19 de abril de 2020

exercício machadiano

oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
vale nutrir à pena a seiva farta
de tinta, terra preta mais textura?
cuidar raiz, texto, com verbo, ar?

quais temas em botão hão de dar voo
aos ideais de candura e pureza?
a infância, cristo, os deuses, os louros,
as estrelas, o azul, a beleza?

dias gastos de frente à folha em luta,
flor, céu... pena! oh! é tempo ser fruta!
de quais pétalas, versos, está prenhe?

que as guerras tão germinadas aprendam:
não há livro nem obra que lhes valha:
"perde-se a vida, ganha-se a batalha"!

5 de abril de 2020

Das considerações sobre o poeta dormindo, de João Cabral de Melo Neto

contra a realidade
não há método ou tese
e os espíritos
com ou sem ciência
vagam dormindo
guiados ao mínimo esplendor
pelo real insone


I
1.
o sono é o que
o sonho não é

o sono não sonha
poemas, antes
os condiciona

o sonho não acorda
poemas, antes
os conforma


2.
afastar-se dos ruídos
afofar os travesseiros
embutir-se nos lençóis
dosar da noite o calor
arranjar-se no colchão
esperar pelo salto
a despeito dos tratados de versificação
deixar de ser poeta
e ir à massa dos poemas


II
1.
o sonho é notícia vulgar:
interpretado ou traído
conforme o simbolismo
esperançoso ou agourento
(perde assim seu peso
de enigma ou tempo)

o sonho é obra particular:
se recria, a cada afeto contado,
como um poema incessante
que se escreve de olhos fechados
(a serviço da memória que
se adianta, apesar da história)


2.
para criar um sonho
letras e ideias
para escrever poemas
cobertor e travesseiro


3.
às vezes há pesadelo e
o sonho perturba o sono
às vezes há gozo e
acordamos eriçados, remelentos

as interpretações do sonho
estão nos jornais nas loterias
os remédios para o sono
nas farmácias nos livros


4.
se o sono é trampolim
o sonho é piscina
o exercício do corpo
imprime a realidade
dormindo nos dividimos
entre águas corridas
e tremores involuntários
ressonamos e agitamos
braços e pernas
como nas aulas de natação


III
1.
reiteradamente imita
o sono a morte
desfaz-se das palavras
dos souvenirs
dele, resta
a ausência
dela, a mudez


2.
o sono é corpo adormecido
o sonho é alma acordada
à simulação da eternidade
ambos se distraem, confundem
enquanto estamos deitados


3.
o sonho é uma defesa
do sono:
à ação do sono
não há ação contrária:
a vigília é um estado
onírico por excelência


4.
corre o rio da madrugada
ditando um poema que se escreve
às avessas no homem que dorme
se afoga ele em outro tempo
bebendo o sal do sonho
ensopando com febre os lençóis
contra nenhuma resistência

se se acorda vem o poema
à boca com sede dos nados
sorvidos os versos e já escritos:
junto à calmaria sem hora
despertado o corpo ainda rente
ao sono (o copo d'água logo ali)
o homem comum se torna poeta


5.
este chão movediço cercado de mato
as horas ladrilhadas no quintal
o ruído da chuva oblíqua ou seria outro som?
o corpo cimentado à cama ou à porta de todas as casas
em um terreno não cartografado mas que conheço
a visão borrada e distorcida do alpendre
faz-se um mundo imaterial plasmado dos escombros
do claustro enfim arejado surge a vida profunda

as ações se superpõem vagarosas ou imediatas
estou junto a meus familiares todos sem rosto
pisamos em falso no chão firme da casa da roça
ouvimos o chuvisco da tv desligada à hora da janta
vivemos muito para chegar a esta cena imóvel
as luzes delineiam o pasto devastado à direita
meu vô acena de dentro e nos convida para o café
tão bonito luzente de chapéu e há anos soldado à mesa


6.
uma palavra é estrangulada
os lábios se torcem
os olhos tremem
o rosto serena
você dorme

adentro se move seu corpo
à paisagem interna se observa o rasto
balbucia-se a língua das coisas
as águas tornam desejos ingênuos
de seus afetos já mareados por outros desejos

os traços se perdem nos objetos
o pensamento está rente à línguagem
nenhum gesto cerca os sentidos
nesta língua feita de espasmos ou não sons
do que sempre resta logo ali você descobre ser


IV
1.
não se desce a um poema
a um sonho não se sobe
o sono predispõe à poesia
e o bom poeta dorme

(um poeta insone
apenas faz versos)


2.
cerrados os olhos
no mistério se penetra
ressoa do sono a voz
do escuro ao poeta
como num exercício
ainda sem metro ou imagem
os versos um a um
se cantam e são cantados


3.
o som do sono prolonga-se
como um mantra um tambor
a voz do homem falando
ao abismo e ressoando: /'sõ:nu/


4.
por esmero e estilo
contra as horas de conflito
diante da folha em branco:
um cochilo e o verso nasce
ainda que sonolento
com bafo e despenteado


V
1.
dorme-se para fugir
do medo do tempo
e sua passagem
a conta-gotas
ao eterno

dorme-se para revestir
o nebuloso de uma ordem
e sua fumaça envolve
um corpo que se desfaz
à tranquilidade


2.
e aqui temos uma cama box um e noventa por dois metros
king size colchão com molas ensacadas individualmente
tecnologia turn free e tratamento antiácaro
densidade confortável para a coluna e a retidão de vossos versos
vem com conjunto de travesseiros antirronco de biolátex fáceis de lavar e sempre frescos como a arcádia
(recomendado por fisioterapeutas, ortopedistas, tratadistas, filósofos, conversadores e polímatas)
a qualidade de vosso sono será incomparável à grandeza de vosso cantar
as incursões ao submundo serão todas registradas pelas espumas autoajustáveis ao peso de vosso corpo
pela vossa simulação da morte garantimos ressurreições diárias de restauração e esclarecimento
esquecei a catábase a anábase a velha forma o dossel o metro viciado o mosquiteiro o soneto proust joyce mallarmé
as cabeceiras barrocas de arabescos não portam mais os ares ocultos dos grandes feitos dos séculos passados
os estrados carunchados não sustentam mais o fardo parnasiano e penumbrista das tradições literárias
pois asseguramos que nesta cama nascerão as novas gerações dos grandes homens do futuro mundo antigo
um homero um virgílio um petrarca um dante um camões talvez mais ao gosto onírico de vosso novo reino
nesta cama surgirá o novo gênio do teatro elisabetano sem necessidade de musas mortas ou crises de noites maldormidas
deitará nela o novo romancista russo capaz de cartografar toda alma bidimensional incluindo os afetos dos unicelulares
após uma bela e folgada noite de sono vós poetastro sereis transmutado em poetíssimo poeta poetão poeta-sol
arcos liras cruzes lanças foices fogueiras astrolábios embarcações alavancas moinhos compassos telescópios pêndulos catapultas máquinas explosivas chips de silício criptomoedas nada escapará à técnica de vossa pena
de brinde um jogo de lençóis e fronhas de mil fios cardados pelas moiras proletárias já entediadas com a humanidade
sede vós o grande nome revolucionário libertário panfletário utilitário da eterna contemporaneidade
por apenas cinco mil e novecentos e noventa e nove reais à vista ou doze parcelas de quinhentos reais sem juros
aceitamos dinheiro cartão de crédito ou débito boleto bancário ou vossa dignidade


3.
manifesto contra o mundo: dormir!

para caminhar aos modos
(já que morreremos)
de viver impreterível;

para acordar do sonambulismo
(o bocejo é um ato revolucionário)
e repousar sem sonhos;

pela eterna fixação
(viva o ronco, poesia irrefutável)
do sono em versos!


4.
pessoa sobre o sono português:
o areal absorve o corpo
a espera torna à pátria
ficaram à deriva a Sorte
e o homem, cadáver adiado
sem mais crias


5.
o tempo do Verbo
é o tempo do poeta
(segundo os especialistas, oito horas por dia)


VI
1.
os sonhos ditam o rumo dos passos
os pés pisando cautelosos a noite
vamos em vão para o que se aproxima
do grão mínimo das coisas
acordamos com sede ainda da busca
ofegantes e com as pernas dormentes


2.
noites em claro lendo
o que se produz no escuro:

novos textos de outrora
letras antigas rearranjadas:

obras escritas por mãos canhotas
sílabas contadas nos dedos


3.
po.e.ma /po.ẽ.ma/ (sm):
registro impossível
em que dormir é a forma de
escrever o desejo de dormir


4.
retornando de alguma escrita estranha
registramos o que cabe à lucidez
sem tomar notas se luta contra o peso
das pálpebras que tornam a abrir leves
por um triz não ficamos suspensos
entre frases soltas e imagens cintilantes

sem ideia alguma de ressurreição
escovamos fora a morte dos dentes
penteamos os cabelos como passamos páginas
limpam-se os rastros do corpo como
varre-se uma biblioteca
damos de preencher ao estômago como
quem busca nos livros algum pertencimento
vestimos nada que lembre a mortalha
esquecendo que a contracapa da pele é terra úmida

durante o dia se distrai do encontro com a noite
cansados nada sabemos do destino ou da morte
até a hora de deitar e ir novamente aos textos
epopeias de várias vidas novelas viciosas
romances sintetizados em microcontos
escritos fugazes dados a olhos cegos


VII
1.
o sono não escreve poemas
não é um utensílio poético

não só se faz poeta por dormir
mas por se dar à noite, aberto


2.
bane os demônios
adestra as éguas
da noite cantarão
outras memórias
teus versos sem horror


3.
batem as patas agitados
nos sonhos que não são sonhos
a angústia se despeja a galope
nas noites de visão e cura
trotam forte os cavalos
rumo àquilo de mais umbilical
– estão se aproximando, ouça –
com olhos injetados e brilhando