10 de junho de 2014

pedro, não se pode reduzir esta cidade à nostalgia. vivi nela tempo o suficiente para poder retornar esquecido dos nomes e lugares, sem compromisso algum com fortuna ou revés. mas soube assim que regressei: essa cidade guarda nossos dias. procurei entre as circunstâncias, entre as luzes amareladas dos postes, entre a receptividade das pessoas, entre as novidades mais óbvias do comércio, entre os silêncios dos domingos à tarde, entre o canto sujo da rua íngreme próxima ao açougue, entre o comum e o inesperado, felicidade. soube da irreversibilidade dos fatos quando descobri que aquela sorveteria, tão antiga, em frente à praça, fechou. e que, apesar da comoção revolvida em minha busca, ainda pude pouco além de andar. esperei pelo pôr-do-sol de rotina o nome perdido em nossas distâncias; visitei os familiares e vizinhos em qualquer tarde para um café saudoso; vigiei o relógio para coincidir brilho e dureza às sete horas da noite quando o céu do nosso gosto começava a ficar azul escuro; desci atrás das possibilidades de diversão sozinho, como quem esperava se livrar do tédio com a limpeza dos azulejos do banheiro; fui à feirinha em busca das bobagens que comemos (continua tudo muito gostoso); endeusei-me com o transe da sua ausência e vomitei o nervosismo todo em textos ruins e refeições semi-digeridas; li pouco por estar à espreita de qualquer movimento nesta cidade; escutei de novo o triste anúncio do circo - aquela entonação engraçada, cirrrcô, cirrr-cô - que você me negou companhia uma vez (desta vez, não fui por fraqueza); antecipei meu desejo de não voltar a esta cidade com uma promessa furtada. perguntaram por você, como se coubesse a mim responder. fiquei triste por dias. no regresso à mediocridade e à decadência corriqueira, percebi que não há diferença lá ou cá. esta cidade habita nosso corpo. hoje, longe, estou abraçado aos hábitos de solidão e inteligência, desamparo e conforto único para me esquivar das verdadeiras janelas que construímos nas paredes de nossas vidas. apesar da cidade, pedro, estamos livres e à parte.