9 de dezembro de 2017

depois de muito vivido, a proximidade com a morte. natural e esperada, luto antecipado de si mesma. a experiência com o próprio corpo é nojo e lembrança de juventude. a pouca autonomia para os dias, atravessados com angústia, tédio, tristeza. o horror de saber que todos aqueles a quem amou e ama estão distantes ou ocupados com suas vidas. os pais já morreram há muitos anos. impossível restituir o valor da vida e se mover invisível prezando por alguma hipótese de futuro. não há futuro. há pequenas paranóias e insatisfações acentuadas, na tentativa de um cotidiano. as preocupações com os outros são um engano para si, gestos inúteis entre carinho e carência. o desinteresse nas coisas do mundo, como se o tempo possível de sentir prazer e se maravilhar já tivesse se esgotado. as confusões com os remédios, com a programação da televisão, com os folhetos de supermercado. a saúde demandando cuidados sem fim diante do único fim iminente, mas não para já. os sentimentos consumidos pela memória, que se falseia em excesso de realidade e histórias mal contadas. a ruína e o vigor simulados para os familiares na busca de trazê-los perto ou mantê-los longe.

ainda não cheguei completamente lá. meus filhos estão grandes; já sou vó e tenho três netas e um netinho que já vindo. não posso mais me movimentar muito, passo meus dias assim inventando o que fazer, acompanhando o povo pelo whatsapp, pedindo notícias, rezando... vou todo dia à missa aqui da minha varanda, mas a fé não tem mais tanta serventia. celebro as visitas da minha e da nossa família, minha alegria é assim, dar bença, prosear. fico aqui teimando contra a minha doença, vendo meu corpo me emperrar cada vez mais dentro de casa. fico aqui teimando, não entrego os pontos, saio com esforço mas saio; é mais fácil vocês virem até a mim do que eu até vocês. a menina do salão vem pintar o meu cabelo, arrumar a minha unha. no sacolão eu ligo e o rapaz já deixa tudo separado, coloca as compras até no carro pra mim. não dou conta de limpar a casa sozinha, arranjei uma mocinha que é boazinha só cê vendo... vou devagar e assim com fé faço as coisas. mas não posso com os sábados à tarde. não posso. acho uma hora arrastada e difícil de passar, aquele depois do almoço. nada na tv: olho pela janela e vai pela rua um carro de som vendendo não sei o quê... baixinho uma galinha de quintal cacareja cócócó... o sol queimando a praça toda, o vento sacudindo as árvores... ninguém na rua, o som do semáforo trocando as luzes. aquele paradão. aí, a vida pesa. pesa. não quero ser preocupação mas sei que preocupo. tá tudo bem, os meninos estão todos bem e é o que me importa. me sinto velha e sozinha... e fico calada. a velhice, joão, é o tempo da vida em que a gente é deus e, sendo deus, fica guardando grave o silêncio... o mesmo silêncio.