31 de agosto de 2017

vejo sem ser visto. me sei ausente. espio. sinto ciúmes. não entendo. extraio um prazer velado. participo somente pela tensão de ver parcialmente. gosto do que vejo. me realizo por não me ver vendo. me masturbo. viro um objeto puro. não me responsabilizo por ver. gozo da onipotência equiparada à invisibilidade. não guardo segredo. protejo a minha ausência por meio da perscrutação. não tenho intenção além de ver. não sei o que sinto sobre a crueldade. existo só. invento ilusões de inclusão. anseio por ser visto. então descubro o que sou. um voyeur cego.

8 de agosto de 2017

parada

abram abram alas
o poema vai passar
cheio de plumas de rasuras
espaço! abertura!
é grande a criatura
vejam ele lá

extravagante vem
galopando selvagem vem
uma cabeça outras mil e cem
seis mil braços pernas bocas olhos
é um monstro! melhor
rezar pai-nosso amém

o poema vem vindo
atenção há tensão
para os versos para os sons!
cuidado com seus corações
é um bicho que come de tudo
sentimentos sobretudo
crianças velhos e pães

é alta e feia a criatura
caminha com alguma formosura
mas tem as pernas tortas: tortura!
há lá sua elegância
um metro estranho: extra vagância!
exibe rimas e ternuras
mil dentes trinta mil unhas
todas sujas todos gastos
seus estilos? velhos! ritmos? fracos!

o poema vem vindo
chegando e vindo diz assim
com uma voz horrível
sem fôlego e carmim:
"corr am! fuj am! ráp-id-o!
esp-a-lh em-sep ar...a lo-nge
vem v in...do v em ta mbém
o MUN-DOa trásd emim!"

apostem em suas pernas!
fogo! água! tragam
água pro fogo! há
mais fogo para a água!
o mundo o seguiu! imundo!
o poema não conseguiu
descobrir a charada:
o que é se acende
quando se apaga?

acudam! corram todos
vão pra casa! já!
perigo outro monstro maior
vinda enorme ainda tarda!
O MUNDO! quer saber o-que-é-o-que-é
se ele também chega
e não há gente fugida
ai! não vai sobrar mais nada!

passa! nem poema nem amor!
"sariema rima com dor?"
escapole daqui! fugir!
a charada, a resposta
posta a aposta
pés pelas mãos corram
pernas corram pernas pernas
é a vida é a vida

3 de agosto de 2017

hermeneuta afetado diante de a total stranger one black day de e.e. cummings

a total stranger one black day é impossível de ser traduzido para nossa língua sem desintegrar a sua essência. a tradução, em geral, trabalha, na passagem de uma língua à outra, com escolhas de matar-ou-morrer, requerendo uma antecipação do luto dos sentidos. o bom tradutor já está consciente e advertido dos prejuízos inerentes de seu ofício e não sofre do silêncio da impossibilidade de comunicação. todavia, um poema não serve para comunicar. particularmente, a tradução poética tem de se atentar, além da estrutura interna da língua e da linguagem quando em versos, às transformações das figuras e dos sons para tentar algumas compensações nas imagens, nas metáforas e nas alegorias, e também na métrica, na rima e no ritmo. o bom tradutor de poesia é um fracassado insistente que tenta ganhar em algum acabamento no processo de derramar textos entre líguas. no entanto, a tradução não é uma possibilidade no caso deste poema de nosso autor. a tentativa mesma de verter este poema faz com que ele se transforme em gás ou evapore. apesar de preservar sua i.materialidade, não há como produzir de modo mínimo ou similar as transformações ou as características formais nele presentes quando tentado em nossa língua. nada se preserva o suficiente a ponto de haver identidade e relação possível entre o poema original e o traduzido. dizem que a tradução é uma transcriação, que uma obra traduzida é uma nova e outra obra; sim, quando a tradução é possível. nesse caso, o poema se despedaça ou desaparece e é vítima de uma aniquilação. impossível manter o poema poema sem poder fixá-lo minimamente em sua forma de apresentação ou seu conteúdo manifesto. portanto, não há compensação a ser feita; e sim alguma leitura orientada. na primeira estrofe, uma ambiguidade quanto ao sujeito que chega, estranho ou estrangeiro (o autor? o leitor?). somam-se a ela uma polissemia (presente na expressão 'knocked the hell out') e uma homofonia sutil (living/leaving). na segunda estrofe, mais ambiguidade, a respeito ao que se refere o pronome who, implicando em alterações semânticas que apontam em uma confusão entre o agente e o receptor da ação de perdoar. a personagem ambígua da primeira estrofe é identificada como 'he', mas a indeterminação de sua figuração não se resolve. por fim, na terceira estrofe, as personagens se resolvem. trata-se de uma poema de assombração e conciliação com e pelo desconhecimento. na melhor das hipóteses, a leitura do poema original pode ser orientada pela elucidação das relações de sentido e de significações advindas de cruzamentos sintáticos, das homofonias e expressões idiomáticas, das considerações ao enjambement, que dão corpo e imagem à composição do poema. assim:

duas personagens possíveis chegam ao sujeito lírico do poema: num dia escuro, um completo estranho ou estrangeiro ("a total stranger one black day"). essas personagens forçam a interpretação a concebê-la como uma só, uma vez que não há maiores designações no poema a respeito dos atributos daquele ou daquilo que chega. alguém ou algo desconhecido chega. e o sujeito lírico, obscuro e complexo como se espera que seja, por exceção do acontecimento poético estava distraído vivendo até ser defrontado pelo contato com a dita personagem. tal encontro de violência e arrebatamento ("knocked") em decorrência de sua presença estranha ou estrangeira, ambas no entanto afirmativa e inteiramente desconhecidas, aviva ou retira ("living" [ou talvez "leaving"]) com muita intensidade ("the hell out") o sujeito de seu estado de distração ("of me -").

inicia-se, entre travessões, um movimento duplo de contastação e de questionamento que advém do encontro do sujeito com o estranho estrangeiro: encontrar um perdão difícil ou em um caminho dificultado ou esclarecer o gesto de quem realiza o perdão com dificuldade ("who found forgiveness hard because"). porque há uma confusão a respeito de quem realiza o quê na circunstância de perdoar e ser perdoado ("my(as it happened)self he was"). ele [o estranho ou o estrangeiro ou o estranho estrangeiro] era ele [o sujeito lírico]. logo, a personagem estrangeira é alguém, não algo. mesmo que não haja explicação do contexto e do motivo do perdão, é clara a mistura identitária entre a personagem e suas características e o sujeito lírico.

por fim, o sujeito reconhece a sua tamanha condição na personagem que era tomada como inimiga, tornando-se dela amiga inseparável ("- but now that fiend and i are such/immortal friends"). conclui-se que os perdões são feitos; as relações, conciliadas. a partir deste desfecho, se soluciona a confusão identitária entre o sujeito lírico e quem lhe chegou, estrangeiro ou estranho estrangeiro. sendo cada um em separado ("the other's each"), preservam individualmente o traço amigo que lhes possibilita comunhão.

uma ressalva se faz necessária sobre a versão interpretativa deste poema: trata-se da indeterminação inicial quanto à natureza daquele que chega como personagem. o estranho ou o estrangeiro, ou ainda o estranho estrangeiro, só é reconhecido ao longo do poema como tal pela condição de haver partilha de humanidade entre ambos. antes, era ser ou coisa amorfa, talvez a própria estranheza a bater portas e abrir infernos. se sujeito e personagem comungam o corpo, a cultura, o pensamento, a visão de mundo, tal imposição de sentido foge ao alcance interpretativo do texto do poema. tende-se a acreditar que o sujeito lírico e a personagem compartilham, por humanidade, da capacidade para a linguagem e da intimidade com a língua. quem ele efetivamente é, no entanto, fica em aberto. se este fosse um poema explícito de amor, diria o sujeito lírico que "não fosse o jeito de linguar, quase nos perderíamos um no outro". mas o amor escapa a este poema e à virtude da verdade.

1 de agosto de 2017

ainda assim brasília

a universidade com os corredores vazios; a secura; a tarde no ccbb; o sotaque miscigenado e as gírias; o tédio dos mendigos deitados na grama; os abacates espatifados no chão; os ipês; a rodoviária de manhã cedo; a paciência das jacas no pé; os ônibus cheios; a l2 em início de tarde de sábado; a feira da torre; a feira do guará; a feira dos importados; as banquinhas nas entradas das quadras; o jardim zoológico no domingo; o plano-pilotismo; os pombos da praça dos três poderes; o conic; o cheiro das queimadas; o metrô fora do horário de pico; o lago paranoá; as esculturas do darlan rosa em frente ao memorial dos povos indígenas; o palácio itamaraty visto de longe; as pontes; as caminhadas dentro do aeroporto; o parque da cidade; o brasiliense.