17 de dezembro de 2013

vóz iii

sobre os prazeres da vida, dizia: não tenho mais. quando eu ainda tinha saúde, fazia o serviço de casa, não me humilhava por conta de empregada. cozinhava, lavava, limpava. não sei se gostava, mas seu avô gostava, então por mim estava bem. mas o tempo passou, os médicos proibiram as poucas alegrias que sobraram. mas o pior foi com a comida. culpa da diabetes. até aquele doutor novo, bonitinho, que me acompanhou por último (levou uma bronca por conta da pressão alta e dos possíveis ataques cardíacos), falou que eu não posso com açúcar. não como mais nada: pão, rosca, pão-de-queijo, arroz, batata, sobremesa: só de vez em quando. café, por exemplo, só com adoçante. mas não contei pra eles que aqui em casa tem uns agrados - e não são só os mineirinhos na geladeira - que são meus e dos netos. deixa eu te mostrar. sobe nessa cadeira pra você ver (apontava para a cadeira próxima à escrivaninha). em cima do armário. (eu subia e pegava um saco cheio de sonho de valsa). acho uma delícia.

16 de dezembro de 2013

respiração (nome), movimento duplo dos pulmões: inspiração, expiração.
nariz (nome), orgão sensorial, sentido do olfato; narina; cheiro, essência; usos incomuns: qualquer objeto proeminente; algo óbvio.
pulmão (nome), orgão leve, de pouco peso. diz a lenda que o caçador, ao jogar o pulmão do animal abatido em água, o via flutuar, enquanto que o coração e as vísceras, pesados, dirigiam-se ao fundo.
ar (nome), atmosfera, ambiente que circunda o céu; fluido gasoso.
vento (nome), ar em movimento; sopro ao se falar.
hale (verbo), conjurar, invocar ou evocar; levar algo ou alguém de uma certa condição à outra. em inglês medieval, tensionar cordas (flechas em arcos, rédeas em animais, nós em âncoras).
inhale (verbo), respirar para dentro; uso não-costumeiro: comer rápido.
exhale (verbo), respirar para fora; evaporar.
hale (adjetivo), livre de injúrias (uninjured), íntegro (entire), aproxima-se de saudável (healthy) e inteiro, completo (whole).
breath (nome), odor, essência, cheiro, vapor (vapour remete à fraqueza ou ao padecimento ocasionado por algum choque).
breathe (verbo), respirar; cheirar.
spirare (verbo), respirar, soprar, respirar-fundo; estar vivo, ter inspiração.
respirare (verbo), soprar (em direção contrária); respirar-de-novo (o movimento duplo? a calma depois da tormenta?), recuperar-se do medo, tomar fôlego.
aspirare (verbo), inspirar pelos pulmões; estar favorável a, assistir (auxiliar), almejar, alcançar, buscar êxito, infundir; inflar(-se) de sentimentos e emoções
expirare (verbo), expirar pelos pulmões; passagem, último-respiro: morrer.
halitus (nome), hálito (o ar), hálito (o cheiro), bafo (o ar), bafo (o ato: bafejo), sopro.
spiritus (nome), respiro, sopro gentil de vida, inspiração, disposição; orgulho, coragem, vigor, arrogância; = princípio vital (anímico?) dos homens e dos animais.

um poeminha:
seus pulmões
vejo você de costas: sobem e descem
vejo você em arquejo: sob-des
vejo você dormindo: sobem. descem.
vejo você em movimento: sobem-descem-sobem-descem
vejo você assustado: sob
vejo você em euforia: sobemsobemsobem
vejo você falando: sobem, descem,
vejo você em tristeza: sobem. descem. e descem. e descem.
vejo você soluçando: so.bem,  des.cem
vejo você feliz: sóbem.

uma prosinha:
me concentrei na linha dos seus ombros, tomei o limite do espaldar da cadeira em que você se sentava - eu estava atrás - e as oscilações da sua blusa como eixo, acompanhei seu corpo por minutos, os ruídos da sua respiração, as desordens e as tréguas que os efeitos da postura persistente traz, abandonei minhas pequenezas pela sutileza deste ato, tentei decidir minha vida com pressa (como quem se livra de mais um compromisso da agenda), não consegui, concluí desvairado: estou apaixonado por um traço.

15 de dezembro de 2013

está o estrangeiro furioso por não ver humanidade em rosto alheio que não consiga reconhecer a si mesmo seja em olhar seja em fala e se ri louco dos paraísos tristes que vê pela janela ao se encaminhar a um local de passados e margens mal delineadas de memória declarando que

pedra alguma é suficiente para se dizer eterna por mais atemporal e perene que a dança molecular faça a solidez restando à pedra ser somente pedra e pedra em seu espaço de pedricidade ou animal algum atende ao chamado que lhe é dirigido apenas por hábito mas por evocações superiores de designador que lhe serviu de batismo se existencial ou essencial cabe a quem o chame resolver ou homem algum se diz falante autorizado sem mortificar a própria história

reflexão alguma vale as certezas centrais de sua vida por mais bem construídos que sejam os argumentos não há deslocamento quando se trata de crendice articulada nas firmes premissas de que harmonia não é calmaria reconhecimento não é aceitação passagem não é transição esquiva não é recusa e júbilo ao se repetir em suas máximas até que todas sejam uma só ato não é fato ato não é fato ato não é fato

elevadores filas assentos espelhos utensílios e esquecimentos cotidianos não são alteridades dignas de serem consideradas como tal e dignas é tomado aqui como conduta moral de se elevar o outro a mesma condição de si mas que elevadores filas assentos espelhos utensílios e esquecimentos cotidianos são planos quaisquer imanências duplas captação e apreensão da mesma percepção genuína que o configura como profano e santo e portanto sexuado e descontínuo.

12 de dezembro de 2013

hermeneuta afetado em r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r de e.e.cummings

o poema. a impressão primeira é de que se trata de um poema cujo acesso é impossível. mas assim que se entende a operação acerca da criação e da estrutura factual que subjazem à obra, a prevalência lúdica do texto (que poderia muito bem ser taxado como infantil) dá espaço aos desfechos éticos que metonimicamente auxiliariam na configuração estética de escritura.

DA EXPERIÊNCIA
é tido como fato (se real ou ilusório, não cabe a discussão) que o poeta está a se concentrar (a esperar pela inspiração, alguns diriam) em seu quarto ou seu escritório, em frente à máquina datilográfica, em uma casa localizada perto de uma região de mato grosseiro no interior americano ou europeu, em um dia ou uma tarde ou uma noite quente de verão, mantém a janela aberta para se aliviar da sensação abafada que o clima veranil traz. é então surpreendido pelo animal invasor - o qual adquirirá por metáfora o mesmo valor de 'poema', metalinguagem fatídica - que se empenha estupidamente a girar e bater em torno da luz (que supõe-se também ser elétrica e se localizar próxima ao teto). tomado pelo susto de ter seu aposento antes calmo e aconchegante atormentado por um grotesco inseto em momento tão precioso, o poeta visa o teto a tentar identificar o objeto saltador que emite sons estranhos. juntando o estranhamento mais o esforço identificativo, a experiência do novo versus a cognição aplicada em vislumbre de categorias já comuns, acompanhando o voo do tal inseto que, ao pousar, num grande avanço ou salto, é nomeado: gafanhoto. um sorriso tranquilizante possivelmente se esboçou.

DA CRIAÇÃO
passada a tormenta, bonança: assim, a tal da idéia vem, ou não, e o poeta o consagra então como objeto de sua pesquisa poética. de início, vê-se, no primeiro verso, o movimento desconexo do gafanhoto (experimente ordenar as letras em "grasshopper" para consolidar a experiência estética com o saltear dos olhos em juntas as letras), seguido dos sons oriundos dos baques e pousos deste insetinho tão querido em sua oscilação (experimente pronunciar as letras separadamente para consolidar a experiência estética com o som primitivo dos fonemas exilados). tomado pela estranheza, who. dirige-se ao teto, para a luz, as we look up. busca identificar (gathering into) o inseto, PPEGORHRASS. não consegue, mas o movimento de pouso é ensaiado (a leap, as arriving), tornando o borrão sonoro (gRrEaPsPhOs) próximo às categorias de conhecimento da realidade; animal pousado, nome atribuído: grasshopper. linearmente rearranjando e matando a estrutura tipográfica do poema, tem-se: r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r: who? as we look up now gathering The PPEGORHRASS into a leaps: arriving: gRrEaPsPhOs: to rearranginly become: grasshopper.

DA ÉTICA
explicado o processo criativo e seu desfecho formal, resta a ética do poema e sua escritura. o animal, encarado aqui como totalmente outro, aparece em dois níveis: o experimental e o factual. ambos se cruzam como fenômeno, mas a alteridade é primária e pedra angular. em relação à experiência, pode-se afirmar que o poema eticamente adentra ao campo do humano por meio de uma aproximação tão costumeira do que é chamado de perspectivismo, mas aqui com uma particularidade: há, desde início, uma questão apontada no campo da criação, a saber, os recursos tipográficos para a formulação desta iniciação do animal aos subjetivismos do humano. não que não se tome o animal como sujeito (a ciência o faz muito bem), mas aqui ele comparece primordialmente como um outro em sua dessemelhança física, mas unicamente humano. enquanto fato, o animal sempre será doméstico (não há aqui confusão entre o doméstico e o domesticável; este se apresenta como dado a ver, primordialmente escópico. o doméstico, por sua vez, é concebido pela externalidade do que é intimamente próprio ao sujeito homem), independente de sua liberdade. o interesse como outro diz respeito à possibilidade de concebê-lo como não-eu, atendo-se à corporeidade distinta, mas em uma comunhão cosmológica primitiva. a experiência do estranhamento e seu subsequente nomear é uma boa ilustração do deslizamento da distinção desumana e anônima em convergência à aproximação a uma fraternidade comum, uma espécie de irmandade totalizante. tipograficamente, as letras maiúsculas, as pontuações que interrompem a frase, as rupturas morfossintáticas (nem sempre nas divisões desinenciais) das palavras, o espaço (e a forma do gafanhoto, se houve força imaginativa para ligar os desenhos das letras isoladas), a distância, em suma, os recursos formais da experiência de domesticação apontam à tese central do poema: o animal, sendo outro, preserva a estranheza das naturezas originárias e a familiaridade do laço humano.

7 de dezembro de 2013

que vem, que chega, que volta, que se faz a cada ano.

3 de dezembro de 2013

vóz ii

devido à distância próxima ou à proximidade distante, as visitas que eu lhe fazia aconteciam poucas vezes por ano; quando ela se acidentou (subindo as escadas que ligavam a cozinha à sala da televisão), fraturou um pedaço da bacia. a mobilização das filhas, o desespero momentâneo, alvoroço e horror à possibilidade de "ser agora" (quão inédita é a morte?). um acontecimento que não sei bem como de fato foi e que me foi tardiamente informado. numa das minhas visitas, sua narrativa (macerada por minha memória e criação) ao ser perguntada sobre o que aconteceu: estava indo para a sala, quando um lance, uma tontura, uma confusão (tinha labirintite "e suas vertigens") me tomou; caí. ficou tudo branco. o tempo parado. eu parada. esperando socorro. tentei gritar, mas não saía nada. muita dor. até que então eu vi que estava bem acompanhada enquanto esperava alguém aparecer e me acudir: no canto da sala, a morte. olhando bem de perto o fundo dos meus olhos. a um palmo de distância. nos cumprimentamos.

depois, um desgosto particular se arranjou: nunca mais pôde ir à cozinha da própria casa.

27 de novembro de 2013

forget-me-knot

a quem não me esquece | nós | a quem não esquece | nó | a quem esquece | não | a quem | me | aquém | tu

23 de novembro de 2013

elogio à histérica

o jeito que tens para o sal, a calma que tens para as plantas, a mestria que tens para os filhotes, o frouxo que tens para o riso, o trato que tens para a discórdia, a loucura que tens para o terceiro, o esmero que tens para os ângulos, a pressa que tens para as viagens, a euforia que tens para as notícias, a distância que tens para os amores, a oferta que tens para os amados, o alívio que tens para o retorno, a fé que tens para o sexo, o nojo que tens para o desejo, a festa que tens para a queda, a crença que tens para a Mulher, a recepção que tens para o ódio, a misericórdia que tens para a subida, o amparo que tens para o descanso, a mão que tens para o tapa, o gosto que tens para o adeus.

16 de novembro de 2013

vóz

perguntei uma vez a ela o que é um escritor e o que ele escreve. a resposta foi mais ou menos nos conformes de: o escritor é um homem sensível. não sensível a ponto de ser choroso, mas aberto às sutilezas da vida para as quais pessoas comuns não estão atentas. o escritor escreve qualquer coisa que diga sobre a vida: se ele viu uma injustiça, deve escrever. se ele viu uma coisa simples, deve escrever. se desconfiou de deus, deve escrever. se ficou triste, deve escrever. é como uma compulsão. ele deve escrever para se manter vivo, para sobreviver. como se palavra fosse ar. como se obedecesse a uma ordem, por mais angustiante que seja obedecer sempre. eu não sou escritora. eu sobrevivi para escrever, e não o contrário. meu livro é minha memória. estou pronta para a morte.

3 de novembro de 2013

devaneia o estrangeiro em bruta melancolia deitado confortavelmente em um sofá a desejar tomar chá com quem o ama ou supõe amar imaginando sobre uma possível vida que não acontecerá se não for uma escola ou uma passagem ou um desarranjo de hipóteses formulando cenas cônjuges nas quais

atos cheios de ternura brevemente resumidos em fazer almoços ou jantas felizes e sorrisinhos e suspiros ao fatiar os vegetais ao refogar e cozer os grãos e outros vegetais ao temperar as folhas e juntá-las a uns outros vegetais e ao espremer o suco das frutas ou ao destampar a embalagem plástica do suco industrial e ao questionar a categoria dos vegetais que não se sabem tomates-abóboras-bananas-chuchus-maçãs-alhos-uvas-cebolas-goiabas-vagens-laranjas-quiabos-etc-etc-etc

fins de tarde tristes de programação de tv apocalíptica da globo que seria substituída por uma conversa ao agrado da erudição de nossa preguiça dominicais ou de nossa compulsão à intelectualidade ou de nossa incompreensão acerca da substituição dos objetos de alguma histérica importante em nossas vidas

noites escuras para se dançar um jazz sensual coladinho e que no auge do saxofone haveria uma coreografia destoante pura subversão artística cabível à circunstância que seria tomada como vergonhosa no cotidiano quando na verdade na verdade a vida nossa seria assim só de ridicularidades que o amor faz fazer e que tendo ele passado permaneceria somente a vergonha e os hábitos de refeição televisão e louvor à estupidez.

26 de outubro de 2013

ordálio

que a linhagem não se estanque nos traços oblíquos,
que a culpa não naturalize as divisões reais da carne,
que a provação não se reduza aos crivos de um deus inferior.

17 de outubro de 2013

engodos

estes desvios que são tomados como desejo. estas marcas que são tomadas como registro. estes lampejos que são tomados como inteligência. estas falas que são tomadas como proferimento. estes ruídos que são tomados como linguagem. estas recepções que são tomadas como sentido. estes giros que são tomados como conversa. estas oportunidades que são tomadas como amor. estes tratos que são tomados como respeito. estas intocabilidades que são tomadas como diferença. estes câmbios que são tomados como contato. estas leis que são tomadas como ortografia. estes homens que são tomados como todo.

1 de outubro de 2013

das intimidades

a um: o sono; a fome; o ritmo da respiração; o formato dos pensamentos; o gosto pelos objetos do mundo; o olhar dirigido ao espelho; a ignorância admitida e acalmada; o riso frente às desventuras; a espera.

a dois: o silêncio dos corpos cansados; a entrega destemida de dormir e a posterior vigília; a refeição compartilhada; o gosto do próprio sexo descoberto pela boca de outrem; a capacidade de abandonar e ser abandonado; as conversas sobre futilidades; os cheiros; as cartas enviadas com remorso e nunca questionadas; o respeito mínimo pela diferença.

15 de setembro de 2013

Cabeça vazia ou Do sonho que nunca terei

(da quadra dos homens que choram, apenas eu poderia tê-lo sonhado: os dois do 'som' estão mortos, o outro se matou na experiência onírica real, e eu prossegui; segue aqui o meu relato fantasmático revertido pela culpa.)
na primeira casa em que morei ao me mudar. tenho, por algum motivo, que ir à casa da vó (ver, talvez, a morte configurada). condição de ida: o suicídio. deliberação: morro e vejo a casa: não morro e permaneço. opto por morrer (e ir): dou-me um tiro ou um lance de guilhotina ou foice ou machado ou uma artéria importante gentilmente cortada. pouco importa o veículo, desde que seja um feito capital. impossível experiência de minha própria morte registrada como um movimento rápido, imperceptível em fatos concretos além da certeza de ter morrido. na dita casa, não permaneceria barrado nos portões trancados a ver as janelas e portas abertas entre os espaços das grades: o infantilismo dos espíritos que atravessam a matéria me permitiria avançar - condição nova e tosca - e lá poderia visitar todos os cômodos, tocar todas as paredes, deixar no chão o rastro de minha língua que persistiu em lamber toda a poeira da memória intacta e chorar a ausência de livros em uma casa de família de grande inteligência.

10 de setembro de 2013

quem roça o sentido sabe que não há sol nem terra nem campo nem pasto nem céu que caiba no desalento duma promessa de salvação que se enuncia falsamente nos encontros que fazem o horizonte entre sol-terra-campo-pasto-céu. quem roça o sentido sabe que não há pessoa nem trabalho nem letrismo certo para ajustar o gado ao gado sem normatizar as vicissitudes do espírito em conformidade com uma lei (no mato tudo é bicho apesar da natureza) mesmo com o passar dos dias a iludir a vida com esse deus temporal. quem roça o sentido sabe que as artes e o sujeito servem ao único propósito de foder com qualquer capacidade de abstração a respeito dos objetos: e aí é que nos perdemos todos numa luta entre o conceito e a história. quem roça o sentido sabe que só se pode ser gente sendo animal pensante mas sem muito decoro porque é preciso confortar a sapiência com uma apreensão do que quer que seja (e assim nasce a sabedoria mais sincera).

31 de agosto de 2013

Não sei escrever para fora III

ai, minha história é tão fodida que vou contar só a partir de quando virei profissional. se sua curiosidade apertar, pode perguntar pra qualquer umazinha de rua, de boate, que vai ouvir a mesma coisa: família complicada, pai louco, mãe louca, sair de casa cedo: a vida de puta aberta pra gente. então não fica amuada que é ninguém é especial aqui, tá, só as virgens. foi mais ou menos assim, fui pra rua, conheci uma menina linda, camilinha aparada, tinha esse nome porque tinha depressão, tadinha, nas crises não se cuidava direito e chegava pros clientes mais exigentes, que gostavam só de peladinha, mentia, fazia o programa e na hora, dizia, aparada é essa, mostrava a buça toda cabeluda, voltava toda machucada, toda roxa e socada, já acudi muito camilinha, mas então, cheguei na rua assim, primeiro dia, tinha acabado de sair de casa, tava toda mole e chorosa, querendo mais é foder com a minha vida mesmo, vi a camilinha no ponto, toda produzida, collant de renda preta e meia-arrastão, saltão, pensei, poxa, quero isso pra mim também, falei assim: ô, bonita! me inicia? ai, que coisa, ela riu até se acabar, perguntou se eu era virgem, respondi que não, mas que tava quase pregada de tanto tempo sem ser frequentada, daí ela riu mais ainda, disse assim: ponho você nesse mundo, se quiser sair, vai ter que nascer sozinha, viu, estrela?, concordei, lógico que ia concordar, queria mais é isso mesmo, já tinha até sido batizada, estrela, achei feio mas aceitei, depois eu mudava, foda-se, daí camilinha me levou pro apê dela, me fez de gata e sapata, nunca tinha provado mulher, que loucura, que delícia, me deu aula de mulher, de homem, de puta, iniciação mesmo, falava assim, estrela, não pode negar as loucuras de cliente! se cliente quer enfiar o braço no seu cu, aceita, sorriso no rosto, com prazer, só pede pelo lubrificante pra não ficar toda esfolada, estrela, se vier mulher querendo umas coisas, não inventa de fazer tesourinha, não faz sucesso, já dizia o poeta que mulher gosta mesmo é de piroca, estrela, se cliente é feio, não faz seu tipo, esquenta a cabeça não, só lembrar de um que você gostou muito e imaginar aquilo tudo ali com aquele, funciona muito bem, só não tenta gozar porque aí é muito, estrela, se vier homem com umas histórias muito diferentes, prometendo felicidade, vai ver o tamanho da piroca: se for grande, não aceita. homem de pau grande é tudo triste. camilinha sabida. depois daquela noite, já sabia que ia ser moça mesmo, e das boas. ela me elogiava o tempo todo a respeito das minhas manobras e habilidades com o corpo; como sou de beleza excêntrica, não linda, ia conseguir fácil o próprio ramo. não é que consegui? fiquei estrela mesmo, nem aí. dividi por um tempo o apê com ela, a gente fazia rodízio e rachava as contas, trabalhava de segunda à sexta, passava o sábado lavando lençol e toalha pra no domingo descansar. camilinha, tadinha, depois de uns bons anos, morreu de depressão. tomava uns remédios fortes, mas nunca me contava da vida dela. combinamos em não falar da própria história, é tudo igual mesmo, só conversamos sobre os clientes. uma vez ela me disse que atendeu um executivo que era ela chamou de até-que-mais-ou-menos, meio barrigudo, moreno, tinha o pé grande e calçava uns quarenta e quatro, aí a gente até agua, né, mas diz ela que ele tinha o pinto pequeno, então,  aí que o até-que-mais-ou-menos pediu pra ela se vestir de princesa da disney e falar que era a cinderela e que queria o sapatinho bem enterrado no rabo; ela topou com a condição de que pudesse ficar com a roupa pra ela. não deu outra: ficou assada por dois dias. outro cliente da camilinha, uma mulher feia, mas mulher é mulher, até que se ajeita, chegou dizendo que era hetero, mas que queria experimentar coisas novas, mas que tinha muito medo. esse pessoal inseguro, né? quer provar da vida e vem logo na pessoa mais batida do mundo. daí camilinha, muito esperta, perguntou: o que você quer fazer? algo diferente e novo. camilinha, como tava triste demais no dia, não aguentou e falou, querida, eu tenho depressão e sei que essa vida não é fácil, mas aqui, conselho de puta, faz uma plástica nesse seu rosto que sua vida melhora, precisa vir aqui não, vamo tomar um chá? viraram amigas. uma vez atendi um grosseirão, macho-alfa, virilidade mesmo. meio peludinho. o cara tinha lá pinto grande, já fiquei aborrecida só de olhar. ia sobrar pra mim naquela noite. daí o cara queria meter de tudo quanto é pose. frente, lado, costas, de ladinho, papai-mamãe, frango, canguru, sapinho, o caralho do zoológico todo, fiquei aperreada, piroca grande, né, era uma terça-feira, tinha que trabalhar o resto da semana. fui até delicada, disse, gato, eu sei que você é muito foda, muito gostoso, seu pau é uma delícia, mas eu não faço a linha atriz pornô. pra quê. o homem me meteu a mão na cara, me chutou de tudo quanto é lado, repetia, mulher minha não me rejeita não!, fiquei toda acabada. "mulher minha", me senti querida pra nunca mais. camilinha que cuidou de mim. depois de um tempo fiquei sabendo que a senhora dele era uma dona-de-casa das mais mirradas. aí eu entendi. meu melhor cliente? ah. uma vez veio um doutor. alto, bonito mesmo, encorpado, pinto médio mas muito agradável. disse que era psicólogo, psicanalista. fiquei desconfiada, achava que esse povo não dava trela pra puta. que mentira. chegou aqui e falou um monte de coisa bonita: disse que as pessoas são todas sujas, que é dever da gente ser puta uma vez na vida, concordei, também pensava aquilo. e aí, quando eu perguntei, o que o doutor quer? ele me olhou bem sério nos olhos e disse assim: me ama. achei tão bonito, pediu o que ninguém pode dar, nem eu que sou puta. dormi de conchinha.

18 de agosto de 2013

(o único sofrimento honesto é aquele de se saber só. não tem promessa de família, amizade ou amor que valha. solidão traz à boca a fragilidade e o absurdo que é a vida. na ânsia de companhia, qualquer situação serve. e é bem assim mesmo: se começar qualquer prosinha boba na fila do banco, já nos unimos na descrença, na desgraça, íntimos ad eternum. fomos e estamos e estaremos sozinhos. a conversa só serviu de aro e sabão: fomos nós quem sopramos a nossa própria bolha. criar laços quando não há corda, união mais garantida do aniquilamento da memória. sem rosto. sem ética. não existe tempo na virtualidade: há nostalgia de esquecimento. mas do quê? de quem?)

12 de agosto de 2013

conselho antiest.ético

falaram assim
"aproveita o espaço"
assim?
          assim?
                     assim?
acho concretista.
acho brega.
mas
pensei um pouco
manjei
a coisa tá no cu
é só fazer (assim

6 de agosto de 2013

louvado sejas tu, ó homem que houve, que, ao viajares do norte ao sul a buscar palavras, ao andares por terras estranhas e descobrires tua pátria dentro, ao buscares nos traços da memória um nome que te seja próprio, ao desceres aos mares e te amigares dos peixes mais aberrantes, ao leres nos livros de ciência o conhecimento mais cerebral da humanidade, ao falares dos teus poucos pecados e te rir dos próprios desejos contados numa cartografia torta de desafetos, ao comeres a comida costumeira que tanto te apraz e que te ressuscita a língua, fazes das tripas, tripas, do coração, coração, da cabeça, cabeça, da perna, perna, do sexo, sexo, do mundo, mundo, de ti, lei.

30 de julho de 2013

vem o estrangeiro todo antiquado arrastando uma língua que só era dita em tu vós me convocando a dizer eu nós mas que não me parecia reta resolvemos ter três encontros na tentativa de tornar próprio o parecer de cada então

existência foi dizer que o eu não era mentira tão assim desgraçada de verdade que muito pelo contrário era necessidade mais íntima pra aparecer um pouco de sujeito com imagem especular e eu debochei do especular espelho especular negócio mas prosseguiu firme na sua postura dizendo que o sujeito então imagem era conhecedor de territórios e continentes e pessoas e nações se reflexo de si não sei

palavra foi mostrar que o terceiro dito excluído de fato nunca o fora não por não ter sido convidado à festa lógica mas porque nunca esteve presente nas tábulas antigas sempre se firmando numa ausência e eu concordei dizendo que ética não implica em obediência mas sim crueldade sincera e assim chegamos num possível consenso unicamente para evidenciar que eutunósvós não faz comunicação e se ela existe é carente de alguém a mais

pensamento foi como previsto agressão ao me acusar então de ser estrangeiro também dentro do meu sotaque forçado e movido pela ofensa eu perguntei pelo rosto que lhe cabe se é tão infinito e tão externo à totalidade - e ele assim fez silêncio - e eu pedi desculpas pela luta e me rendi à anomia constatando que eu também não tinha casa além da suposta hospitalidade que esperava do outro ao me dar o seu nome secreto.

24 de julho de 2013

(apresentação)

nas obviedades: dos cheiros, odor. dos hálitos, gosto. dos panoramas, vista. dos demônios, voz. da ruga, superfície.
na sinestesia: dos cheiros, vista. dos hálitos, odor. dos panoramas, voz. dos demônios, superfície. da ruga, gosto.
nas repetições: dos cheiros, superfície. dos hálitos, voz. dos panoramas, odor. dos demônios, gosto. da ruga, vista.
no espanto: dos cheiros, voz. dos hálitos, vista. dos panoramas, superfície. dos demônios, gosto. da ruga, odor.

20 de julho de 2013

Abecedário

A
301.0

1. desconfiança imaginária. mas ó, fica ligado que.
2. muita nóia pra qualquer brodagem.
3. medo da treta miar e aí só caô pra cima de neguinho.
4. sabe as entrelinhas? bagulho é sério.
5. malandro é malandro, mané é mané.
6. tá olhando o quê? pipoco na fuça se demorar muito aqui no baculejo.
7. butuca na área do vacilo.

301.20

1. cada qual no seu cantinho.
2. bloco do eu sozinho.
3. sexo só com mundos e fundos.
4. síndrome de macabéa.
5. amigos se contam nos dedos de uma mão amputada.
6. se sua estrela não brilha, não me faz diferença.
7. o inverno é mais igual.

301.22

1. je avesso de moi.
2. uma vez, passei debaixo de escada, dormi com gato preto, penteei meu cabelo frente ao espelho que quebrei, deixei chinelo de cabeça pra baixo, abri guarda-chuva dentro de casa, tive o pé varrido. nada aconteceu. mas não faço caretas ao deus-vento.
3. bad trip sem tóxicos.
4. é-se gente. mora-se na casa. trabalha-se no prédio.
5. não óia pra nóia.
6. se o rebanho estourar, haverá dispersão?
7. tão único e distinto como se fosse uma obra.
8. inscrição cancelada no círculo social.
9. atualização do mesmo mesmo para sempre.

B
301.7

1. lei sou eu quem faz.
2. pessoas como extensão do próprio braço.
3. na pira de fazer, não tem pensamento que acalme.
4. heteroagressão dá um tesão.
5. sua liberdade acaba onde a minha também começa.
6. formação de descompromisso.
7. a fala que se emite sob tortura é a mais doce e amorosa que se pode ouvir.

301.83
1. o desamparo é o amparo.
2. kabuki é intenso, mas não se equipara ao teatro do absurdo.
3. a imagem do espelho nunca é, nunca foi, nunca será, correspondente à imagem que se vê no espelho.
4. muito: abuso. pouco: abuso.
5. ideação do suicida mais ideal que o suicídio.
6. tremor no chão dá uma sensação boa de vôo.
7. o vazio, que não é o nada, é tocado, mas a experiência não é temporal.
8. pavio curto para parafina longa.
9. dissolução em qualquer borda.

301.50
1. centro dos centros dos centros dos centros (...).
2. seduz o reino mineral, vegetal e animal.
3. desce-sobe emocional consigo & conosco.
4. o pênis perdido está: no todo do cabelo, na dobra das orelhas, na cor da boca, no traçado dos olhos, no colo delimitado, nos braços pictóricos, nas pernas bem feitas, nos pés que mais são armas, na circularidade das nádegas, no vinco das costas, nos fios tímidos da nuca, etc.
5. discursa sobre tudo. opina sobre tudo. argumenta sobre tudo.
6. oh! (põe o dorso da mão na testa enquanto escorre pelo canto do olho um chorinho forçado mas não menos sincero)
7. vai fácil, volta fácil.
8. amante das relações, não das pessoas.

301.81
1. espelho, espelho meu! existe alguém mais _____ do que eu?
2. money! success! fame! glamour!
3. vencedores só se dão com vencedores.
4. bésame. bésame mucho.
5. “depois você olha no meu lattes.”
6. esporte: alpinismo social.
7. a maçã cai por haver uma força vertical de sentido descendente: não: a maçã cai porque cai.
8. não negue: todo mundo tem inveja. inclusive você. de mim.
9. “não tenho culpa se eu sou melhor que você.”

C
301.82

1. não há domesticação possível ao bicho-gente: melhor evitar.
2. não se sabe o que o bicho-gente come: melhor evitar.
3. bicho-gente age com naturalidade: melhor evitar.
4. na cruz só cabe jesus: melhor evitar.
5. fora d’água, só ar: melhor evitar.
6. luz no final do túnel, só de lanterna: melhor evitar.
7. literatura antropofágica do movimento modernista:

301.6
1. entre casar e comprar uma bicicleta: enquete: caso ou compro bicicleta?
2. súdito dos reis que não reinam.
3. sim, senhor, não, senhor: manda aqui, obedece de lá. (nota: não necessariamente requer recompensas.)
4. antes de usar a bicicleta (ou de casar), vamos ler o manual: quem sabe, assim, quando, se houver, pode ser que.
5. "bonzinho demais".
6. não me deixe só / eu tenho medo de escuro
7. cola no novo pra não perder o velho.
8. e se eu cuidar de mim, quem vai me cuidar?

301.4
1. amor de cu.
2. amizade íntima com instrumentos de medida.
3. chato laboral.
4. código de ética andante.
5. quinquilharias, bugigangas, bagatelas, miudezas, ninharias, nugas, frivolidades, baganas, mixarias, futilidades, insignificâncias: mesmo amor a cada objetinho.
6. transigência não é regra, é lei.
7. teste do sonrisal: ponha um sonrisal na mão. feche a mão. atravesse um rio. abra a mão. (neste caso, obviamente, ele não se dissolve.)
8. esparta se situa dentro do peito.

18 de julho de 2013

erotomania

tudo, sem excesso. o excesso é próprio do ex-. cesso: todos.
logo, nenhum, mas todos; mais exatamente, aquele todo que se situa no mundo e no para-além da diferença, puro infinito dissolvido em qualquer espaço apresentável (ou que tenha se feito apresentação)
me amam me devoram me veneram me contemplam me preenchem me circundam me adoram me figuram me são:
grande mãe descaroçada que sou:
amo, devoro, venero, contemplo, preencho, circundo, adoro, figuro, sou,
senão em mim mesma,
boa terra, labiosa, dos grandes lábios de se morder.

9 de julho de 2013

chega o estrangeiro vestido de formas estranhas vestido de cores estranhas vestido de gestos estranhos prometendo recreios visões e ultrapassagens que nunca vivi garantindo diferença ou minha inteireza de volta topei fomos

ao parque de diversões que tocava eurodance dos anos noventa na montanha russa dominação submissão no trem fantasma tristeza plástica alegria mais plástica ainda no navio pirata êxtase desespero gritos calma rubor na barraquinha milho cozido e uma manteiga que nunca tinha provado e que é muito saborosa

ao cinema de rua antigo assistir a um filme cinza que falava sobre metafísica e verdade e outros mitos (confesso que cochilei) os comentários do estrangeiro eram melhores do que o filme ele perguntando sempre se eu estava acompanhando respondia estou acompanhando e entendendo? estou estou mas e deus aparece em qual cena e ele desconversava ria perguntava se eu tinha gostado de suas formas cores gestos e não entendia e escolhia ficar calado

à estação de trem ver as pessoas que se moviam sem saber se íam ou se partiam e ele sorria todo grato dizendo somos estrangeiros na própria casa e eu concordava somos todos de casa na própria estranheza e ele me beijava a boca na mora da angústia dizendo que iria embora mas que voltaria e eu via ele se indo mesmo sabendo que chegava deixando o choro por minha conta na promessa do próximo encontro em que íamos ao mar.

3 de julho de 2013

atesto, para fins de transmissão, passagem ou transcendência, que eu, estado de coisas, possuo competência e estou apto a lidar com a gramática sexual dos corpos, dado o rebatismo de fumaça aos meus pulmões ocorrido por meio do consumo fálico compressado de tabaco, papel e filtro, realizado na madrugada do dia vinte e nove de junho de dois mil e treze, com o intuito de amenizar os sofrimentos de se ter um furo necessário e não padecer de outros virtualismos além dos que fundam esta imagem que designo como eu, estado de coisas, atesto também a função primitiva que me foi conferida biologicamente e cerceada em nome do pudor e das boas morais, agora ajustada à figuração desta nomeação ausente de significações vindas da alteridade que outrora me preencheu.

16 de junho de 2013

"Homem nu é achado vivo nas margens do Rio Infindo."
"Acusado de andar às margens do Rio Infindo, homem nu pesca, caça e se alimenta."
"Homem-do-rio dorme nu à noite."
"Homem-do-rio, ao tomar banho nu no rio, assusta a população local."
"Homem-do-rio não mostra pudor ao urinar e defecar nu."
"Polícia investiga os hábitos do homem-do-rio nu."
"Padres e gurus e xamãs estudam o morador do Rio Infindo."
"O caso do Rio Infindo: polícia pede ajuda a parapsicólogos."
"Homem-do-rio é visto conversando sozinho em língua desconhecida nas margens do Rio Infindo."
"População se assusta com a língua estranha do morador nu do Rio Infindo."
"Polícia investiga a História do homem-do-rio."
"Polícia investiga a Origem do homem-do-rio."
"Polícia investiga a Língua do homem-do-rio."
"Padres e gurus e xamãs e polícia e parapsicólogos se unem para estudar o fenômeno do morador do Rio Infindo."
"Furo! Desnudada toda a Verdade sobre o homem-do-rio nu."
"Homem-do-rio nu se banha pela manhã."
"Homem-do-rio nu caça à tarde."
"Homem-do-rio nu dorme à noite."
"População está revoltada com a conduta da Inteligência com o caso do nu do Rio Infindo."
"Inteligência diz que se valeu de meios legítimos para vestir o homem-do-rio com a sua Verdade."
"Rio Infindo é palco de acontecimento: morador desnudo desaparece."
"Testemunha diz que Homem-Infindo se dissolveu no Rio Nu."

12 de junho de 2013

(vô, lembra de quando íamos à sua casa, casa da vó, mas também sua, nas visitas felizes de quem morava longe, e a gente tomava mineirinho no gargalo da garrafa de vidro, o gosto dos marques e deixes da nossa família, deixes que vinham nos barquinhos de jornal que era um hábito antigo seu com meu irmão, vô, e que eu não via muita graça, e o aparador em frente à mesa da televisão, visão mais futura do que seria a família e que ninguém saberia dizer por quê, e o aparador cheio de barcos, lindos, seus, que nunca acessei para dizer nossos, não sabia fazer barcos de papel, só avião, mas mesmo assim, vô, mesmo assim, participava daquilo, via os barcos montados e me angustiava, aquele hábito que não era meu, nunca acessei, me endereçava e interessava pela programação triste da tv pra fugir dessa emoção toda de ter a nossa família unida, eu, você, meu irmão, meu pai, você mais sincero se dava aos choros, sem nenhum soluço, vô, por que não deixar sair a fala?, e eu me assustava, pai do meu pai aos choros, todo comovido, que homem, acabamos todos assim, que será que ele segura?, e entendia a sua seriedade de sempre, é não deixar sair para a coisa se perder por si, é preciso resistir, vô, é assim mesmo, se sair água, os barcos vão embora, aparar a dor além dos nossos lugares de irmão, filho, neto, pai, homem. então segura, vô. e me desculpa hoje, que hoje eu choro também, e me desculpa hoje, que eu seguro também, e me desculpa hoje, que sei fazer barcos de papel, e me desculpa hoje, que compro mineirinho no supermercado e bebo sozinho, e me desculpa hoje, que hoje eu sou o da visão do telos.)

18 de maio de 2013

seu p. é meu vizinho. mora no terceiro andar. eu, no segundo. já é um senhor de idade avançada. quando pequeno, frequentei muito sua casa, era amigo dos filhos de uma empregada-amante que ele tinha acolhido. tinha um opala 71 verde-musgo-cinza-escuro, que apelidei secretamente de 'banheira', e que fazia um sucesso danado quando nós todos (ele, a empregada-amante, os meus amigos filhos da empregada-amante e eu) íamos para um bairro pobre e distante visitar um parente qualquer dela. um dia, ele brigou com a mulher porque ela, pobre, estava roubando algumas miudezas da cozinha para constituir sua própria morada, colheres, garfos, facas, panelinhas. deu até polícia. aos berros, gritava, devolve as minha colher! ela, desentendida, peguei nada não!, ques colher? e ele a encurralava na parede, prensando e irritadíssimo. no final da história, ele desistiu da acusação, os policiais foram embora. ela ficou morando por mais alguns meses, foi embora dizendo que estava cansada do velho difícil. hoje, ele mora no prédio porque ganha causas jurídicas executadas em ordem de despejo por falta de pagamento de água-luz, causas ganhas por a) ser velho, b) não ter para onde ir e c) não ter renda além da aposentadoria. o apartamento dele é, na verdade, de sua ex-mulher - que é a proprietária legal do imóvel - que às vezes paga as taxas do condomínio por misericórdia. nos nossos encontros breves da vida cotidiana, cumprimentos vão entre os degraus da escada: bom dia, boa tarde, boa noite. eu, sempre numa pressa descabida, ele, na vagareza das suas idades e cabelos bem modelados na calvície profunda e brancos. demora nos seus passos, nas suas falas, nos seus gestos. quando me cumprimenta com a sua voz grossa: bom dia, os olhos continuam cumprimentando, bom dia, o corpo, bom dia, eu, tímido, preso à pressa, bom dia, como vai o senhor? tudo bem. tudo bem nada. seu p. vai mal da saúde, faz cirurgias inúmeras, já o vi sentado nos assentos da fila de espera de atendimento do hospital universitário, sempre com o ar grave e a felicidade recolhida na voz, nos olhos, no corpo. corpo que já se vai, mas não tão já. nunca o vi em plenitude, mas o tempo de fato serviu a afirmar que não há plenitude. uma vez, disse que fez uma cirurgia. espiritual. espiritual? é. agora eu fico bom. que bom. e tinha até melhorado, apesar de prevalecer a vagareza, aquela frase, a maior tristeza da velhice é que não se envelhece. nas minhas insônias, me abro a escutar a noite, os barulhos: o caminhão de lixo na sua hora da baleia (os mecanismos de armazenamento do lixo rangem, emitindo o som oceânico e profundo), a correria da diversão dos gatos pela minha casa, barulho de patinhas e garras sendo raspadas no chão de madeira de verniz já desgastado, alguma música distante, amorosíssima, saída de algum buraco nostálgico que não cabe no hoje, e, o mais importante, rangidos altíssimos de mobília sendo deslocada no andar de cima, seguido de passos firmes e fortes. meu vizinho não dorme, é certo. sempre tive curiosidade pra saber com o que ele se distrai nestes dias. o cheiro de parafina derretida me confirma as devoções religiosas, a luz recortada nas persianas de seu quartinho-altar me revela o hábito das velas acesas, quartinho que me lembro sagrado desde a memória de quando transitava naquela casa, quartinho que ninguém além dele pôs o pé. agora, estes barulhos, estes barulhos são novos. até que, num dia desses, encontros breves nas escadas do prédio, bom dia, como vai o senhor?, fingi intimidade, perguntei: ouço muito sons vindo do seu apartamento à noite, quando todo mundo já dorme, o que o senhor faz tão tarde da noite? e ele, sorrindo voz, olho, corpo, respondeu largo: eu danço.

2 de maio de 2013

vem cá | pega na minha mão | devagarinho | só pra dar um romance | à cena | ou | pega na minha mão | de levezinho | só pra ter uma cena | neste romance | vem cá | pega a sua mão | põe aqui também | me ajuda a abrir | esse verbo tão caro | acena o romance | devagar | vem cá | me dá sua mão | de vagar | na minha mão | tão bem | leve | me dá sua cena | põe na minha | mão mãe | esse romance | tão outro | vem cá | me dá um romance | me ajuda | abrir devagar | esse verbo amor |  meu caro

7 de março de 2013

- assim, eu acho que você é meio autista.
- quais são seus critérios para 'autista'?
- não interage com as pessoas, fica só no seu mundinho.
- então assim todos nós somos autistas.
- então me explica.
(explico sobre as estruturas psíquicas e das relações com o sintoma)
- ah. então tem como psicotizar um autista?
- dependendo do caso e da análise, tem sim.
- hm. que interessante. qual é a melhor?
- eu, como neurótico, acho que é legal ser psicótico.
- seu pai é psicótico?
- não. é neurótico. por que? faz diferença?
- faz diferença nenhuma... eu sou psicótica?
- não. você é neurótica.
- e a sua tia?
- neurótica.
- a nossa família, de modo geral?
- tudo neurótico. só tem um primo que é psicótico.
- ah.
(silêncio)
- e o bartô?
- o bartô é obsessivo.
- e a dora?
- a dora eu não sei, mas se o nome pegar, vai ser histérica.

23 de fevereiro de 2013

Varjão

vai sempre vazio, o motorista meio bronco, o cobrador ressabiado, os dois proseiam sobre o que acontece e aconteceu: uma vez entrou uma senhora tão séria, não cumprimentou, sentou-se no preferencial, desceu no hospital universitário, devia estar mal de saúde; tá vendo que loucura o trânsito, esses cornos não dão seta e saem cortando, meto a mão na buzina e ainda tenho que ouvir bosta; outra vez entrou um jovem com fone nos ouvidos, cumprimentou o cobrador com um aceno de cabeça, desceu no matagal que serve de atalho para o campus, meio esquisitinho ele; tem um homem que vem sempre, sobe na parada perto do colégio particular, todo engravatado, deve ser doutor pobre, pra andar de ônibus, só pode, cumprimenta só com o olhar, desce na primeira parada depois da construção; teve um dia que eu colei atrás de um paliozinho velho, noventa e nove, a louca da mulher entrou na minha frente de graça, entrou e ficou ensebando, sabe?, reduziu minha velocidade, fiquei puto, colei na traseira dela, deu pra ver a cara de desespero da fulana pelo retrovisor, fiquei com dó e sosseguei; uma vez uma menina tão linda deu sinal, mas era pro carro de trás, pele branquinha, olho azul, cabelo todo arrumado, carregando uns livros e uns cadernos na mão, até dirigia mais macio se ela tivesse subido, mas não subiu, pessoal lá atrás que se segure nos canos; olha esses putos de som alto no sinal, carrinho mais fodido, golf preto rebaixado, só os tipinhos de óculos espelhado na cara, abre o sinal e saem cantando pneu, depois morre e não sabe por quê; um dia eu passei aperto, vi que ia descer gente, esse carro vem sempre meio vazio, o passageiro deu sinal, lembro direitinho como era, um homem já de idade, mas não velho, passou a catraca, abri a porta lá de trás, contei, um dois três, e saí arrancando, não deu outra, o cara não desceu a tempo, tava descendo ainda e eu saindo com o carro, caiu no chão, fiquei numa dó, parei, fui lá todo preocupado, perguntar se tinha machucado, que merda de pergunta burra, né, o cara olhou pra mim e falou assim: no dia em que você andar de ônibus como passageiro, você me conta se gostou do motorista. fiquei triste demais, até pensei em largar essa vida, ir mexer com outra coisa, táxi, mas agora eu espero o sinal do cobrador, umas batidinhas na caixa de dinheiro, funciona até; também tem um velho que entra ali perto do supermercado, cumprimenta, traz jornal da igreja universal, esses crentes são do diabo, aposto que faz macumba pra viver, desce só lá em cima, perto dos hospitais, deve tá mal de saúde também, o velho entra e fica conversando sobre deus. quero saber de deus não, deus não paga conta.

16 de fevereiro de 2013

ele houve, mas faz tanta força pra falar, imagina para ouvir, o que ouve não é lá escuta, é mais direto, mais duro: ele escuta os dentes da palavra se baterem, falo que meu desejo é pedra dura, entende que há desejo, que há pedra, que há dureza, que há o meu, seria nosso?, cadê a letra?, me pergunto, só desfigurou de longe para configurar a coisa bem de perto, é psicótico, pensei, mas ele houve, se digo que vou falar no meu gosto e tropeço dizendo que vou falar do meu gozo, eu rio nervoso, ele sorri de volta, ingênuo, nada aconteceu, prossigo tentando mostrar que há letra, olha só, ela faz assim, dança com a lei, faz charme e fura, mamãe olhou para outro lado, cê não viu, papai olhou com cara feia, cê não viu, e aí não se aguenta de exaustão, muita força pra pouca palavra, bem diz: "não soube antes, mas foi o melhor pra mim". é. não dura o desejo nosso.

12 de fevereiro de 2013

você, que viu nas piores folias a vida acontecendo e se envergonhou, você, que olhou a multidão e descobriu que está vivendo além do fim, você, que dançou sem pudor uma música repetitiva em volume agressivo, você, que não resistiu à loucura e falseou sua verdade em cervejas e vodkas, você, que fugiu e se desencontrou em uma trepada tão triste, você, que acordou de ressaca e viu na televisão todas as cores em confusão, você, que sentiu um pouco de amor pela humanidade no meio do caos. o carnaval acabou, mas calma, a libertação pode seguir para o resto da vida.

1 de fevereiro de 2013

Não sei escrever para fora II

foi o índio que me ensinou esse truque, disse que era pra usar em caso de perigo, aqui na roça é tudo meio lerdo, não tem muito perigo pra ficar precisando de truque, mas ele disse que era melhor saber, vai que, vai que nada, aqui é acordar antes da aurora bater lá longe, rezar pro jesus-obrigado-mais-um-dia e ir lá tirar o leite da vaca antes da hora dos meninos irem pra escola. o resto do dia é pra tocar o gado pro pasto, cuidar dos cachorros, rastelar o quintal, essas coisas, sem muita diferença da vida que o pai, o avô e o bisavô levaram, esses homens da família que nunca ouviram falar de truque, mané truque, dá até pra ouvir aquelas pinturas feias da sala perguntando, cada homem com a respectiva mulher do lado, mãe, avó e bisavó, todas com a mesma cara sofrida de quem não pode muito com eles. minha mulher é mais mulher que essas, não fica com cara sofrida pra cima de tudo, a gente se desentende às vezes, mas ainda vamos fazer uma pintura só nossa, os dois com a mesma cara de homem. a história, eu que ouvi e vi o tal do índio entendi, vou contar, esse povo da floresta é muito delicado, fica emocionado com muito pouco, eles falam meio arrastado, devagarzinho mesmo, nem parece que tem a mesma língua nossa. eu tava procurando uma cadelinha que tava prenha e que deu uma sumida pela manhã, acordei e não estava lá pra comer igual aos outros cães, fui procurar e encontrei a mãezinha cheia de filhotinhos e um índio. o índio disse que estava assim de passagem por uns matos, que precisava dar um recado pra gente, e que tinha visto a cachorrinha ali, parindo aos montes e que foi ajudar. disse que tinha vindo ensinar uma coisa lá do pessoal dele pra gente, que era pra gente se prevenir também, que o mal tava com fome e solto. daí eu perguntei pra ele como é que ele soube o que ele tinha pra ensinar pra gente, e o índio disse que eles acendem um fogo e começam a conversar umas coisas estranhas, de animal isso, de planta daquilo, de homem este, de Homem aquele, uns assuntos que aqui na roça a gente não sabe muito, os meninos devem saber mais porque tem escola, mas o índio me disse e agora eu sei, confio demais nesse povo que veio da terra, a cor deles é a mesma, já reparou, então, ele disse que é assim que eles aprendem as lições da terra, disse desse jeito, lições da terra, eu perguntei se era arar, plantar, adubar, colher, ele disse que também, mas que a terra ensinava mais do que a gente podia perceber. concordei, fazer o quê, vou desconfiar de índio, mas nunca, mané desconfiar, as pinturas que fiquem lá sem truque, e eu perguntei, e qual é a lição que o porta-voz da terra veio ensinar, falei bonito, queria impressionar, e aí o índio falou a coisa mais estranha, de quando a onça chegar perto tem que colocar a orelha no chão pra saber se ela tá vindo mesmo ou se é só vento, o barulho é igual, tem que colocar a orelha no chão e ouvir o coração da terra. eu arrepiei, já pensou, onça, nunca mais tinha visto por essas bandas, e, quando via, era só deixar uma vaca magrinha de fora e esperar a gatona não ter mais fome, senão, perigoso. o índio disse que não era pra esquecer, falei que não ia, até porque não era todo dia que a gente encontrava alguma coisa diferente acontecendo aqui na roça, muito menos índio, e o índio, com aquele cara sabida, pra comprovar que eu não iria esquecer, foi lá e tirou uma faca e furou a cachorrinha inteirinha, um horror, aquele sangue todo descendo e aquele tanto de filhotinho querendo mamar a mãezinha morta, enquanto o índio furava, furava, e a terra, que loucura, sequinha embaixo da cachorra. depois da matança, ele perguntou, tá vendo como a terra tá seca? ela ouviu tudo o que a gente conversou. fiquei meio bobo, vê se pode um negócio desses, a terra bebeu tudo, nem sei se tinha sede, mas bebeu. perguntei que que foi aquilo, ele disse que era um pacto, e a onça, a onça tava vindo pra ver se o pacto ainda existia. não entendi muita coisa, mas tudo bem, entendia depois, se tivesse mesmo alguma coisa pra entender ali. não ia desacreditar dele. e aí que ele foi embora levando os cachorrinhos, disse que iam servir mais pra ele do que pra mim. passou muito tempo depois disso, continuei seguindo, acordar antes da aurora bater, leite pros meninos, pasto pros gados,comida pros cachorros, vidinha do pessoal lá da pintura, tirando que antes de dormir eu botava a orelha no chão toda noite pra vê se escutava alguma coisa diferente. nada. aí que chegou lá pelos começos do ano, janeiro, por aí, tempo que chovia o dia inteiro e à noite parava pra fazer frio, não dava pra fazer as coisas direito, tinha que ficar esperando um descanso da chuva pra poder ir mexer. numa dessas, tava bronco porque não conseguia trabalhar direito, ficava em casa ouvindo aborrecimento de menino, de mulher, esses aporrinhos, não deu outra, fiz tudo no tempo mais ou menos, sem muita vontade, acabei esquecendo uma vaca do lado de fora do curral. à noite, lembrei, me deu um negócio no peito, um trem esquisito. muito vento lá fora, muito frio lá fora, a casa é de pobre então não tem muita diferença de como é que a gente tava passando essas noites, os cachorros tremendo de medo do uivo do vento, ih, pensei, já sabem, os bichos dão um jeito de saber as coisas antes da hora, a mulher ficou assustada porque os meninos tinham acabado de dormir e eu tinha levantado bem antes da hora, ih, já sabe também, e eu, que sou homem, nunca tinha sentido medo, senti, e aí que no desespero que é sentir medo, pus a orelha no chão. não sei dizer, mas eu escutei, não era algo parecido com coração da terra, coração bate, né, o que eu ouvi não era batido, parecia barulho de água sendo bebida pela terra, parecia barulho de fósforo riscado, é a onça, ô merda, acabou de comer a vaca e tá vindo pra cima da casa, vento nenhum vai soprar essa bicha pra longe, vento nada, é a onça mesmo, tá vindo. fiquei doido, levantei desesperado do chão e abri a casa toda: de repente, entrou o índio, parecia que não tinha mudado nada depois do último e primeiro encontro, entrou o índio e falou: a onça tá aí, corre lá pra vê se você salva a vaca. ah, não deu outra, fui doido atrás da vaca, nessa hora a gente só obedece, nem pensa muito, procurei, procurei, procurei, encontrei a vaca na porta do curral esperando entrar, viva e assustada que nem eu, morrendo de frio que nem eu, cadê o diabo da onça?, coloquei a vaca pra dentro aos chutes, morrendo de raiva, quando tava fechando a baia, o ar frio ficou um pouco quente no rumo da minha nuca, olhei pra trás, olhei pra trás e, ai, a onça. eu vi. toda furada.

6 de janeiro de 2013

turva, foi assim que eu vi a água descer enquanto escutava o som da sua voz, meio embargada também, todo o sal do mar estava ali na minha boca, nos meus olhos, e a água só descendo, nem aí pra gente, e você me falando as coisas mais simples e bobas e eu achando tudo muito lindo, nada me faltando - o que fazia chão para toda a falta -, nada me faltando além do sorrisinho também simples e bobo, os olhos e a boca duros de sal, mas o ouvido, a escuta, este demônio, corria solto e caía tão líquido que escutei o som da sua voz dizendo assim: você não volta mais pra lá? quando sua voz real, sua, não-minha, dizia: você não volta mais pra cá? e eu só sorrindo, tudo muito lindo, respondi assim: volto. não sei se venho, mas voltar, voltar eu sempre volto.