1 de fevereiro de 2013

Não sei escrever para fora II

foi o índio que me ensinou esse truque, disse que era pra usar em caso de perigo, aqui na roça é tudo meio lerdo, não tem muito perigo pra ficar precisando de truque, mas ele disse que era melhor saber, vai que, vai que nada, aqui é acordar antes da aurora bater lá longe, rezar pro jesus-obrigado-mais-um-dia e ir lá tirar o leite da vaca antes da hora dos meninos irem pra escola. o resto do dia é pra tocar o gado pro pasto, cuidar dos cachorros, rastelar o quintal, essas coisas, sem muita diferença da vida que o pai, o avô e o bisavô levaram, esses homens da família que nunca ouviram falar de truque, mané truque, dá até pra ouvir aquelas pinturas feias da sala perguntando, cada homem com a respectiva mulher do lado, mãe, avó e bisavó, todas com a mesma cara sofrida de quem não pode muito com eles. minha mulher é mais mulher que essas, não fica com cara sofrida pra cima de tudo, a gente se desentende às vezes, mas ainda vamos fazer uma pintura só nossa, os dois com a mesma cara de homem. a história, eu que ouvi e vi o tal do índio entendi, vou contar, esse povo da floresta é muito delicado, fica emocionado com muito pouco, eles falam meio arrastado, devagarzinho mesmo, nem parece que tem a mesma língua nossa. eu tava procurando uma cadelinha que tava prenha e que deu uma sumida pela manhã, acordei e não estava lá pra comer igual aos outros cães, fui procurar e encontrei a mãezinha cheia de filhotinhos e um índio. o índio disse que estava assim de passagem por uns matos, que precisava dar um recado pra gente, e que tinha visto a cachorrinha ali, parindo aos montes e que foi ajudar. disse que tinha vindo ensinar uma coisa lá do pessoal dele pra gente, que era pra gente se prevenir também, que o mal tava com fome e solto. daí eu perguntei pra ele como é que ele soube o que ele tinha pra ensinar pra gente, e o índio disse que eles acendem um fogo e começam a conversar umas coisas estranhas, de animal isso, de planta daquilo, de homem este, de Homem aquele, uns assuntos que aqui na roça a gente não sabe muito, os meninos devem saber mais porque tem escola, mas o índio me disse e agora eu sei, confio demais nesse povo que veio da terra, a cor deles é a mesma, já reparou, então, ele disse que é assim que eles aprendem as lições da terra, disse desse jeito, lições da terra, eu perguntei se era arar, plantar, adubar, colher, ele disse que também, mas que a terra ensinava mais do que a gente podia perceber. concordei, fazer o quê, vou desconfiar de índio, mas nunca, mané desconfiar, as pinturas que fiquem lá sem truque, e eu perguntei, e qual é a lição que o porta-voz da terra veio ensinar, falei bonito, queria impressionar, e aí o índio falou a coisa mais estranha, de quando a onça chegar perto tem que colocar a orelha no chão pra saber se ela tá vindo mesmo ou se é só vento, o barulho é igual, tem que colocar a orelha no chão e ouvir o coração da terra. eu arrepiei, já pensou, onça, nunca mais tinha visto por essas bandas, e, quando via, era só deixar uma vaca magrinha de fora e esperar a gatona não ter mais fome, senão, perigoso. o índio disse que não era pra esquecer, falei que não ia, até porque não era todo dia que a gente encontrava alguma coisa diferente acontecendo aqui na roça, muito menos índio, e o índio, com aquele cara sabida, pra comprovar que eu não iria esquecer, foi lá e tirou uma faca e furou a cachorrinha inteirinha, um horror, aquele sangue todo descendo e aquele tanto de filhotinho querendo mamar a mãezinha morta, enquanto o índio furava, furava, e a terra, que loucura, sequinha embaixo da cachorra. depois da matança, ele perguntou, tá vendo como a terra tá seca? ela ouviu tudo o que a gente conversou. fiquei meio bobo, vê se pode um negócio desses, a terra bebeu tudo, nem sei se tinha sede, mas bebeu. perguntei que que foi aquilo, ele disse que era um pacto, e a onça, a onça tava vindo pra ver se o pacto ainda existia. não entendi muita coisa, mas tudo bem, entendia depois, se tivesse mesmo alguma coisa pra entender ali. não ia desacreditar dele. e aí que ele foi embora levando os cachorrinhos, disse que iam servir mais pra ele do que pra mim. passou muito tempo depois disso, continuei seguindo, acordar antes da aurora bater, leite pros meninos, pasto pros gados,comida pros cachorros, vidinha do pessoal lá da pintura, tirando que antes de dormir eu botava a orelha no chão toda noite pra vê se escutava alguma coisa diferente. nada. aí que chegou lá pelos começos do ano, janeiro, por aí, tempo que chovia o dia inteiro e à noite parava pra fazer frio, não dava pra fazer as coisas direito, tinha que ficar esperando um descanso da chuva pra poder ir mexer. numa dessas, tava bronco porque não conseguia trabalhar direito, ficava em casa ouvindo aborrecimento de menino, de mulher, esses aporrinhos, não deu outra, fiz tudo no tempo mais ou menos, sem muita vontade, acabei esquecendo uma vaca do lado de fora do curral. à noite, lembrei, me deu um negócio no peito, um trem esquisito. muito vento lá fora, muito frio lá fora, a casa é de pobre então não tem muita diferença de como é que a gente tava passando essas noites, os cachorros tremendo de medo do uivo do vento, ih, pensei, já sabem, os bichos dão um jeito de saber as coisas antes da hora, a mulher ficou assustada porque os meninos tinham acabado de dormir e eu tinha levantado bem antes da hora, ih, já sabe também, e eu, que sou homem, nunca tinha sentido medo, senti, e aí que no desespero que é sentir medo, pus a orelha no chão. não sei dizer, mas eu escutei, não era algo parecido com coração da terra, coração bate, né, o que eu ouvi não era batido, parecia barulho de água sendo bebida pela terra, parecia barulho de fósforo riscado, é a onça, ô merda, acabou de comer a vaca e tá vindo pra cima da casa, vento nenhum vai soprar essa bicha pra longe, vento nada, é a onça mesmo, tá vindo. fiquei doido, levantei desesperado do chão e abri a casa toda: de repente, entrou o índio, parecia que não tinha mudado nada depois do último e primeiro encontro, entrou o índio e falou: a onça tá aí, corre lá pra vê se você salva a vaca. ah, não deu outra, fui doido atrás da vaca, nessa hora a gente só obedece, nem pensa muito, procurei, procurei, procurei, encontrei a vaca na porta do curral esperando entrar, viva e assustada que nem eu, morrendo de frio que nem eu, cadê o diabo da onça?, coloquei a vaca pra dentro aos chutes, morrendo de raiva, quando tava fechando a baia, o ar frio ficou um pouco quente no rumo da minha nuca, olhei pra trás, olhei pra trás e, ai, a onça. eu vi. toda furada.