acordar um para dormir outro:
fazer a cama para que se faça
o sono de um contra o de outro
dosando calor e contato durante
a noite de vômitos rotineiros ou
de latidos dos cachorros
espreitados pelo portão da casa
até a hora do "vamos entrar?"
eis a companhia tornada hábito
conquistado por estima e cobertor
ou por semelhança de afetos em que
a decadência se soma à idade de um
mais a infelicidade comum de outro
da janela avistamos o céu estrelado
ou a luz clara do quintal da vizinha
presos à cortina para nosso descanso
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dorme enrodilhado sobre si
as patas dianteiras como travesseiro
perninhas magras sob a cabeça
rabo recolhido e servindo de venda
estremecem em seu sono os bigodes
rápidos tremores pelo corpo
longos miados de boca fechada –
com que sonha o gato?
(correndo da seringa de ciclosporina
gatos da rua invadindo seu pedaço
insetos gigantescos sombreando paredes
cachorrões rosnando e uivando
enroscando-se nos panos com que se tampa
solidão em meio aos corredores da casa
tigela de ração cheia de formigas
água velha suja de plumas)
(à porta do supermercado
um mendigo de pernas amputadas
rastejando imundo atrás de mim
cola-se à minha perna esquerda
me apalpa buscando por moedas
e por fim morde violento meu pé
vingativo diante da minha mentira
de dizer que não tinha trocado)