30 de janeiro de 2014

extra vagância

às demoras do erro, linguagem. às normas do erro, revolução. às rotas do erro, apagamento. às injustiças do erro, reconhecimento. às certezas do erro, firmeza. às redondezas do erro, virtude. às vaidades do erro, trabalho. às formas do erro, preenchimento. às loucuras do erro, juízo. às andanças do erro, perna. às memórias do erro, criação.

23 de janeiro de 2014

vóz iv

o tédio dominava alguns de seus dias. quando transmutado em ócio, produzia proezas de casa e de pensamento. sobre o pequeno altar que fundou no seu quarto (e que posteriormente virou "o lugar dos remédios", os objetos sabem mais bem da função que ocupam do que nós): essa janela pequena nunca me serviu pra muita coisa. tive uma idéia. casa antiga, parede grossa, muito parapeito:  fecho a janela, pinto de azul por dentro, faço um altarzinho. a imagem da virgem santa já tenho. faltavam o fundo azul e as nuvens brancas. eu mesma que fiz, peguei bucha, tintas azul e branca, saí desenhando. sabia que as nuvens são classificadas a partir das formas e dos jeitos que tomam no céu? cumulus, nimbus, cirrus, stratus. não lembro bem o que cada nome é o quê, mas lembro que existem combinações também; as classificações são várias, se está muito espalhada, se está muito densa, se está muito próxima ao chão, assim vai. quando a gente olha pro céu, não desconfia que existe um sistema difícil pra essas belezas e brancuras que estão lá. chega a ser inútil saber dessas ciências, porque não serve de nada na minha vida de gente simples. mas saber isso envaidece. e as nuvens estão lá, sempre estiveram, pra quem sabe cumulus-nimbus-cirrus-stratus, pra quem não sabe. não estou desprezando os conhecimentos; no fim não faço muita diferença entre o altar ou a janela. mas acaba sendo uma metáfora sobre a vida: saber ou não das nuvens, saber ou não da vida: as duas continuam lá.

21 de janeiro de 2014

o céu de brasília é de alucinações roceiras
o céu de brasília é feminino que se maquia para no fim se limpar
o céu de brasília é conversa
o céu de brasília é desse que faz contorno aos murmúrios
o céu de brasília é mesmo solidão
o céu de brasília é copo d'água pra sede
o céu de brasília é hospitaleiro que não faz vista de chinelo ou sapato
o céu de brasília é beijo de boca seca
o céu de brasília é de uma fome por afeto
o céu de brasília é mar imaginado
o céu de brasília é desse que abraça para evitar contato

19 de janeiro de 2014

ribombo

ato e gesto se contraem quando vistos, mas há uma diferença anterior (não psicológica): o gesto é simulacro do ato. o gesto precede a consumação de qualquer ato: um objeto privilegiado, um pequeno desejo servem como tal. o ato aparece no mundo como mostração; o gesto, anunciação. o gesto é semblante desfigurado de ato. o gesto gesta ato. ato é falseamento inédita de gesto. existe uma relação íntima mas disrupta: o laço entre ambos é possibilitado pelo temor: uma certeza premeditada e incerteza futura, um passo dado com pés avessos. gesto e ato se separam e se aproximam no temor: o gesto, anterior ao ato, o ato, posterior ao gesto, não se sabem seqüentes: a divisão que o temor inaugura faz com que haja, entre eles, imagem vindoura e prenúncio revisitado. o temor, para o gesto, é indeterminação de formas. o temor, para o ato, é garantia de conteúdo.

14 de janeiro de 2014

a-presença-do-animal-(corpo)-a-presença-finda-do-meu-animal-(morte-ou-desaparição)-a-marcação-desta-ausência-presente-(memória)-a-pergunta-que-não-descansa-(cadê-a-dora?)-cadê-a-dora?-o-testemunho-triste-do-meu-gato-como-se-houvesse-sido-mutilado-os-ajustes-em-seus-hábitos-felinos-dormir-sozinho-comer-sozinho-beber-água-da-torneira-sozinho-o-testemunho-triste-da-casa-como-se-houvesse-sido-desanimada-os-ajustes-feitos-por-conta-da-ausência-da-gata-as-bolas-de-papel-foram-recolhidas-os-cordões-das-maçanetas-das-portas-retirados-uma-vasilha-de-ração-a-menos-o-tapete-predileto-guardado-as-sacolas-plásticas-desinteressadas-os-insetos-em-busca-de-serem-novamente-presas-fáceis-e-os-vestígios-de-hábitos-conjuntos-a-mim-o-iogurte-desacompanhado-o-banho-solitário-(mas-o-mistério-do-ralo-continua)-o-modem-e-a-mochila-limpos-de-manhãs-e-tardes-e-noites-de-dormir-os-carinhos-repentinos-cessados-mas-não-a-saudade-a-dora-sumiu-mas-não-a-saudade-

5 de janeiro de 2014

o frescor que o ódio traz rompe com qualquer monotonia dos dias; a destruição se transforma em necessidade, operar o caos do mundo pelas próprias mãos é a sedução mais profunda e doentia que os interditos não dão conta - estas condições de sociabilidade velam o mais secreto desejo - de manter oculto. a lei é a palavra irrefutável do dejeto, é a ordem suprema que autoriza a existência do crime. a transgressão, além de se despontar como ato, é humana, perversa, plena, suja, libertária, horrorosa. é o urro mais primitivo e sincero, que não se mostra como signo aos outros. corpo algum resiste ao tremor e frenesi que a paixão pela ruína desperta: a violência é a forma de amor mais gentil; só se concebe sexualidade a partir da decadência, da diferença em si e de si, como as lacunas de morte que a transição do tempo disfarça. o marco da descontinuidade possibilita os mistérios da obediência, os tratos adequados ao outro, a atuação dos afetos silenciados, o amor e sua aniquilação fundamental, o gozo impossível, mas mirado. mas não o sexo. o sexo é ilusório, dá sensação de haver algo contínuo e contíguo ao "para além do limite". como humanamente sexual, é preciso haver o flerte entre o erótico e o transgressivo - ou, de outros modos, saber-se assassino e mortal, apesar das experiências extremas do corpo. o ódio é osso, instrumento primevo que possibilita matar. o ódio é a morte encarnada sem que se precise morrer.