irmãozinho querido, não sei contar tudo nem se caberia a mim. mesmo que soubesse, não poderia; não por maldade, mas impossibilidade. ouso alguma palavra para inventar uma casca, endurecer a pele. estes versos – meio bobos, meios sérios – querem ser um abraço e portanto servem para revestir o desamparo; logo, são insuficientes. a violência de hoje continuará e a que inevitavelmente está por vir chegará – em seu tempo. é preciso ter um pouco de esperança no futuro ou no passado: ambos são formas do desconhecimento e, como tal, podem dar ação à invenção de um presente que valha a dignidade e a alegria de uma vida colorida, coloridíssima. escrevo para redescobrir, ainda que você já saiba, que as palavras, assim como nós, falham e não são livres – e por isso mesmo sempre podem, podemos algo melhor.
i.
todo sentimento é confuso
confusa é toda infância
temem algum desastre
um perigo não perigoso
papai ameaça bater
por andar na ponta dos pés
mamãe grita e dá tapas
quando vê rodopios e piruetas
nosso irmão para provocar
imita seu gesto sua voz
na escola sorriem
e olham torto
assim é o rosto do mundo
aos oito anos de idade
ii.
sobre o que vai dentro
escondido e à mostra
não há o que se dizer
a mais do que está dito
os joelhos se dobram
e a redenção não vem
o corpo é mapa do outro
vertiginoso tesouro
as linhas as luzes
demarcam o invisível
assim é o nosso curso
apesar dos empenhos em fugir
desde pequeno já nos figuram
a determinação do ódio
iii.
jeitos já são trejeitos ou pintas
a sensibilidade é condenável
um destino de ofensas talvez
também pela cor da pele
dia a dia se refaz e se renova
a contragosto o desamparo
esta infância insiste no tempo
contra a urgência de crescer
de todas as cores comuns
o azul ou a penumbra
iv.
entre o medo
e a expressão
entre o risco
e a folha de papel
entre o desejo
e o lápis de cor
surge à vontade
o desenho:
poças de sangue
caveiras que choram
árvores sem folhas
cigarros garrafas
homens desmembrados
entre cacos de vidro
v.
"você vai morrer
de tanto rir"
"você vai se contorcer
de cosquinhas"
sem supervisão de pai,
brincadeira entre irmãos:
começa em paz,
acaba em chateação
de repente um cai,
bate a cabeça e – NÃO
vi.
uma infestação de toda praga
como se vazasse da casa
para o quintal em meio à noite
por baixo das portas
dentro as janelas fecham
a escuridão nos corredores
três pontos brilham sozinhos
na sala como uma meditação
fumaça rodopiando
ele se rarefazendo
os olhos vibram enquanto um
cigarro queima as horas
à fuga asquerosa dos bichos
se levanta sorrindo com gosto
papai envolve as cobras na mão
falando nas línguas bifurcadas:
"existem tantos amigos do fogo
enquanto o jardim se incendeia"
vii.
o ruído do balanço aos ares
é o som primevo da felicidade
o mundo é bom e belo
até que descemos o escorrega
os castelos murados
se desfazem com o vento
de repente somos adultos
vida e gangorra se assemelham
no fundo do bolso guardamos
um pouco da areia do parquinho
viii.
dorme, irmãozinho
deixa vir o descanso
banho tomado
dente escovado
brincamos muitos anos
nestes curtos poemas
que o sono ceda
aos sonhos estranhos
experimenta este chão
difuso e movediço
enquanto o corpo repousa
e a alma redesenha os fantasmas
deixa o pesadelo sair
de dentro do armário
vem ele todo monstrengo
contar o que sabe para nós:
"o segredo são os ursos, os lobos"
ou "é tudo coisa da imaginação
rugindo rasgando devorando"
mentira e verdade são uma só
descoberta logo ali:
somos nós o bicho-papão