6 de março de 2014

hermeneuta afetado traduzindo i will wade out de e.e.cummings

antes de se afirmar que a tradução é traição, é bom considerar o compromisso estabelecido entre as partes deste triângulo amoroso. tomemos aqui cada nome abstrato como um nome designador próprio. se o tradutor desliza por entre duas ou mais línguas (a matriz (não chamarei de mãe para não adentrar ao campo edípico) e a(s) amante(s)), sua apreensão do mundo não corresponde diretamente às ideologias e poéticas que cabem a cada uma, isto é óbvio. seu ofício, no entanto, não se assemelha ao do discurso do fiel monogâmico: não é válido aqui esconder os fatos de suas mulheres (ou seus homens) para que guardem uma desconfiança mútua, uma a esperar pelo lugar da primeira, outra de desesperar pela possibilidade de segunda, uma terceira, se houver, na eminência de emergência, etc. o tradutor, antes de ser apaixonado marido e pecaminoso amante, é (ou deve ser) um homem honesto, destes que reconhecem suas virtudes e seus vícios e se comovem a ponto do choro. suas mulheres ou seus homens deverão se interceptar enquanto ele se põe ao trabalho de, se me cabe o perdão do leitor pela redução, verter de uma língua à outra, as salivas com que se engasga ao tentar mais fala do que fôlego. o tradutor é, para dizer de pronto, um silente cúmplice, um mímico discreto. um mudo mal-articulado. se seu produto se aproxima do artesanato, é por saber modelar, a várias mãos, o corpo de sua obra alucinada, que, mesmo não tendo fé ao original, é recoberta pelo brilho viscoso próprio da réplica inaugural (não queremos ofender os plagiários: estes são os verdadeiros cornos resignados). vamos, então, à empreitada masturbatória:

vou ao vau
                  até que minhas coxas rocem como flores incandescentes
Vou suster o sol em minha boca
e saltar ao ar maduro
                                   Plena
                                              d'olhos fechados
para lançar contr'a escuridão
                                   das dobras dormentes do meu corpo
Que entrem os dedos de sutil mestria
com castidade de sirenas
                                       Irei preencher o mistério
                                       de minha carnadura
Vou ascender
                   Depois de milanos
flores
labiais
                   E cravar meus dentes no prateado da lua

em prosa:
tendo o sexo diante de mim, à margem estou e à outra me dirijo. rota corrente, pés oscilantes no leito arenoso, calor do piso incerto de flores. mergulho os dedos em mim. abro os olhos, abro a boca. vejo, engulo. cheio. fecho os olhos. descubro meu corpo no negrume inabordado das águas. que me abracem os monstros da morada doce com seus gestos gentis. dúvida: assim tenho a unidade do mentecorpo? assim tenho a unidade do mentecorpo: depois, no tempo das flores labiais, vou com dentes emergir em águas rumo ao luar que incide na superfície plana do gozo.