1 de dezembro de 2021

retorcidos veios sob o branco
tornados roxos pelo desuso
acabados em nojos amarelos
de bases secas, delicadas
os pés podem um passo incerto
rotas as pernas que vacilam
pouco sanguíneas por
tabagismo e masculinidade
pelo ódio recreativo contra si
as feridas atraem as moscas,
os filhos – nenhuma piedade –,
que reúnem significados diante
do abismo, das necroses
de um corpo que jaz ereto
comprimindo os ossos frágeis
às cadeiras, às histórias
como um andarilho não vagante
decidido ou a esmo faz das
não memórias sua ossatura

diante de semelhada lápide
sandálias gastas de um chinelar
caseiro, arrastado, profundo
o andar vazio entre os incômodos
da casa repassada, repisada
talvez à espera de um passo
em falso, um tropeço nos tapetes
que desmonte este peso num lampejo
(visão fumegante da antiga sala:
os santos descascados, lascados
os terços sem contas, a ausência
ilustrada pelas poltronas, pelo sofá
a cristaleira e seus objetinhos
cobertos pela fina luz da nostalgia
numa mesma suspensão que volta
ao voo do filho, à hora inescapável)
e desfaça a cabeça-cemitério
em estilhaços e rezas de ternura –
conquista, loucura, divindade

26 de novembro de 2021

sóis inventados

morbidez? depois:
retângulos. cores. p(l)anos...
varais na L2.

21 de novembro de 2021

novembro chuvoso

comer, dormir. só.
as horas... misericórdia!
inventar um sol.

29 de junho de 2021

estávamos, eu e você, em uma costa plana e calma, cuja administração ficava a cargo de um clube do governo, talvez do senado federal. íamos entre o nos conhecermos e um princípio de aproximação amorosa de muito respeito e gentileza. eu observava o seu corpo eriçado e justo, ainda que não pudesse ver seu rosto com clareza, e sabia que mais cedo ou tarde ganharia acesso à pele, aos fluidos. me sentia plenamente seguro em sua companhia, como se pudesse confiar as mais obscuras banalidades à sua escuta, sem temor ou reticência, efeito da certeza de que eram recíprocos o interesse, a abertura, o desejo. calçávamos meias iguais, motivo de riso, espanto. no saguão de entrada, quando nos despíamos para ir às águas da praia, uma surpesa: você se adianta em direção ao guarda-volumes, deixa seus pertences e parte sem olhar para trás, sinalizando o meu trajeto seguinte. a recepcionista, quando me aproximo, me interpela: "qual a sua conexão?": diante do meu desconcerto, informa que o guarda-volumes também é responsável pelas redes móveis do estabelecimento, talvez à espera de minha pergunta pela senha. digo que quero apenas deixar ali minha mochila com as roupas que vestia e, trajado de banho, vou rumo à porta em sua busca. sinto que a felicidade é possível nesse ambiente azulado, solar, sabático, afastado do mundo cínico, ainda que governamental; sinto que sua presença me serve de um descanso maior, a promessa do seu corpo a me trazer novidades, iluminações. o conforto existencial de se sentir querido e inviolavelmente amparado. até que, alcançado você, parado e olhando fixamente para frente, vemos juntos como um acontecimento no horizonte o pombal monolítico, soturno, vazio: descobrimos sermos feitos dessa mesma matéria da paisagem aquosa e disforme, contingenciada pela dissolução.

21 de junho de 2021

orgulho

a violência é uma linguagem:
aprende-se desde pequeno
a guardar os trejeitos

pela norma (como cansa)
somos forçados ao luto
pelo que inevitalmente somos

é preciso acreditar (como
cansa) que não há eles e nós
para se chegar ao Humano

hastear nenhuma bandeira
é uma forma de alçar
ao mastro uma mortalha

utopia: poder existir
ser, ter um corpo
sem pedir licenças

utopia: passar da vergonha
à alegria sem incômodos
à indiferente diferença

10 de junho de 2021

brilho nenhum

há amor dentro dos muros
e os buracos se iluminam
provisoriamente:
o nome do amor tende
ao sem-nome do silêncio
morremos um a um
mais um número
menos uma história

há muros dentro do amor
e ninguém nos escapa
do constrito segredo
do outro: pagamos
circularmente com a vida
esperados jorros
de sangue não contido
dentro de mim de ti

22 de maio de 2021

ciranda

o contrário do amor
não é o ódio
é o mal

do mal
não o bem
a beleza

da beleza
não a feiura
a morte

da morte
não a vida
o desejo

(o contrário do ódio
não é o amor
é a alegria

do bem
não o mal
a verdade

da feiura
não a beleza
a cegueira

da vida
não a morte
Deus)

11 de abril de 2021

produzo nenhum poema
verso esquema algum
reduzo o gesto a nada
resta aí a coisa não escrita
devidamente acabada:
cada almejada tentativa
letra suada ou de pura sina
resulta em poema nenhum

nada do longuíssimo curso da vida
ou da infernal esperança investida
miudezas quase invisíveis não há
abstrações monumentais? quá!
paisagens? tropos? sons? vá!
criar é maçada atrás de maçada
produzo nenhum poema
inspiração: nenhuma boa sacada

produzo branco sobre branco
melhor poema jamais escrito
não há clímax tópos ou pranto
pluma ou bruma estão proscritos
título nenhum autor algum
escrever branco não enfada
ritmo e som? furada!
poesia? coisa e nada!

14 de março de 2021

comunidade

1. comuna, união, sociedade, comunhão, partilha, cortesia, troca amigável, afabilidade, condescendência

2. terra, posse, proveito, interesse, ocupação, função pública, dever público

3. comum, social, universal, local, público, geral, não específico, compartilhado, coletivo, dividido, despretensioso, gratuito, aberto, organizado, autogovernado, familiar, junto, pertecente a todos, usado por todos, de natureza e caráter públicos

4. igualado a dois ou mais, usual, não excepcional, frequente, recorrente, não distinto, massivo, ordinário, não excelente

5. ir, mudar, mover, fazer comum, partilhar, dividir, revolucionar, falar intimamente

25 de fevereiro de 2021

à mesa

já que aqui estamos
sentados (civilizados?)
ou ceamos com alegria
ou somos a refeição

13 de fevereiro de 2021

da hora incerta surge o certeiro fato:
(abóboda rubrorroxa caindo em negrume)
nas manobras da vontade incógnita
volante, de toda crença, divino?
se impõe, contra o sopro, uma aspiração
que sorve em cálculo inescapável a chama

nas lavouras do setentrional desejo, palmas acima,
(vaporosos hálitos subindo da chuva vespertina)
anuncia o pássaro distante da terra amornada de sol,
enquanto tudo, no curso do ordenamento riscado,
se resfria aos poucos e cede granulosamente ao pesar:
fogo-apagou, fogo-apagou, fogo-apagou, fogo-apagou

descansada a enxada, recolhido o chapéu, dividida a história,
o agricultor (teto fosco acendendo em pratazul)
ruma poente ao poente: a ceifadora unge seu báculo;
o povo se reúne, pelo corpo plantado; falam arados de dor,
lembram tempos que lembram alegrias. findo o dia,
restam todos (ela à espreita) sem compreensão

4 de fevereiro de 2021

hermeneuta afetado traduz the lamb de william blake

perguntando ao animal sobre seu criador, blake dá continuidade à sua investigação sobre a origem das coisas que compõem o mundo. inquirindo o símbolo da pureza e inocência, supõe tais atributos ao primeiro período do ciclo da vida humana, compondo seus versos de metro bem ritmado como quem compõe cantigas. afinal, o universo das cantigas infantis e, por extensão, as crianças são o público-alvo perfeito para o enquadre da pedagogia poético-cristã de blake. os refrões temáticos, desveladores de seu método filosófico, quando, no fim do poema, transformados em um fecho religioso que responde o questionamento inicial, decaem do empenho da razão que antes se realiza na dúvida e na meditação sobre a incerteza à então alegria da alienação às altas crenças da religião cristã. o imaginário campestre (o riacho, o campo, o pastoreio, o cordeiro, a brancura da lã, o balido), o deus que nomeia a si como um eu semelhante encarnado em uma criança ("Façamos o homem à nossa imagem, con­for­me a nossa semelhança") são emulações da felicidade extática e divina encarnada na vida penosa e humana: contra a urbanidade e a mácula ocasionada pelos vícios estão o bucolismo e a ignorância: a infância. contra o vácuo do não sentido por trás de todos os nomes está o nome superior de deus em todos os cantos designados, pela sua ternura: meninice onomástica. dada a modernidade e seus desdobramentos, há aqui um ponto de inflexão: não há, segundo a própria tese do poema, um nome próprio que não seja nome de deus. assim correspondemos todos à sua universalidade indexadora. diante da providência divina a que blake nos faz tributários, somos todos, a despeito de qualquer apreço à fixidez das identidades e às formas de ser e existir possibilitadas ao longo das épocas pela cultura, agni dei. já que nenhum signo escapa à vontade divina, resta-nos, portanto, balir, cativar o amor dessa instância superior para que não nos amaldiçoe com agruras e tragédias. resta-nos, fadados às delícias dos pecados, querer porventura a benção. cantemos!:

O cordeiro

Ó, cordeirinho, quem lhe fez?
Você conhece quem lhe fez?
Deu-lhe vida, o alimentou?
Junto às águas e sobre os campos,
Deu-lhe tecido de brancor,
Macio brilho, pura lã!
Deu-lhe tal frágil voz: balir,
Pondo o mundo inteiro a sorrir!
Ó, cordeirinho, quem lhe fez?
Você conhece quem lhe fez?

Cordeirinho, eu lhe direi,
Cordeirinho, eu lhe direi!
Pois, também chamado Cordeiro,
O seu nome chama Seu nome:
Ele é meiguinho, ele é bom,
Fez a si um bom garotinho:
Você cordeiro & eu menino
Nos chamamos todos Cordeiro!
Cordeirinho, Deus abençoe!
Cordeirinho, Deus abençoe!