29 de março de 2018

como quem tenta roubar o descanso da falta de palavras inventando brincadeiras, você olha para cima e dobra o rosto em alguns pensamentos. apesar da nossa aparente distração, você me pergunta o que vejo quando olho para o céu. e se responde sem me dar prazo: "vejo um mar sem ondas. um deserto multicor. o império do sol. o tédio dos giros dos planetas." e eu acho graça das imagens naturais, seria o olhar sobre o mundo também natural? seria essa visão extensa na verdade apenas uma percepção daquilo que se espreme entre as lâminas de um microscópio? "a vigilância de deus. vejo a casa das almas limpas, das virgens e dos anjos rechonchudos. a festa e o tribunal da providência. o tumulto ordenado do universo se criando e se desfazendo. vejo a lona do circo que é a humanidade." e rio desistindo da sua mania de transcendência mais uma vez próxima à analogia cristã, eu dentro da minha ironia ingênua. "vejo um desfile branco, cinza e preto. a grade das coordenadas cartográficas do globo. uma folha infinita. as linhas invisíveis das rotas aéreas. a ganância crescente dos prédios. vejo o peso sobre atlas. vejo o alívio dos românticos." e me desconcerto com a dificuldade de dar ternura ao que foi um tempo colegial, nosso presente embaralhado em lembranças de lascas de madeira de lápis apontado e idéias difíceis de expressar. "vejo o manto da virgem, que se estende calmo, pleno. um engano estratosférico de gases e vapores. o pé de feijão sumindo. a alegria combustível das estrelas cadentes. um lugar de onde se cai. um relógio sem ponteiros nem números. a casa dos pássaros." e fico curioso com a possibilidade de algum futuro adiado das bobagens da abóbada celeste, um futuro que seja encontro nosso assim terreno, portanto indeterminado. "vejo a paleta das cores do seu silêncio: variações de azul, cinza, preto, azul, vermelho, rosa, laranja, amarelo, branco. vejo uma lua à espera da alvorada. as estrelas e suas gatas: clarice, dora. vejo uns mapas que levam a nenhum tesouro. o abismo que nunca olha de volta. vejo o céu que você guarda dentro. vejo o próprio céu". sob a esplendorosa indiferença diante de nós, pude sorrir diante da descoberta.