24 de março de 2024

à noite, toda languidez e vapores, desce do santuário como montada em fumaças e fogos de quermesse: cedendo da preguiça de sua santidade, porta-se altiva, translúcida, serena: já cansada do ritornelo mendicante e fervoroso dos fiéis, limpa calmamente os pés fumegantes no paninho da soleira da igreja, ajeita bem asseado o halo em torno de si para os desígnios de ser luz e luzir. ao pai um pai-nosso, à mãe uma ave-maria; ao filho, por maior proximidade na lida diária dos encaminhamentos espirituais, pede candura e fogo, como o saído dos candeeiros que lhe esquentam os pés no altar. procura ao redor pela antiquíssima bandeja que compõe sua aparição dramatúrgica, fixada em sua própria iconografia; um cachorro vadio, frequentador assíduo das missas e velho conhecido, alcança-a. descansa as mãos sobre o próprio rosto, dedos espalmados sobre a testa, um discreto estremecimento seguido de um lampejo seguido de um silêncio. solenemente e com discrição, depõe os olhos sobre o tabuleiro de prata e vai, missionária, às rondas.

afastada da calma, inflama-se pelo bordão das orações que denunciam a destruição dos bons lares cristãos e perambula atrás dos pecados e dos pecadores, incendiada e em polvorosa mais ainda pelo que testemunha arder à porta de sua casa: terríveis visões: uns pares e ímpares que, desviando-se do rito virtuoso do matrimônio e da lei imaculada dos sexos, vão-se enroscar não só antes da bênção divina, mas contrários à tábua que versa para cada homem, uma mulher, para cada mulher, um homem. contra o gênesis e os cânticos dos cânticos – cânones prescritores do amor –, contra os encaixes anatômicos do corpo humano – cuja natureza é barro moldado e animado pelas mãos e pelo sopro do grande oleiro –, contra a vontade de deus – que assina tudo que há de belo e bom –, jaz logo ali, onde o rebanho limpa os pés, o mal em flor! longe do olhar da catolicíssima sociedade patrocinense e à vista de sua santidade, homens veem homens, mulheres veem mulheres, às duplas ou mais – horror! libertinagem! – em suas escadas! blasfêmia, heresia, profanação! pecado-mor desenhado por vícios e escuridões ao rés de seu lume! pobrezinhas das senhoras que se emporcalham ajoelhadas, rentes ao rastro do fel dos banidos de sodoma e dos filhos de madalena, no 13 de dezembro... a elas, velas a mais como holofotes de limpeza e salvação; a eles, centelhas cegantes, clarões tempestuosos, chamas impiedosas, santa labareda, verdugos mais verdugos!

ó, santa, tende misericórdia! já digo que, chegada a minha vez de ir às escadarias, rezei e pedi licença antes de me ajoelhar para conhecer a parte do corpo de cristo que não é consagrada na hóstia. também como vós, adoro a um só deus verdadeiro e a ele prometi amor e fidelidade: deus vivo, rígido, encarnadíssimo! e intumescido, úmido, branco, viscoso... protetora da visão, cobri vossos olhos, tampai vossa argêntea tábua com aquele tão sincero paninho! eis a verdadeira natureza humana: este trapo a vossos pés! perdoai e rogai por nós! ó, santa, vós que preferistes deixar que os vossos olhos fossem vazados e arrancados em vez de negar a fé e conspurcar vossa alma, desconheceis as delícias do corpo em sua esplendorosa sujeira e miséria? a escuta das volúpias não vos ilumina o pensamento? dos que clamam por perdão, o constrangimento mais ardente vem da alegria prazenteira da união, santa, sejam homens e mulheres que se enamoram de seus semelhantes ou não! sóis nascem a cada súplica e prece na grande noite que é a vida, não é direito vossa luz eclipsar as naturezas à risca da cartilha sagrada, cheia de proibições prévias e perdões programáticos; são e somos filhos da mesma olaria, feitos à mesma mão paterna! clemência! deixai gozar!

deus, com um milagre extraordinário, devolveu a vós outros dois olhos sãos e perfeitos para recompensar vossas virtude e fé e vos constituiu protetora contra as doenças oculares. tamanha é a generosidade do criador, fazer reaver à criatura vosso órgão visionário, tornando-vos padroeira! reconhecei a sabedoria e o gesto da providência e apagai vosso fogo punitivo! santa, eu recorro a vós para que protejais minhas vistas dos encantos enganosos dos músculos tonificados, protejais minhas visitas noturnas à vossa casa e protejais a mim dos riscos das doenças venéreas, pois o látex não traz resguardo e paz plenos. ó, santa, conservai a luz dos meus olhos para que eu possa ver as belezas da criação, barro vivo da semelhada imagem viril e máscula de vosso pai... conservai também os olhos de minha alma, a fé, pela qual posso conhecer o meu deus sexuado, compreender seus ensinamentos da lei e do desejo, desembaraçar-me de seu amor ambíguo e nunca errar o caminho que me conduzirá onde vós, santa, vos encontrais: à soleira, em companhia dos fiéis e dos anjos e do pai e do filho e do espírito santo.

conservai minha fé, santa luzia! santa luzia, rogai por nós, desgarrados, enroscados, deitados. amém!