7 de novembro de 2014

as quatro paredes, duas a duas em paralelas, uma necessariamente vazada para a porta, encerram um ambiente. reboco e algumas camadas de tinta (às vezes dispensáveis) para ocultar a nudez dos tijolos, se houver tijolos. no que se refere à configuração das paredes, um indicador de tristeza é a presença ou não de outro vazamento enquadrado, receptáculo e portador da janela. no chão, qualquer coisa que o revista de modo que dê continuidade ou à composição do ambiente ou ao restante do que é chão casa adentro: madeira, granito, cerâmica, cimento, resina, terra. a decoração do quarto vai ao gosto psicológico e estético do dono (do quarto, mais sintônico; ou da casa, mais distônico): ensaiam-se estantes, bancadas, escrivaninhas pelos vãos; tapetes e almofadas a concentrar conforto e sujeira; quadros, estantes, às vezes espelhos, a ocuparem os vazios das paredes (algumas se escondem em belos envelopes de papel adesivo ou por trás de armários). mas dentre a mobília comum, encontra-se uma indispensável e, portanto, essência e necessidade: o faz de um quarto um quarto é a cama. retiram-se estantes, bancadas, mesinhas, o quarto prevalece. tapetes, pufs, o quarto prevalece. quadros, armários, espelhos, o quarto prevalece. retira-se a cama, o quarto se descaracteriza. o quarto, sem cama, não é quarto: é cômodo. uma cama, sem quarto, não é cama: é leito. perguntar o que se faz em um quarto é perguntar o que se faz na cama. descansar (deitando-se ou sentando-se), dormir (costumeiramente deitando-se e esperando), transar (sozinho ou acompanhado), comer (a transgressão é de ordem higiênica), são respostas possíveis. a relação quarto-cama pode ser atingida em um nível linguístico em inglês: bedroom. em alemão, atinge-se um componente psicofisiológico: das Schlafzimmer. a relação quarto-cama-dormir determina para além do compartilhamento das funções biológicas vitais: aponta-se para a organização libidinal que se exerce em torno da cama: no quarto do casal, espera-se uma cama que caiba mais de um; no quarto do solteiro, espera-se uma cama que caiba apenas um (mas suficientemente estreita para caberem, por vez ou outra, mais de um); no quarto das crianças, camas individuais e pequenas conforme a suposição de sexualidade ali presente. no quarto da empregada, espera-se uma cama desconfortável e de difícil acessibilidade, dado o apinhamento de outras mobílias de utilidade duvidosa, etc. o quarto ascendido à privacidade também é chamado de câmara ou alcova. uma cama, ascendida à ordem pública, chama-se democracia.