26 de fevereiro de 2025

longe do centro, do progresso contrário à saúde
ruralismo ingênuo que ignorava a si mesmo
ao gosto dos fenômenos se espalhava algo de natureza

num vale arborizado corria um pequeno córrego
mato alto por muito tempo quase intocado
pela grande indiferença se fazia morada do sol e afins

a proximidade mais ou menos respeitada
como se fosse não afetada pela cidade
coexistindo com os cafezais viciosos logo ali

(fica estabelecida, pela prefeitura desta comarca municipal, a circunscrição desta região em que cada rua fixa um pássaro
correspondente, atravessada por uma avenida de mesmo teor, para empreendimentos e fins de comércio e moradia;
a preservação do meio ambiente e da fauna e flora locais será tratada em momento oportuno)

estrada de terra batida picando o cerrado
piche e manilha e tem-se trânsito e água encanada
a chegada tímida mas definitiva dos postes enfileirados





cercas criam lotes que criam casas que criam pessoas
obras poeirentas que se querem rápidas e minimalistas
numa reprodução idêntica de sua própria monotonia

escritórios de soluções para o seu negócio, depósitos suspeitos
oficinas de implementos agrícolas, lojas agropecuárias, corretoras de café
galpões de logística sem placa de identificação, espaço instagramável de eventos

tratores e colheitadeiras no mostruário, pivôs aspergindo nuvens vermelhas
padaria tudo-caro, box de crossfit, concessionária de picapes (obviamente)
armazéns empilhando e ensacando grãos, caminhões compulsivos circulando

paisagem cenográfica de montes polvilhados de antenas
verde tornado cinza na serra queimada do cristo redentor
porque um casal decidiu soltar fogos num chá-revelação

ao meio-dia sistematicamente desfila um carrinho de picolé
enquanto um idoso se derrete caminhando e buzinando para ninguém
cachorros de rua cochilando nos montes de areia e brita





um galo abre a madrugada como se fosse hora
chamando para a existência aqueles já acuados
verdadeiramente nativos por muita insistência:

uirapuru, tucano, sanhaçu, pardal, periquito, juriti, patativa, arara
beija-flor, pintassilgo, gavião, bem-te-vi, flamingo, inhambu, garça, asa-branca
andorinha, papagaio, codorna, sabiá, joão-de-barro, cardeal, araponga

de manhã cantam um pouco da morte do mundo
tarde de calmaria e descanso nos fios da rede elétrica
corujas guincham e assustam o guardinha da ronda à noite

quero-queros buscam buracos na grama para novos ninhos
juritis chocam entre as concertinas do muro
enquanto lagartos espreitam em loteria os ovos

marcam um andamento inevitável os pica-paus:
do parque: fuga ou morte por excesso de humanidade
os pássaros: sobrevivos por direito natural