26 de dezembro de 2019

inventário

para um poema sobre amor
chamas, ardores
lábios, colos
vibradores, algemas etc

para um poema sobre ódio
fogos, bílis
facas, maldições
guerras, planos de saúde etc

para um poema sobre espaço
salas de dentista, noites
labirintos, torres
auroras, jardins zoológicos etc

para um poema sobre tempo
ampulhetas, relógios
deuses soterrados, cristo
hospitais, cemitérios etc

para um poema sobre poemas
livros, penas
blocos de notas, dicionários
poços que ressoam, feijões etc

para um poema sobre finitude
praias, desertos
dores de dente, becos sem saída
religiões, mcdonald's etc

para um poema sobre infinitude
etc etc

20 de dezembro de 2019

aurora

suspensa manhã
cocoricocoricó!
nasce o grande elã.

vida-lazer

poder me deitar
na rede. sol na parede.
e dizer: mas já?

24 de outubro de 2019

pós-banho

cheiro de sabonete
formas embaralhadas à
estampa da toalha enrolada
à cintura pele úmida
no rosto os poros distensos
reflexo turvado por vapor
d'água pairando sobre
minha expressão fugidia uma
fresta desembaçada torna
visível a espuma os ossos
que apontam do outro
lado o outro (o que separa
o desamparo da onipotência
é um risco) vejo um rosto
pouco barbado meu olhar
incisivo sobre o desenho
o trajeto a altura dos pêlos sempre
tão próximos às linhas azuladas
que se guardam a correr
por dentro um medo se
ajusta (de perder a medida
o ritmo) enquanto decido
por trato ou acabamento
do excesso à escassez
pauso e espero
nas mãos o navalhete
que em cordato pulso e
aberto para a lâmina
(não escorrem ainda
as linhas fechadas)
já fixada impõe o corte
rente e exato como
estes versos também
mal aparados

23 de setembro de 2019

(southern trees bear a strange fruit
blood on the leaves and blood at the root [...])

carregava uma vida que era como um problema
difícil de encaminhar para conclusões ou êxitos
o desejo a pele como questões sem respostas
um rosto que não enternecia o mundo, dourado

andava como quem esperava por distribuir luzes
querendo ser iluminado para poder amar seguir fazer
pelo campus escolheu apenas a hora sobre uma árvore
e não resistiu à sedução de pender sob os galhos
torcer-se como uma interrogação, que era

12 de fevereiro de 2019

entrada da quadra, tardezinha de 1998

subi no pouco que pude o ponto mais alto da minha árvore após ter brigado com meus amigos, então tornados inimigos, pelos quais ansiava a morte. acreditando que toda criança tinha de ter uma árvore e um pai para espantar o mal do coração e do mundo, a partir da minha educação de culpa cristã e muitos brinquedos caros quebrados, rezei para deus e os seus que salvassem esta alma egoísta e poupassem de avaliá-la com estes olhares impiedosos, mas justos, que eu não sabia exatamente de onde vinham: "santo anjo do senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, rogo-me de frente e também alado, já que nas alturas do pau-brasil, e à sina conquistada de ser criança agora solitária: por favor, pai do céu, faça com que o anjo compareça em presença absoluta e real, pois já não tenho mais com quem brincar; leia os joelhos ralados e adormecidos pela prece, alivie esta agonia cansada dos mistérios e o apresente, em penas, como amigo. se não der, aceito que venha o senhor mesmo; pode vir como pombo, até sem bola". era uma clemência infantil, que não encontrava sentido algum na redenção, mas que se lançava obstusa e amendrontada, imitando o gesto dos adultos. julgava eu ser nenhuma alegria guardar, governar, iluminar nós os homens, por entre as nuvens e detrás das estrelas, como me diziam deste reino do pai do céu. temia seus abusos e as fofocas de seus enviados vigilantes, desejava em segredo que de uma vez por todas se deitassem abaixo o ócio vaidoso e o voyeurismo destes gestores habitantes do éter – e que as árvores, verdadeiras companhias, falhada a prece, me escutassem acolhedoras, dando galhos para espadas ou cajados, troncos para cavalos ou esconderijos e folhas ou raízes para coroas ou remédios de cura profunda imaginada.