27 de novembro de 2012

Bicicleta de rondinhas

acordava cedo, sábado, todos na casa dormindo, comia qualquer coisa, sucrilhos, comida de campeão na tigela alaranjada do tigre campeão, leite e cereal na pressa de descer antes do sol subir, pressa de descer e pegar a bicicleta no pecê do bloco, nunca soube o que é pecê, porta-coisa?, acordava cedo, café-da-manhã, leite, não tinha problema com leite ainda, além da frescura, não tinha problema, escovava os dentes, também de leite, tão bem treinado a me limpar, vestia as roupas que podiam portar transpiração, tão bem treinado a me precaver, calçava os tênis que podiam ser queimados no asfalto, tão bem treinado a me preservar, passava um perfume, tão bem treinado a disfarçar o cheiro do sono, me olhava no espelho e via um menino de blusa velha, calça velha, sapato velho, mas o cheiro era novo e era bom. fazia muito barulho, acordava quem se preocupava em vigiar, mãe desperta,
aonde cê vai a essa hora? andar de bicicleta,
cuidado pra não se machucar. mas eu vou,
cuidado pra não se machucar. mas eu vou. e saía, pegava a bicicleta no pecê, pedalava com força, cabeça leve, coração leve, vento pesado arejando cabeça, coração, tudo dependia da força que punha no pedal, se não forçasse, não iria ventar, se não forçasse, não iria fugir, se não forçasse, não iria. saía, pegava a bicicleta no pecê, pedalava até o posto, enchia os pneus sozinho, todo autonomia, a cara engraçada do borracheiro - que lindo nome, apelido meu sempre foi borrachinha. o irmão, borracha - em ver um menino tão cedo ventando, fugindo, indo. em uma manhã de sábado. pneu cheio, pedais a forçar, muita coisa a fazer: ir nas quadras próximas visitar as árvores, corversar com todas, nenhuma com nome, árvore e pronto, vêm todas do mesmo lugar do mundo. ia, conversava, tocava, abraçava. ouvia cada história, noites perigosas em que era preciso se manter imóvel para não assustar os jovens maconheiros que se aterrorizavam facilmente em serem descobertos; noites solitárias em que a sombra feita pela luz do poste punha em vigília qualquer mocinha voltando de um lugar qualquer, estando todas as ávores, na verdade, apenas descansando de um dia em que não teve muita luz; noites febris em que casais apaixonados se resolviam ali mesmo nas raízes; noites simples em que nada acontecia e que os bichos então conversavam sobre a latência das cigarras; noites de festas tristes em que as cigarras insistiam em cantar a fim de se fazerem casais apaixonados, noites estas que eram quentes; noites de luto quando alguma amiga-árvore se expandia até a fiação elétrica - diziam que seria aparada em breve, golpe narcísico, diziam -, diziam que a amiga devia se tratar com alguma criança, ali estava eu, ouvindo as árvores; noites felizes em que sonhavam com minha visita e minha bicicleta, e eu ria, feliz, também sonhava com árvores, amor recíproco é assim. visita acabada, tornava a pedalar, pedia água para os porteiros que via, da torneira mesmo, não me importo, todos também com a mesma cara engraçada. pedalava, ia até a banca de jornal, o dinheiro ganhado se transformava em muitas figurinhas de um álbum tosco que insistia em completar, dinheiro que era pra ser transformado em um saco de cheetos fedorento. cansado, rumava à minha quadra, chegava à árvore que tomei para mim, apelidada de pau-brasil, sentava em qualquer pedaço de tronco que se faz braço, abraçava, era abraçado, sem força, sem vento, leve e arejado, amor recíproco é assim também. e seguia para casa, triste, sem poder falar do que ouvia, mas guardando a felicidade de ter bicicleta para ventar, fugir, ir em minhas rondinhas.