29 de março de 2024

"[...]
Se esse é o seu tempo, quando havia el[e] de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
[...]"
(Alberto Caeiro, "Quando vier a Primavera")


mesmo que não venha já ou jamais
todas as horas rentes ao corpo
não resumem as possibilidades
do que foi ou será ou poderia ser
fazem mais com que desejos nasçam
em exercícios cesarianos de espera

da palavra sempre cai a verdade
ousar suster o espanto diante de si
revela ainda que dolorosamente
o segredo – à mostra se torna sorte
o mundo posto ao gosto do que é real e certo
mesmo que ele não venha já ou jamais

24 de março de 2024

à noite, toda languidez e vapores, desce do santuário como montada em fumaças e fogos de quermesse: cedendo da preguiça de sua santidade, porta-se altiva, translúcida, serena: já cansada do ritornelo mendicante e fervoroso dos fiéis, limpa calmamente os pés fumegantes no paninho da soleira da igreja, ajeita bem asseado o halo em torno de si para os desígnios de ser luz e luzir. ao pai um pai-nosso, à mãe uma ave-maria; ao filho, por maior proximidade na lida diária dos encaminhamentos espirituais, pede candura e fogo, como o saído dos candeeiros que lhe esquentam os pés no altar. procura ao redor pela antiquíssima bandeja que compõe sua aparição dramatúrgica, fixada em sua própria iconografia; um cachorro vadio, frequentador assíduo das missas e velho conhecido, alcança-a. descansa as mãos sobre o próprio rosto, dedos espalmados sobre a testa, um discreto estremecimento seguido de um lampejo seguido de um silêncio. solenemente e com discrição, depõe os olhos sobre o tabuleiro de prata e vai, missionária, às rondas.

afastada da calma, inflama-se pelo bordão das orações que denunciam a destruição dos bons lares cristãos e perambula atrás dos pecados e dos pecadores, incendiada e em polvorosa mais ainda pelo que testemunha arder à porta de sua casa: terríveis visões: uns pares e ímpares que, desviando-se do rito virtuoso do matrimônio e da lei imaculada dos sexos, vão-se enroscar não só antes da bênção divina, mas contrários à tábua que versa para cada homem, uma mulher, para cada mulher, um homem. contra o gênesis e os cânticos dos cânticos – cânones prescritores do amor –, contra os encaixes anatômicos do corpo humano – cuja natureza é barro moldado e animado pelas mãos e pelo sopro do grande oleiro –, contra a vontade de deus – que assina tudo que há de belo e bom –, jaz logo ali, onde o rebanho limpa os pés, o mal em flor! longe do olhar da catolicíssima sociedade patrocinense e à vista de sua santidade, homens veem homens, mulheres veem mulheres, às duplas ou mais – horror! libertinagem! – em suas escadas! blasfêmia, heresia, profanação! pecado-mor desenhado por vícios e escuridões ao rés de seu lume! pobrezinhas das senhoras que se emporcalham ajoelhadas, rentes ao rastro do fel dos banidos de sodoma e dos filhos de madalena, no 13 de dezembro... a elas, velas a mais como holofotes de limpeza e salvação; a eles, centelhas cegantes, clarões tempestuosos, chamas impiedosas, santa labareda, verdugos mais verdugos!

ó, santa, tende misericórdia! já digo que, chegada a minha vez de ir às escadarias, rezei e pedi licença antes de me ajoelhar para conhecer a parte do corpo de cristo que não é consagrada na hóstia. também como vós, adoro a um só deus verdadeiro e a ele prometi amor e fidelidade: deus vivo, rígido, encarnadíssimo! e intumescido, úmido, branco, viscoso... protetora da visão, cobri vossos olhos, tampai vossa argêntea tábua com aquele tão sincero paninho! eis a verdadeira natureza humana: este trapo a vossos pés! perdoai e rogai por nós! ó, santa, vós que preferistes deixar que os vossos olhos fossem vazados e arrancados em vez de negar a fé e conspurcar vossa alma, desconheceis as delícias do corpo em sua esplendorosa sujeira e miséria? a escuta das volúpias não vos ilumina o pensamento? dos que clamam por perdão, o constrangimento mais ardente vem da alegria prazenteira da união, santa, sejam homens e mulheres que se enamoram de seus semelhantes ou não! sóis nascem a cada súplica e prece na grande noite que é a vida, não é direito vossa luz eclipsar as naturezas à risca da cartilha sagrada, cheia de proibições prévias e perdões programáticos; são e somos filhos da mesma olaria, feitos à mesma mão paterna! clemência! deixai gozar!

deus, com um milagre extraordinário, devolveu a vós outros dois olhos sãos e perfeitos para recompensar vossas virtude e fé e vos constituiu protetora contra as doenças oculares. tamanha é a generosidade do criador, fazer reaver à criatura vosso órgão visionário, tornando-vos padroeira! reconhecei a sabedoria e o gesto da providência e apagai vosso fogo punitivo! santa, eu recorro a vós para que protejais minhas vistas dos encantos enganosos dos músculos tonificados, protejais minhas visitas noturnas à vossa casa e protejais a mim dos riscos das doenças venéreas, pois o látex não traz resguardo e paz plenos. ó, santa, conservai a luz dos meus olhos para que eu possa ver as belezas da criação, barro vivo da semelhada imagem viril e máscula de vosso pai... conservai também os olhos de minha alma, a fé, pela qual posso conhecer o meu deus sexuado, compreender seus ensinamentos da lei e do desejo, desembaraçar-me de seu amor ambíguo e nunca errar o caminho que me conduzirá onde vós, santa, vos encontrais: à soleira, em companhia dos fiéis e dos anjos e do pai e do filho e do espírito santo.

conservai minha fé, santa luzia! santa luzia, rogai por nós, desgarrados, enroscados, deitados. amém!

3 de janeiro de 2024

2 H + 1

um não serve, é solitário
dois não bastam, são amigos

novidade aristotélica?
aritmética lacaniana?

roda dentada do moinho...
quem seria o amigado?

danação, salvação:
o terceiro não sou eu