Dona Maria, senhora de suas idades, preta
das boas, viúva desde a mocidade. Gorda. Largada com três filhos, homens de dar gosto, que moravam na cidade grande para tentar uma vida fora da roça.
Varria o alpendre todas as manhãs; gostava de recolher as folhinhas e as
formigas amarronzadas mortas por conta do veneno batido na noite anterior. Prendadíssima.
Preferia de ser chamada de Domaria, “pra não ter que dar muita volta com a
língua”.
Casou virgem com um zé bom-copo qualquer que
prometeu amor à mão e casa. O amor nunca veio – “veio foi o desgosto no lugar”
–, mas a casa castigada pela chuva ainda se manteve. Sentiu, no começo, um
apreço pelo marido. Enquanto o homem não estava trabalhando na roça, fazendo
coisas de macho – tocando os bichos (enquanto ela arrumava a casa), cuidando da
terra (enquanto ela preparava o almoço), fazendo cerca (enquanto ela cerrava
humilde as portas dos poucos cômodos da casinha) –, bebia até ver sua preta
branca. E com a boca com gosto de água ardida, cuidava dos fundinhos de Domaria, "sempre tinha um bichinho no matinho para cercar"; experiência tão quente que era o mesmo que esquentar a barriga no fogão. Tão bonita se sentia quando era cuidada que se sentia árvore forquilhada por semanas.
Um dia, o marido morreu. Virou-se para o lado quando descansava depois de comer
o arroz-com-feijão, disse “Vou-me embora, preta. Não volto, mas você dá conta”
e fechou os olhos. O veneno das formigas. Depois disso, só rancor. “Me largou
com a barriga cheio de menino, sozinha, sem homem e dinheiro para dividir o gás.
Nem deu tchau direito”. E punha a mão no peito gordo, sentindo a falta do homem
que jurava amor com a língua mais doce, a cabeça mais alta, o riso mais frouxo.
O dinheiro do sustento chegava por meio de um vizinho manco, sempre meio assustado, sempre na pressa. Dava porque estava “pagando aquela dívida com o seu
falecido marido”. Entregava o dinheiro, olhava no relógio de correias de couro
velho e saía com o passo apertado, sempre despedindo até-mais-ver-Domaria. Ficava encabulada a preta, mãozinha gorda no queixo. O homem tinha lá os seus mistérios,
mas nunca faltou com o pão, nem depois de ter partido.
Na gravidez, parecia que carregava pedras na
barriga, que “de tão pesada, vai parir criança já adulta”.Os filhos,
quando nasceram, foram todos de uma vez, “benção do Senhor”. Quando viu os
três pretinhos, todos iguais, pensou que era praga do velho por não ter
derramado a caninha que ele tanto gostava no caixão afundado na terra. “A vontade
dos mortos é a desgraça dos vivos”.
Criou os filhos como quem cria animais domésticos: dava de comer, dava de
beber, dava onde deitar. E assim foi até os três, um dia, sumirem. Domaria, aflita, comentou com o vizinho manco sobre as suas crias. “Foram pra Cidade, Domaria. Cansaram da roça e foram atrás de emprego e moça bonita”. Então
é assim?Chegada a hora de ir, vão-se embora, sem dar tchau, igual ao pai? Sem
dizer que ama a mãezinha? Que vão morrer
de saudades e que, quando estiverem ricos, vão voltar para consertar a pia da
cozinha, a caixa d'água, o encanamento podre do banheiro? Então é assim?
Chorou dias seguidos, até enrugar o canto dos olhos e da boca. De tanto desamor, criou casca dura de planta triste. Só a espera para fazer companhia.
Para o morto, acendia uma vela de sete dias no cantinho da sala, o
copinho americano ao lado, cheio da água que ele bebia com tanto gosto. Para
os filhos, dedicava mais amor: limpava a casa toda com bucha amarela – guardava as
esponjas velhas em um saco plástico transparente, “para não perder a conta”
–, esfregando parede, chão, louça, mobília. E assim, quando cansava de
“arrumar a casinha” para o retorno dos filhos, cortava as buchas em cubinhos e
fazia almofadas com restos de panos velhos para enfeitar o sofá vazio tão preenchido com a ausência
dos filhos em seus respectivos assentos.