das pessoas que morriam nele
por vontade ou desengano

"como elas morrem?" "pela boca,
como os peixes... não essa" e pousava
a concha de volta à mesa me deixando imerso
nas minhas poucas experiências doces ou cloradas
no olhar estático dos que se afogavam
contra a imaginação e o jogo de palavras
eu me aborrecia por não saber do mistério do som
reproduzido em um objeto-extensão
não saber dos desejos dos que poderiam como nós
morrer engasgados por alguma sede


II

verão-janeiro de 2000
como toda família mineira
passeio em guarapari na expectativa de descanso
as férias transformando os dias em lazer ou trégua
fora do claustro dos prédios da cidade
realização do suor do trabalho de mamãe e meu irmão
por fim iria pela primeira vez à praia
assim seríamos provisoriamente outros
as pessoas felizes e douradas que víamos
nas novelas da globo ou nos filmes de fim de semana

sob o império do sol estávamos todos equipados
cadeiras de praia cangas toalhas sacolas
nos corpos sundown óculos shorts chapéu
sobre o escaldo da areia a vida litorânea se desdobrava
os ambulantes oferecendo suas mercadorias enquanto
outras famílias desconhecidas se cumprimentavam
em busca de algum vínculo comum "ô, cêstamémsãodmins?"
respirávamos fundo e sentíamos o mundo tal
qual um acúmulo de calor e brisa – enquanto distante
um barco ou jet ski ondulava a paisagem sossegada

éramos à beira inundados pelos cheiros
alga peixe limão cerveja queijo coalho braseado
abaixo dos coqueiros as novidades eram caranguejos gaivotas
nos pés torrados cutucavam pontas de conchinhas pisadas
finalmente perto do borbulho do murmúrio
emergiam de outras águas meu primo a concha o som
eu sentia a pele ardendo nas mãos autoritárias do sol
como uma resposta às perguntas impossíveis que fiz sobre
o perigo que poderia dar e receber o mar
receando tímido como iria ao mar – e o mar a mim

quis também ser um novo animal unido à concha e
fazer jus ao sentimento oceânico imposto aos sentidos
– pela dissolução quis me perder como parte do todo
assim como reproduzia o som ecoado na mesa de centro da sala da minha tia
quis rir de volta dos jogos do meu primo
eu transformado em molusco compreendendo
que o mar sova salva e pune todos com água e sal
segredo e força da água volumosa diante de nós
enquanto testava o pé nas espumas e intuía algum fundo infinito
investigando o repuxo da morte o desejo de não me afogar


III

em revolta contra a grandeza e diante da necessidade
de iniciação à ordem dos que conhecem o mar
da profecia da euforia da alegria imaginadas
decido dar corpo às águas salgadas pela primeira vez
me fazer espumoso-líquido – salgar e empanar a pele
ir ao mar e o mar a mim como num segundo batismo
executado sem ocultismo e à luz do dia
guiado pelo barulho da concha na memória e pelo estrondo
das ondas quebradas – bebo da água que aperta o céu da boca
sob o céu externado mergulho tomo caldinhos e brinco

nas proximidades do nosso guarda-sol
onde eu brincava à vista dos meus – um acontecimento
uma banhista se viu surpreendida nas águas
uma garra de cinco peixes a roçarem os seus tornozelos
como se buscasse grudar um corpo ao seu corpo vivo
vivíssimo e nadante que se esbarrou em um cadáver
um homem diziam dali desaparecido há quase uma semana
que pescava junto às pedras da encosta e havia por
acidente se deslizado e respirado água imensa
como um peixe que busca de boca aberta o chamado

torna sempre ao mar o que é do mar
vasculhado pelos bombeiros ao horror da moça
abraçada pela mão cadavérica que quase nela se fechou
eu me via longe da sala da minha tia mas devolvido ao riso do meu primo
diante de um afogado um afogamento maior
como é o mar – sim – mas o que é o mar – o que é o mar?
onde estava o silêncio pousado na mesa de centro para diminuir o marulho da morte
mamãe me cobria com uma toalha (ninguém sabia francês
para jogar com mer mère e desfazer ali os excessos)
e me murmurava "acabou por hoje", "já vamos embora"

dessalgado o corpo pelo banho de chuveiro e tendo mamãe passado
pasta d'água nas minhas costas insisti ainda em alguma razão
para conter a graça e o medo de mar-mistério-morte
ausentes a concha e meu primo – a primeira vez à praia lecionava
o mar é a morte o mar é um cemitério o mar é o mar
eu quebrava e ecoava eu conheço o mar eu conheço o mar
à noite esclareci a deus que não era molusco e confessei
que não compreendia como aquilo tudo chegava à sala da minha tia ou de lá até mim
rezei três pai-nossos contive água num copo e a bebi devagar
deitado antes de dormir por precaução aos dedos de peixe calcei meias