23 de fevereiro de 2013

Varjão

vai sempre vazio, o motorista meio bronco, o cobrador ressabiado, os dois proseiam sobre o que acontece e aconteceu: uma vez entrou uma senhora tão séria, não cumprimentou, sentou-se no preferencial, desceu no hospital universitário, devia estar mal de saúde; tá vendo que loucura o trânsito, esses cornos não dão seta e saem cortando, meto a mão na buzina e ainda tenho que ouvir bosta; outra vez entrou um jovem com fone nos ouvidos, cumprimentou o cobrador com um aceno de cabeça, desceu no matagal que serve de atalho para o campus, meio esquisitinho ele; tem um homem que vem sempre, sobe na parada perto do colégio particular, todo engravatado, deve ser doutor pobre, pra andar de ônibus, só pode, cumprimenta só com o olhar, desce na primeira parada depois da construção; teve um dia que eu colei atrás de um paliozinho velho, noventa e nove, a louca da mulher entrou na minha frente de graça, entrou e ficou ensebando, sabe?, reduziu minha velocidade, fiquei puto, colei na traseira dela, deu pra ver a cara de desespero da fulana pelo retrovisor, fiquei com dó e sosseguei; uma vez uma menina tão linda deu sinal, mas era pro carro de trás, pele branquinha, olho azul, cabelo todo arrumado, carregando uns livros e uns cadernos na mão, até dirigia mais macio se ela tivesse subido, mas não subiu, pessoal lá atrás que se segure nos canos; olha esses putos de som alto no sinal, carrinho mais fodido, golf preto rebaixado, só os tipinhos de óculos espelhado na cara, abre o sinal e saem cantando pneu, depois morre e não sabe por quê; um dia eu passei aperto, vi que ia descer gente, esse carro vem sempre meio vazio, o passageiro deu sinal, lembro direitinho como era, um homem já de idade, mas não velho, passou a catraca, abri a porta lá de trás, contei, um dois três, e saí arrancando, não deu outra, o cara não desceu a tempo, tava descendo ainda e eu saindo com o carro, caiu no chão, fiquei numa dó, parei, fui lá todo preocupado, perguntar se tinha machucado, que merda de pergunta burra, né, o cara olhou pra mim e falou assim: no dia em que você andar de ônibus como passageiro, você me conta se gostou do motorista. fiquei triste demais, até pensei em largar essa vida, ir mexer com outra coisa, táxi, mas agora eu espero o sinal do cobrador, umas batidinhas na caixa de dinheiro, funciona até; também tem um velho que entra ali perto do supermercado, cumprimenta, traz jornal da igreja universal, esses crentes são do diabo, aposto que faz macumba pra viver, desce só lá em cima, perto dos hospitais, deve tá mal de saúde também, o velho entra e fica conversando sobre deus. quero saber de deus não, deus não paga conta.