17 de dezembro de 2012

(ler em aristóteles que só é feliz aquele que se reconhece feliz. ler em epicuro que quando te angustias com as tuas angústias, te esqueces da natureza: a ti mesmo te impões infinitos desejos e temores. ler em freud que a pessoa feliz não fantasia, somente a insatisfeita. ler em lacan que o desejo é falta. ler em mallarmé, acompanhado de haroldo, que eu triunfava em meio à falta ideal de rosas ou à guisa de triunfo a ausência ideal de rosas ou eu me dava em triunfo a falta ideal de rosas. meu aprendizado em um descanso que tive embaixo de uma árvore, como um fauno esgotado de se manter ideal: até na mais árida solidão, doura água dura; até na mais molhada companhia, enrijece-se o perdão retraído pela razão.)

8 de dezembro de 2012

Un.heimliche

o cheiro de toalha nova, a letra do professor de ética, os pensamentos em crise, as conversas com os parentes distantes, o olhar da conhecida, os desejos sem objeto, o corpo recém-acordado, os textos antigos da adolescência, o gosto de cerveja, a pregnância dos livros da biblioteca, o susto das horas recém-olhadas, a hiância de qualquer beijo descompromissado, os bolos que não dão certo, os rostos nos ônibus, os cigarros nos dias de vento, o dia em que rezei: nada retorna como já me tinha partido.

27 de novembro de 2012

Bicicleta de rondinhas

acordava cedo, sábado, todos na casa dormindo, comia qualquer coisa, sucrilhos, comida de campeão na tigela alaranjada do tigre campeão, leite e cereal na pressa de descer antes do sol subir, pressa de descer e pegar a bicicleta no pecê do bloco, nunca soube o que é pecê, porta-coisa?, acordava cedo, café-da-manhã, leite, não tinha problema com leite ainda, além da frescura, não tinha problema, escovava os dentes, também de leite, tão bem treinado a me limpar, vestia as roupas que podiam portar transpiração, tão bem treinado a me precaver, calçava os tênis que podiam ser queimados no asfalto, tão bem treinado a me preservar, passava um perfume, tão bem treinado a disfarçar o cheiro do sono, me olhava no espelho e via um menino de blusa velha, calça velha, sapato velho, mas o cheiro era novo e era bom. fazia muito barulho, acordava quem se preocupava em vigiar, mãe desperta,
aonde cê vai a essa hora? andar de bicicleta,
cuidado pra não se machucar. mas eu vou,
cuidado pra não se machucar. mas eu vou. e saía, pegava a bicicleta no pecê, pedalava com força, cabeça leve, coração leve, vento pesado arejando cabeça, coração, tudo dependia da força que punha no pedal, se não forçasse, não iria ventar, se não forçasse, não iria fugir, se não forçasse, não iria. saía, pegava a bicicleta no pecê, pedalava até o posto, enchia os pneus sozinho, todo autonomia, a cara engraçada do borracheiro - que lindo nome, apelido meu sempre foi borrachinha. o irmão, borracha - em ver um menino tão cedo ventando, fugindo, indo. em uma manhã de sábado. pneu cheio, pedais a forçar, muita coisa a fazer: ir nas quadras próximas visitar as árvores, corversar com todas, nenhuma com nome, árvore e pronto, vêm todas do mesmo lugar do mundo. ia, conversava, tocava, abraçava. ouvia cada história, noites perigosas em que era preciso se manter imóvel para não assustar os jovens maconheiros que se aterrorizavam facilmente em serem descobertos; noites solitárias em que a sombra feita pela luz do poste punha em vigília qualquer mocinha voltando de um lugar qualquer, estando todas as ávores, na verdade, apenas descansando de um dia em que não teve muita luz; noites febris em que casais apaixonados se resolviam ali mesmo nas raízes; noites simples em que nada acontecia e que os bichos então conversavam sobre a latência das cigarras; noites de festas tristes em que as cigarras insistiam em cantar a fim de se fazerem casais apaixonados, noites estas que eram quentes; noites de luto quando alguma amiga-árvore se expandia até a fiação elétrica - diziam que seria aparada em breve, golpe narcísico, diziam -, diziam que a amiga devia se tratar com alguma criança, ali estava eu, ouvindo as árvores; noites felizes em que sonhavam com minha visita e minha bicicleta, e eu ria, feliz, também sonhava com árvores, amor recíproco é assim. visita acabada, tornava a pedalar, pedia água para os porteiros que via, da torneira mesmo, não me importo, todos também com a mesma cara engraçada. pedalava, ia até a banca de jornal, o dinheiro ganhado se transformava em muitas figurinhas de um álbum tosco que insistia em completar, dinheiro que era pra ser transformado em um saco de cheetos fedorento. cansado, rumava à minha quadra, chegava à árvore que tomei para mim, apelidada de pau-brasil, sentava em qualquer pedaço de tronco que se faz braço, abraçava, era abraçado, sem força, sem vento, leve e arejado, amor recíproco é assim também. e seguia para casa, triste, sem poder falar do que ouvia, mas guardando a felicidade de ter bicicleta para ventar, fugir, ir em minhas rondinhas.

22 de novembro de 2012

(esta ossatura bem marcada do crânio, estes vincos da pele que somem ao sorrir, este queixo quase apontando para alguma direção precisa, estes pêlos mal-raspados que novamente despontam, este lábio inferior adentrado aos cantos da pele, este nariz longo e arredondado na extremidade e largo nas abas, estes olhos sobrespostos ao próprio olhar solto, estes cílios retos e longos que não dão mistério algum, estas sobrancelhas circunflexas com fios difusos e de base arrepiada, esta testa ampla e emoldurante, estes cabelos lisos e desregrados conforme o determinismo do redemoinho, este rosto que vi tão igual sendo distraidamente em outro corpo: pergunto: eu sou ele?)

4 de novembro de 2012

cheguei n'outros lugares, olhei p'outros fantasmas, ouvi outros cursos, desejei outros cheiros, provei outros afetos, somei outros frios, dancei outras canções, cantei outras palavras, escrevi outras correspondências, correspondi a outras esperas, esperei outros sentimentos, senti outras fissuras, fiz outras lavrações, lavei outras escadas, respirei outros suores, transei c'outras curvas, trabalhei outras escuridões, falei outros mesmos para os mesmos outros:
adeus, hipotaxe, sou minha habitação.

30 de outubro de 2012

me enrijeci para ser imagem-semelhante de um obscurantismo que desconhecia. conheci e ainda desconheço; tão próximo estive da morte que me fiz pedra. pedrei, perdi meu perdão: Pedro quem me faz desobscuro. tão desconhecido eu próximo da morte - que rima pobremente com sorte, veja lá por quais corpos a língua percorre -, tão próximo do que fui conhecido, que corpo me enrijeci, como feto duro que ficou ali, sendo pedra na barriga de outra pedra. tão desconhecido estava eu da sorte que me fiz perda, Pedro a barriga de quem se fez perda. dei luz a uma bela semelhança que chamo de Pedro e que agora se perdeu no obscuro conhecido do útero que não tenho, feto morto que não nasceu além da lucidez.

20 de outubro de 2012

mplexo

quero braços de madeira para ouvir a surdez dos membros ao se chocarem com outros braços de madeira.

11 de outubro de 2012

Amantes


não percebes que sou Coisa?
também me coisifico, Tu me torno.
não percebes que és coisa?
venho de outro lugar, lá reina a morte.
sou também Morte.
sou coisa, logo morro?
e também mata.
e por que Te mato?
para enamorar-te de ti.
detido sou, venho de outro lugar. De Ti?
não sou mãe.
volto à origem?
não creias que exista um lugar que seja somente teu.
que tenho?
corpo.
que sou?
objeto Meu.
quem sou?
respondo incompleto: tu não Me és.
me amas?
és Meu, não Me és.
não compreendo.
fazes bem.
não compreendo.
não te amo.
que faço com o desamor?
ame-o.
posso?
reduzido à coisa, como amarás?
Tu não me amas, mas me tens. tenho eu a Ti?
tens tu a falta?
trago-a.
ela falta?
Tu me faltas.
amas a Mim?
Tu me faltas, Coisa.
faltas-me tu, símbolo.

3 de outubro de 2012

acordo cedo, nunca tive galinha pra dizer que levantamos juntos, acordo, tomo meu café, como meu pão, tudo meio sem vontade, sabe?, o céu ainda escuro, e eu ainda com sono, mas já estou de pé, tenho que trabalhar, vou ganhar a vida com o quê?, acordo, café, em pé, pão, pressa pra sair cedo, assim mesmo, numa pressa, nunca pensei que ia ser assim. quando era moleque sempre tive tudo na mão, mas daí mãezinha morreu, paizinho morreu junto, ficou triste demais, coitado, me deixou aqui, também triste demais, sem saber o que acontecia direito, mas tou aqui, acordado, meio dormindo de olho aberto, de pé, com pressa, não tive tempo pra pensar nisso direito, esse negócio de morte, só fiquei triste porque tinha que ficar e pronto, nem sei se tinha mas fiquei, saí da casa deles pra ir morar com uma tia. na casa da minha tia até que era bom, tinha tudo na mão, ela gostava de mim, gostava e dizia que fazia o que fazia "pelo seus pais", engraçado, né?, nunca pedi, cuidou de mim porque quis, e eu deixei, só fui acolhido porque senão ficaria lá que nem bicho, triste demais, sem pressa naquela época, tudo na mão, menos os pais que estavam aos pés, mas de resto, resto cabe na mão inteira, assim, ó, palma toda aberta. daí que fui morar lá com a tia, nem lembro mais o nome, faz tanto tempo, fui morar lá com a tia, estudei em uma escola que tinha perto, tive que parar depois, adivinha, a tia morreu. eu era moleque ainda, estudava, foi numa tarde que eu tava voltando da escola cansado, tinha aprendido umas coisas novas, tava cansado, de manhã já tinha ficado em casa pra ajudar a tia com a casa, comida, limpeza, essas coisas, tava eu voltando para casa, abri a porta, a tia lá, no chão, de novo?, mas que coisa, mais um aos meus pés, que mão aberta que a tia foi pra mim, até cuidou de mim, não sei com qual culpa, mas cuidou, e agora?, fiquei lá, triste, mas não igual a bicho dessa vez, já era homem, era moleque também, mas pelo menos já tinha um pouco de experiência nesses negócios de morte, e aí que eu não lembro muito bem como é que foi, apareceu do nada umas filhas dessa tia, primas minhas, vê se pode, nunca soube delas, chamando pela mãezinha, uma gritaria só, esse pessoal ausente é meio escandaloso, né?, cê já reparou? só morrendo pra ficar perto mesmo, nunca vi. a tia às vezes falava mesmo de umas raparigas que nunca voltavam, devem ser elas. elas me deram um dinheiro pra eu me virar, que coisa boa, já pensou, a tia cuidou de mim por culpa, ganhei um troco pra sumir da vida daquelas primas, ô povo da mão aberta. cada prima boa, se a tia me ouvisse agora acho que tinha um troço, mas cada filha que ela tinha. é pecado, é? esse negócio de achar prima bonita? por mim, casava com elas tudo. mas não tive nem vez, né, esse povo que vem de longe tem qualquer coisa de estranho, já foram me mandando caçar rumo, me virar. me virei, não era pra ter me virado, então, comecei a trabalhar no gás que tinha por perto, tou lá até hoje, tou acordando cedo porque a gente começa a fazer as entregas numa cidadezinha que tem aqui perto, a gente vai de caminhão, a gente eu digo uns caras lá, tudo moleque, os caras não têm experiência com esses negócios de morte, não falam de tia, nem de rapariga, nem de pai, nem de mãe, todo mundo lá preocupado com o gás, sabe como é que é, esse negócio explode, um dia mesmo fiquei sabendo de uma dona que morreu porque o botijão estourou quando ela tava mexendo com o fogão, fiquei até preocupado, a dona era conhecida minha, me dava uns trocados a mais, falava que eu era diferente, devia gostar de mim, fiquei triste demais, e agora?, e agora nada, morreu, tá no pé, que mais fazer?, nada, né?, e aí que a gente vai lá pra cidadezinha bem cedo, céu escuro ainda, na maior pressa, mal como meu pão, mal tomo meu café e já tou saindo. naquele buraco lá a gente nem liga o anúncio, só o barulho do caminhão já faz sinal pro povo ir pedir gás, deve que acordar, né?, é engraçado, o povo tudo com sono gritando da janela ô do gás, aqui! daí é aquela coisa: troca o gás na pressa, joga uma água na mangueira que liga com o fogão, se fizer bolha, é porque ficou frouxo, tem que apertar mais, se não, tá pronto, cinquenta reais, bom dia, boa noite, não sei que hora é, tchau. e é assim até ficar mais claro, sabe, o céu. daí é aquela coisa, liga o anúncio, o caminhão vai passando, tris-te-za gás, a gente lá com aquela cara cansada atrás do caminhão, e povo vai aparecendo na janela, ô do gás, aqui!, e assim vai. até que não é ruim, essa vida de viver de gás. não deu pra estudar tudo até o fim, mesmo hoje acho que não ia dar, já tou até acostumado com o gás, até gosto, pra falar verdade, trabalho que nem bicho, chego cansado em casa, só com o dinheiro de comer e de morar, mas não tou reclamando não, até que tá bom assim. só me dá um negócio quando eu penso que pode acontecer de um dia eu estiver em casa, assim, mexendo com o fogão, e o botijão explodir. e aí, credo, fico triste demais, e aí eu penso, cadê as primas, vou deitar no pé de quem?

21 de setembro de 2012

Escopo

vim todo além pele fazer companhia, vim sem tato para entender melhor o sinuoso de sua ordem, vim cheio de perguntas a serem feitas pelos outros curiosos que temeram sair de lá, pergunta deles que não sei aquém responder, eram tantos somados, apertados em tão pouca metáfora. da ordem, explano: sei pedir, por meio de nomes, um jeito, um certo tracejo a ser encoberto quando cessa a obra. motivo da vinda? o mesmo que me propus ao ir. um tracejo, um jeito certo por meio de nomes. mas canso chegado. tanto aperto por metáforas, tão percorrido esse chão metonímico. não me cabe muito além de reter a respiração - quem sabe no desespero o tato se ergue - e soprar meu nome nos olhos do verbo: advim, advim, ai de mim, sou advérbio.

13 de setembro de 2012

(nunca quis ir ao xou da xuxa. queria pequeno: ter a televisão no tempo certo me bastava enquanto era seduzido pela rainha em justa roupa, justa conduta?, lindíssima, aquele azul do olho que se dizia inocente, enquanto as pernas permaneciam desnudadas. minha xuxa. na minha televisão. não fui baixinho, nunca tive o tamanho próximo daqueles outros que ficavam lá, crianças, todos contidos na platéia, olhando – mas olhavam de perto. mas xuxa, caridosa, me aceitava mesmo assim, estava eu lá no "todos" do "nosso mundinho", quando "todos" era só "eu e xuxa". televisão alguma iria conseguir reproduzir minha imaginação: era amado. escutava meu nome saindo de sua boca, que hálito, palavra: vem, vamos dar um passeio na minha nave, senta no meu colo, vou contar todas as histórias no seu ouvido, segredinho nosso, vem ser feliz comigo, vem. azar ou sorte, nunca fui chamado. tristeza, mas tambem milagre.)

19 de agosto de 2012

não sei se já ouvi essa música em algum lugar, tive a estranheza de que já havia passado por um momento em que eu a escutei, uma familiaridade que não sei se vem dos meus ouvidos ou dos seus, a voz desse homem é tão bonita, tão triste, como se rezasse cada palavra cantada em uma salvação de quem ouvisse, será que ele mesmo se ouvia, é uma lembrança sem imagens, só sensação, senti cheiro de vento, vi paisagem, gosto de sopa, dedo encerado de tanto percorrer pelos seus ouvidos, língua minha não mente, só treme, mas que música, como a ouvi para ter me percebido assim, tão próximo ao que eu poderia chamar de conhecido e mesmo assim, mesmo assim não tive tato, mão minha mente sim, mão mágica, você bem sabe  seus ouvidos, meus dedos são prova, e no final não faz diferença, minha língua treme na sua, assim conversamos, assim conservamos não sei qual assunto, que música é essa, assunto que sempre se volta aos nossos corpos, prossigo, corpo é uma palavra sutil, que cria espaço pra acontecimento, que sorriso bonito, deixa de silêncio, não sei ler o que é para ser lido, pra quê voz quando se tem cama, minha língua treme na sua, minha mão treme na sua, mas assim conservamos o assunto, delícia de música, parece que já a ouvi em algum lugar, você conhece esse homem da voz triste, ele houve?, que tragédia após cada palavra, que delicadeza de sorriso, essa luz não deixa a situação mais sagrada, você vê milagre em qualquer movimento e acha que é luz, ambiente, já pensou se faço circo e solto fogo pela boca, língua minha tremeria sozinha, feliz eu e fogo, você só assistindo, que vida de merda ser fundo, queria um chá para acompanhar esta música, pode deixar o pires, pires é pra quem precisa de chão, sempre tive idéias, não preciso, que absurdo, essa liberdade toda para me defender de não sei o quê, o negócio do pires é a felicidade, só é feliz quem é raso, que merda, já ouviu essa música, é tão mistério, antiga que só, mas parece que, por ouvirmos agora, é familiar, é de dentro só que sem amarras, sensualidade pobre de batom vermelho, mas me diz, o que vai ser da sua língua, a minha sossega fácil, acha outra, mas o que vai ser da sua vida naquele corpo sem imagens, só vento, paisagem, gosto, quero a confirmação dos meus agouros, já não repeti, que música, que voz, que homem, nunca ouviu essa música, não gostou, então faz assim, fique lá com as suas familiaridades, as músicas que você conhece, fique lá com elas e, pelo corpo que tenho, prossigo, pelo espaço que tenho, prossigo, digo que acho de uma pobreza enorme reduzir seu amor ao quatro do los hermanos.

13 de agosto de 2012

História da humanidade

O novo povo povoa o ovo.
O povo ovo povoa o novo.
O novo ovo povoa o povo.

2 de agosto de 2012

Ocorreu-me ao ouvir Elis & Tom

pra quê dias claros quando a claridade se ergue espontaneamente por meio da alegria repetida da janela?, pra quê solidão quando o solo é o grilhão mais firme do eter.n.izado azul acima?, pra quê amor quando o que se prolonga é a promessa de vida no coração?, pra quê espera quando se sabe de cor o movimento dos ponteiros certos sobre o relógio?, pra quê sorriso quando o riso é só? pra quê entardecer quando a duração não faz mesura ao tempo?

silenciados estávamos e permanecemos até que ouvi o desespero por pedra no momento com a fala mais ambígua, o corpo à disposição dos prazeres criado não soube o borrão fronteiriço com o obscuro: cedeu. quebrado o encanto, o distante de cada eu compartilhado em um nós, acordamos em ficar o dito e o redito por não dito.

vim fêmea, uterina, toda em flor, cheia de pressa para ser presa. e depois predar. toda enfeitada de brinquinhos, sorrisinhos para o caminho mais fácil, toda amor que chegou para dar o que ninguém deu pra você. no escuro, fiz-me a mesma raiz nutridoura que se assemelha tanto aos seus pêlos. fiz-me caule, suporte não sei do quê, se de minhas bobagens, se de suas esperanças - que lenhei na primeira oportunidade com um não sou dessas, meu amor -, mas caule fui para provar da dureza em transportar o alimento, fiz-me mãe assim, como quem brinca de árvore. belíssima. fiz-me fruto da própria casa, abri as portas, mordi os lábios e disse que venha, meu amor, não sou dessas mas posso ser por amor, meu amor, posso ser fruto, portar sementes, meu amor, posso ser raiz, tronco, fruto, flor aberta, meu amor, mas me dê a água.

cri, por algum olhar sedento seu, que era a natureza toda incorporada, sem cair nos desvios de pensar que era só produto fácil, mais um menos um, tanto faz, por tanto me fiz. errei. cri, por algum cheiro, que neste corpo só andariam águas minhas, que teria um nome e seria também o meu, um só sendo dois, caída nos desvios de pensar que era única, belíssima, amada, maculada pelo dedo perfeito que se afundou com tanta pressa pelas portas que abri. pura, cri em uma ilusão que é só desilusão, toda falante de uma língua da qual não entendia bem mas que fingi por você, se imagem ou idéia não sei.

então tive a claridade: um sonhador tem que acordar. abri os olhos com força, mas que adianta olhos abertos e os outros sentidos fechados? vexados? que amor absurdo me sustinha toda elevada, sem amparo algum além de ter a certeza de que seria socorrida na próxima queda?, porta adormecida ou não, o sorriso na boca com língua dura estaria ali aberto, a esperar não pela certeza, mas pela disposição em servir-se da minha fruta avermelhada, servindo-me de chão.

mas como amar sem o quê nem a quem, amar o amor sem recorrer ao corpo, à língua, ao nome bonito que dei ao que se fecha em amor? como amar sem fazer feliz a quem se ama? quando os corpos pendiam após respirar juntamente na profunda jornada do prazer, que perturbação de pensamento me mantinha toda acesa, querendo prosseguir, cansada, destituída da força para conduzir ao certo (que certo é este que tanto busco? tão certeira minha crença que não há acerto, abrindo o absoluto para me ver relativa nas vésperas de não acontecer nada). fui sozinha ser raiz, caule, fruto - flor já era desde que nascida -, atingi o que você julgava ser felicidade, que sempre chamei de ignorância, fui feliz nos seus modos, ignorante nos meus, disse que amava. mas como amar sem me sentir coisa?

pus pressa na respiração, queria vida, e tuas mãos foram minhas com calma, tocaste a fruta agora livre, agora maculadíssima, bela puta que sou me fizeste. feliz. translúcida. aguada. foste tu que riscou o caminho no meu chão arenoso com teu traço? que contato com o obscuro: lá me era tu, sendo-nos aqui.

que janela aberta era passagem de luz já sabia eu desde mocinha. que esta mesma luz me atravessaria com a mesma calma da mão sua já sabia eu desde mocinha. que trago o peito tão marcado pela imaginação em ser preenchida pelo amado meu já sabia eu. mas, ai, que triste é a experiência com a realidade: a dor de ter a fruta mordida é tão próxima do prazer que me elimina, tão adornada de minhas vaidosas limitações - lembra, não sou dessas, meu amor -, tão atravessada e submissa ao sexo amado.

com pesar novo, desfaço-me agora do velho frente ao recente: veio-me outro homem. chegou, sorriu, venceu, depois chorou. manso, sem de qualquer pretensão, chegou com os dentes todos encerrados na boca, sorriu com os olhos - já viu isto, sorrir com os olhos? -, não resisti: dei-me por entregue, vencida a qualquer sedução que me retorne à experiência de ser preenchida, atravessada, suja, puta mais casta não há igual, dou-lhe permissão de se ofender pela minha liberdade. mas o choro deste novo macho é compromisso maior: a água que vi dele caindo não era minha. e só assim poderei ser nós com este novo meu.

ó, meu bem amado, novíssimo, tão superior por si que não preciso de entronizá-lo. posses poucas, concordo com sua crítica antiga, mas é posse renovada, sexo diferente do sexo seu, preenchimento diferente do preenchimento seu, língua diferente da língua sua, apesar da mesma textura.

e agora rancor seu me atinge por vias que nunca pensei vislumbar. que branquidão forçada no horizonte me insiste em rememorar o antigo amor eterno da minha vida, o infinito parado a se aproximar, fazendo-me acompanhar a cor do mar. mas já depois de tanta história molhada, de tanto sal que me veio pela sua boca com palavras mal medidas (quão doce me fazia para recebê-las), lanço-lhe a pequena maldição para me proteger: no encontro do rio com o mar, qual o tempero da água?

espero que você perpetue sua felicidade ignorante em outro colo, em outro útero quente, frutas tesas existem aos montes pelos pomares do mundo. e que, de repente, olhe para trás e veja o resto agora carcomido que você pousou ao perceber que não seguiria minha agudeza acendida de quem há muito respirou só. tenho o perdão guardado para quando sobrepor sua hombridade em se curvar a uma mulher.

não se ofenda só porque um amor tão puro carregou meu pensamento. existem caminhos diversos em que você poderá se enveredar para dar cabo ao seu tormento. não se ofenda pelo sofrimento que o levará a transpôr suas rotas por caminhos mais comuns, compartilhados por toda gente. o que sente agora não o torna único; abra mão - assim como me abriu.

quando aberto, verá a si vivendo dias claros, em frente a uma janela, amando não se sabe qual sol, preso a uma liberdade que o mantém abaixo do azul, sorrindo como quem sabe as horas. e então, espero que lhe surja a única pergunta que nunca fiz: de que serve a tarde?

30 de julho de 2012

Felicidade

do inconsciente: ler.
da transferência: ler junto.
da pulsão: fazer ler.
da repetição: traduzir.
do sexo: re-citar.
do consciente: ler só o que é para ser lido.
do id: ler com a língua mais arcaica.
do eu: ler pau-sa-da-men-te para prender a forma.
do super-eu: ler dentro da língua normal.
do instinto: ler e entender.
da libido: ler e subetender.
do eu ideal: ler a língua normal.
do ideal do eu: ler em outra língua.
do complexo de édipo: ser gramática.
do incesto: ser sintaxe.
do pai: ser morfema.
da mãe: ser fonema.
da criança: aprender a ler morfossintaticamente.
da histeria: ler o mistério estéril e não saber (ins-/es-/des-)crever mesmo assim.
do neurose obsessiva: ler tudo o que é legível sem situar o que é lido em si.
do psicose: tentar ler a língua sem códigos e conseguir ora sim, ora não.
do perversão: ler os grafos primordiais para poder reproduzi-los em uma língua amorfa.
do chiste: ler o que está escrito.
do ato falho: ler o que não está escrito.
do sonho: ser estilística.
do sujeito: ler sem ser objeto.
do objeto: ser lido sem ser sujeito.
do outro: ler sendo sujeito e objeto.
do Outro: ler lá.
da demanda: saber ler.
do desejo: ler e saber que lê.
do sintoma: ler para saber que lê.
do sinthoma: ler sem saber que lê.
da angústia: não saber o que ler.
do gozo: não saber o que lê.
do real: ler o pronome.
do imaginário: ler o nome.
do simbólico:  ler o verbo.
do significante: gaguejar ao ler.
da metonímia: ler aquém.
da metáfora: ler além.
do nome-do-pai: conseguir ler.
da foraclusão: não conseguir ler.
do espelho: formar palíndromo.
do falo: ser palavra.
da Lei: ser letra.

em tempo:
do analista: ensinar a redondeza das palavras.
do analisante: aprender a escrever.

27 de julho de 2012

(das poucas tristezas do vegetarianismo, a maior é o pouco caso frente aos frangos e aos peixes. sempre recebo um rosto de espanto contido quando digo que sou vegetariano. rosto maior quando respondo que não "come nem frango? nem frango. nem peixe? nem peixe". que pobreza de pensamento incita a considerá-los tão menos quanto o boi? por que tão descartados assim da categoria carne? seria a falta de sangue vermelho para deixá-los menos brancos? sangue é qualidade do que é animado?)

24 de julho de 2012

Poesia de dicionário

queixume
s.m.
lamento; ai; suspiro.

(priberam.pt)

23 de julho de 2012

Não sei escrever para fora

Dona Maria, senhora de suas idades, preta das boas, viúva desde a mocidade. Gorda. Largada com três filhos, homens de dar gosto, que moravam na cidade grande para tentar uma vida fora da roça. Varria o alpendre todas as manhãs; gostava de recolher as folhinhas e as formigas amarronzadas mortas por conta do veneno batido na noite anterior. Prendadíssima. Preferia de ser chamada de Domaria, “pra não ter que dar muita volta com a língua”.
Casou virgem com um zé bom-copo qualquer que prometeu amor à mão e casa. O amor nunca veio – “veio foi o desgosto no lugar” –, mas a casa castigada pela chuva ainda se manteve. Sentiu, no começo, um apreço pelo marido. Enquanto o homem não estava trabalhando na roça, fazendo coisas de macho – tocando os bichos (enquanto ela arrumava a casa), cuidando da terra (enquanto ela preparava o almoço), fazendo cerca (enquanto ela cerrava humilde as portas dos poucos cômodos da casinha) –, bebia até ver sua preta branca. E com a boca com gosto de água ardida, cuidava dos fundinhos de Domaria, "sempre tinha um bichinho no matinho para cercar"; experiência tão quente que era o mesmo que esquentar a barriga no fogão. Tão bonita se sentia quando era cuidada que se sentia árvore forquilhada por semanas.
Um dia, o marido morreu. Virou-se para o lado quando descansava depois de comer o arroz-com-feijão, disse “Vou-me embora, preta. Não volto, mas você dá conta” e fechou os olhos. O veneno das formigas. Depois disso, só rancor. “Me largou com a barriga cheio de menino, sozinha, sem homem e dinheiro para dividir o gás. Nem deu tchau direito”. E punha a mão no peito gordo, sentindo a falta do homem que jurava amor com a língua mais doce, a cabeça mais alta, o riso mais frouxo.
O dinheiro do sustento chegava por meio de um vizinho manco, sempre meio assustado, sempre na pressa. Dava porque estava “pagando aquela dívida com o seu falecido marido”. Entregava o dinheiro, olhava no relógio de correias de couro velho e saía com o passo apertado, sempre despedindo até-mais-ver-Domaria. Ficava encabulada a preta, mãozinha gorda no queixo. O homem tinha lá os seus mistérios, mas nunca faltou com o pão, nem depois de ter partido.
Na gravidez, parecia que carregava pedras na barriga, que “de tão pesada, vai parir criança já adulta”.Os filhos, quando nasceram, foram todos de uma vez, “benção do Senhor”. Quando viu os três pretinhos, todos iguais, pensou que era praga do velho por não ter derramado a caninha que ele tanto gostava no caixão afundado na terra. “A vontade dos mortos é a desgraça dos vivos”.
Criou os filhos como quem cria animais domésticos: dava de comer, dava de beber, dava onde deitar. E assim foi até os três, um dia, sumirem. Domaria, aflita, comentou com o vizinho manco sobre as suas crias. “Foram pra Cidade, Domaria. Cansaram da roça e foram atrás de emprego e moça bonita”. Então é assim?Chegada a hora de ir, vão-se embora, sem dar tchau, igual ao pai? Sem dizer que ama a mãezinha? Que vão morrer de saudades e que, quando estiverem ricos, vão voltar para consertar a pia da cozinha, a caixa d'água, o encanamento podre do banheiro? Então é assim?
Chorou dias seguidos, até enrugar o canto dos olhos e da boca. De tanto desamor, criou casca dura de planta triste. Só a espera para fazer companhia.
Para o morto, acendia uma vela de sete dias no cantinho da sala, o copinho americano ao lado, cheio da água que ele bebia com tanto gosto. Para os filhos, dedicava mais amor: limpava a casa toda com bucha amarela – guardava as esponjas velhas em um saco plástico transparente, “para não perder a conta” –, esfregando parede, chão, louça, mobília. E assim, quando cansava de “arrumar a casinha” para o retorno dos filhos, cortava as buchas em cubinhos e fazia almofadas com restos de panos velhos para enfeitar o sofá vazio tão preenchido com a ausência dos filhos em seus respectivos assentos.

17 de julho de 2012

como se o dia fosse lido, o texto olhou.
recolheu, copiosamente, palavras que por ventura vinham ao corpo; autonomia alguma o re-tira do lugar do nome. autonome joão-bola, fechando-se em torno do nome contornado pelo verbo.
em ato girante e insíginia, disposto à passagem, de nome furado se fez o texto.
e, furado, anoiteceu: para se escurecer, o texto abriu aspas "e gozou pelo enquanto, até repetir o dia, que foi olhado como se fosse lido". na luz, abriu-se o texto para a falta, sempre a repetir os mesmos nomes gastos que o verbo assi.g.nou para se fazer fala, habitando, por instância, o lado preenchido do descurso.
do infinito ao adiante, da dianteira à origem, o texto perdeu os traços suspensos e pôde gozar do Outro lado.

16 de julho de 2012

o relógio age sem pressa. alongam-se os ponteiros respirantes. o braço percorrido se estica nas casas que margeiam a rua escura das horas findas. pousa o dedo no pó do tempo a hora: faz-se milagre entre o silêncio sem cor e a noite da fala aquarelada.
estando a luz ausente, o pensamento obliquado pela memória, o corpo quente que não cede ao sono, resta desejar que não haja barulho para atormentar a vigília do que vigia (aquil)o que dorme.