decidir como que teleguiado
por um saber que não se sabe
contra a certeza da causa
vale nenhum arbítrio
à espera de um fim
fazer de si um meio?
23 de maio de 2024
1 de maio de 2024
o terreno foi comprado por um ricaço da cidade; o espólio, partilhado entre os filhos. será mais um empreendimento residencial para a classe média (espaço kids, área gourmet, academia, ampla varanda, cozinha conjugada à sala, banheiro social, suítes enormes, móveis planejados, porcelanato a rodo e, muito separado e bem à mineira, quarto de empregada). terá um nome aburguesado e estrangeiro, grand ou ville alguma coisa. no hall de entrada, próximo aos elevadores, poltronas desconfortáveis e uma imagem de nossa senhora de fátima sobre um aparador muito moderno. as garagens estarão repletas de hilux cabine dupla de homens tristes que usam chapéus de couro e camisas xadrezadas e acordam às quatro da manhã. no entanto, ainda não. ainda:
o passeio em mosaico de cacos de ladrilhos e restos de revestimento formando linhas mais ou menos retas preenchidas por sequências desordenadas, com matinhos já crescidos entre a rua, a calçada e a fachada. à direita, os portões brancos mais uma placa enferrujada, como um tapume, onde era a garagem. em toda sua extensão restante, a grade alta e branca, com espetos nas pontas. vê-se, através, a natureza escondendo a história: mato rasteiro persistente, galhos-entulhos de nenhuma árvore, insetos perfurando o solo ou traçando no ar o destino, uma hortinha ao fundo (banana, mandioca) próxima a tijolos, montes de areia, tábuas respingadas e andaimes frágeis. no portão da grade, mistério: uma campainha e uma caixa de correspondências. mistério:
campainha... a quem se avisa a chegada? quem chegaria, senão por meio da rememoração, do passadismo, da nostalgia? há – afeto anguloso – saudade? quem atenderia o chamado do interruptor, as palmas, já muito mortos e espalhados no que fica, mesmo sem se saber, entre filhos, netos, parentes? não há mesa posta, café algum servido, engradado de mineirinho para ninguém. se tocada, a campainha faria vibrar, em algum lugar entre o esquecimento e a urgência, um som típico. aquele, irrecuperável. o que, onde chamaria este som? é possível ouvi-lo fora da ficção, da alucinação, do sonho?
caixa de correspondências... quem ousaria entregar à caixa correspondências, na ausência de uma casa? o funcionário da prefeitura kafkiano, com o carnê de imposto? uma jovem panfleteira explorada, acostumada à rua dos bobos, número zero? quem recolhe os encartes-lixos distribuídos pelo comércio local? o proprietário rico do lote, um amigo de sua família? mais, quem escreveria cartas de aflição ou ternura, dando e pedindo notícias? qual o endereço definitivo capaz de fazer chegar a mensagem, além da oração pouco recíproca e do monólogo sem presença? o que teria a ser dito, além da partilha estendida das misérias da vida, ela mesma nunca celebrada a contento?
restam: incompreensão e silêncio, corpo suado de uma tarde de caminhada pela região, dor no peito e garganta seca (na volta da escola: "vó, só vim rapidinho beber água e ver a senhora! o vô já deitou?". acabava ficando para o almoço), travo na boca, ponto aquoso no canto do olho direito.