20 de agosto de 2024

 "[...]
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
[...]
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
(Alberto Caeiro, "Quando tornar a vir a Primavera")


ainda que se repitam ciclicamente
os fatos são à revelia de si mesmos
sempre torna novo cada acontecimento
nexos e sentidos são artifícios
contra aquilo que impera renovado
alheio à verdade e à história

não há choro da primavera semelhada
à gente (o caçador caça a si mesmo
à espreita dos farfalhares da imaginação
a caça ignora seus dias suaves) no entanto
diante de novas flores e novas folhas verdes
chora-se – e a ausência do amigo se refaz

2 de agosto de 2024

os dedos apertam a si:
pausa diante do salto
baque surdo adiado
busca finda enfim

ação mórbida alguma:
um poema serve para
quedar-se sem ruídos
muito higienicamente

letras se aproximam:
numa página branca
clausura ou expansão
cortam onde não falo

visão sem percepção:
sideração e luz
o corpo retalhado
dor precedendo o sono