10 de fevereiro de 2020

hermeneuta afetado traduz the tyger de william blake

primeiro, a contemplação da criatura; depois, o desdobramento da razão sobre seu criador, seu gesto de criação. o poeta, apartado de qualquer constrangimento, sonda a transcendência provocada pela animalidade do tigre, ao tempo em que investiga sua gênese natural ou divina. uma interrogação reiterada sobre a natureza da matéria mundana e seus meios de formação insiste em busca de uma correspondência comum a todas criaturas: as formas do mundo são formas do juízo do poeta acerca das intenções originárias do criador. em última instância, este poema é um canto à razão, valendo-se da dúvida sobre a natureza do animal e seu criador como contraponto à faculdade humana para domesticar, por meio do pensamento e da linguagem, o mundo, visando inquirir o valor, diante do criador, da criatura. aliás, a arguição regida pelo poeta, além de método de crítica, é também um modo de por em dúvida, como não poderia deixar de ser um poema blakeano, a cosmovisão cristã, que faz fundo à toda existência terrestre: magnânimas, as mãos da providência estão espalhadas sobre todas as superfícies e profundezas, cobrindo-as, causando-as. mostra-se nesse ponto do poema um traço de indignação metafísica diante da ousadia do criador em dar vida a seres que, incapazes de contemplar, apenas percebem; que não morrem, mas fenecem; que observam o mundo, mas não se dão conta de seu horror ou beleza e, portanto, não podem rezar ou agradecer o pai. o tigre – contra todo o perspectivismo ameríndio, representado como pobre-de-mundo, mas enriquecido em mistério pelo artifício poético é, afinal, uma existência apartada do mundo dos signos. pertence assim à categoria dos seres imediatos, não falantes, cuja essência está totalmente conjugada ao real pela sua inefabilidade – blake não soube ouvir seu bramido. daí a ironia de tal criação poética fazer com que, diante do tigre, o poeta sabatine seu criador: dada sua onipresença de ser origem de todas as coisas e uma vez que pai de uma criatura que, não humana, não tem consciência da consciência, a pergunta autocentrada do poeta: por que fez o homem como o fez? o que torna o homem diferente do animal não humano? a reposta são as imagens:

O Tigre

Tigre! Tigre! Que queima, arde
nas selvas da noite sombria,
quais mãos imortais, qual olhar
fabricaram tal simetria?

Em quais abismos, em quais céus
queimou a chama dos seus olhos?
Com quais asas alçou ao sólio?
Qual mão fechou-lhe fogaréus?

Qual ombro, que arte fez torcer
as cordas do seu coração?
Quando este, já de pé (em vão?),
começou a bater? Temer?

De que martelo? Qual corrente?
De qual forja veio tal mente?
De que bigorna? Que miséria
se fechou, fatal, na matéria?

Quando os céus deitaram as armas
e choraram no paraíso,
sorriu, ao ver obra, juízo?
Fez Cordeiro, quem lhe deu ar?

Tigre! Tigre! Que queima, arde
nas selvas da noite sombria,
quais mãos imortais, qual olhar
ousaram atroz simetria?