23 de julho de 2012

Não sei escrever para fora

Dona Maria, senhora de suas idades, preta das boas, viúva desde a mocidade. Gorda. Largada com três filhos, homens de dar gosto, que moravam na cidade grande para tentar uma vida fora da roça. Varria o alpendre todas as manhãs; gostava de recolher as folhinhas e as formigas amarronzadas mortas por conta do veneno batido na noite anterior. Prendadíssima. Preferia de ser chamada de Domaria, “pra não ter que dar muita volta com a língua”.
Casou virgem com um zé bom-copo qualquer que prometeu amor à mão e casa. O amor nunca veio – “veio foi o desgosto no lugar” –, mas a casa castigada pela chuva ainda se manteve. Sentiu, no começo, um apreço pelo marido. Enquanto o homem não estava trabalhando na roça, fazendo coisas de macho – tocando os bichos (enquanto ela arrumava a casa), cuidando da terra (enquanto ela preparava o almoço), fazendo cerca (enquanto ela cerrava humilde as portas dos poucos cômodos da casinha) –, bebia até ver sua preta branca. E com a boca com gosto de água ardida, cuidava dos fundinhos de Domaria, "sempre tinha um bichinho no matinho para cercar"; experiência tão quente que era o mesmo que esquentar a barriga no fogão. Tão bonita se sentia quando era cuidada que se sentia árvore forquilhada por semanas.
Um dia, o marido morreu. Virou-se para o lado quando descansava depois de comer o arroz-com-feijão, disse “Vou-me embora, preta. Não volto, mas você dá conta” e fechou os olhos. O veneno das formigas. Depois disso, só rancor. “Me largou com a barriga cheio de menino, sozinha, sem homem e dinheiro para dividir o gás. Nem deu tchau direito”. E punha a mão no peito gordo, sentindo a falta do homem que jurava amor com a língua mais doce, a cabeça mais alta, o riso mais frouxo.
O dinheiro do sustento chegava por meio de um vizinho manco, sempre meio assustado, sempre na pressa. Dava porque estava “pagando aquela dívida com o seu falecido marido”. Entregava o dinheiro, olhava no relógio de correias de couro velho e saía com o passo apertado, sempre despedindo até-mais-ver-Domaria. Ficava encabulada a preta, mãozinha gorda no queixo. O homem tinha lá os seus mistérios, mas nunca faltou com o pão, nem depois de ter partido.
Na gravidez, parecia que carregava pedras na barriga, que “de tão pesada, vai parir criança já adulta”.Os filhos, quando nasceram, foram todos de uma vez, “benção do Senhor”. Quando viu os três pretinhos, todos iguais, pensou que era praga do velho por não ter derramado a caninha que ele tanto gostava no caixão afundado na terra. “A vontade dos mortos é a desgraça dos vivos”.
Criou os filhos como quem cria animais domésticos: dava de comer, dava de beber, dava onde deitar. E assim foi até os três, um dia, sumirem. Domaria, aflita, comentou com o vizinho manco sobre as suas crias. “Foram pra Cidade, Domaria. Cansaram da roça e foram atrás de emprego e moça bonita”. Então é assim?Chegada a hora de ir, vão-se embora, sem dar tchau, igual ao pai? Sem dizer que ama a mãezinha? Que vão morrer de saudades e que, quando estiverem ricos, vão voltar para consertar a pia da cozinha, a caixa d'água, o encanamento podre do banheiro? Então é assim?
Chorou dias seguidos, até enrugar o canto dos olhos e da boca. De tanto desamor, criou casca dura de planta triste. Só a espera para fazer companhia.
Para o morto, acendia uma vela de sete dias no cantinho da sala, o copinho americano ao lado, cheio da água que ele bebia com tanto gosto. Para os filhos, dedicava mais amor: limpava a casa toda com bucha amarela – guardava as esponjas velhas em um saco plástico transparente, “para não perder a conta” –, esfregando parede, chão, louça, mobília. E assim, quando cansava de “arrumar a casinha” para o retorno dos filhos, cortava as buchas em cubinhos e fazia almofadas com restos de panos velhos para enfeitar o sofá vazio tão preenchido com a ausência dos filhos em seus respectivos assentos.