12 de outubro de 2016

desconfio do seu ato de fumar. da pressa, da insistência amadora do dedo no isqueiro. da dependência inventada a um vício que o corpo não se dedica. do apelo a uma elegância que é só teatro, ainda que você se deixe enganar em nome de uma apreciação episódica, social. julgo a pouca habilidade em conduzir a fumaça para dentro (língua queimada, tosse, pigarro, voz falhando), para fora (a mão abanando o ar como quem se preocupa tarde). testemunho certo despreparo para a simulação de si. é preciso sabedoria, algum treino, talvez. ser capaz de manejar de modo desapegado mas firme o cigarro, de levar os dedos à boca com o olhar um pouco desinteressado ainda que muito circunspecto. ser capaz de manter a postura estacionada conforme o pensamento cria forma e movimento. sustentar o jeito próprio de se vestir de fumaça, portar uma aura de nenhuma espiritualidade, para então ultrapassar o espírito superficial da coisa, alçar-se leve e sensual à decadência assumida. para usar do cigarro como quem se expõe é preciso ser e estar à altura: sujo, breve, queimando. desconfio enfim da espontaneidade do seu ato de fumar. de resto, sigo acreditando, com olhos ardendo e pulmões irritados.