23 de fevereiro de 2015

concessão

unhas mordiscadas, boca de ventríloquo, roupas descoloridas, guimba de cigarro, fantasia de cinzeiro cheio, copo marcado de bocas e dedos, ralo semientupido, café de máquina, louça no escorredor, isqueiro com pouco gás, varal vazio, dor de cabeça leve, óculos sem plaqueta, perfume incômodo, plantas sem água, pés apertados nos sapatos, bolo de cenoura sem coberta, curiosidade doméstica, janelas abertas, paredes vazias, mensageiro-dos-ventos em mudo movimento, sorrisos, sorrisos, sorrisos. "mas... e aí?".

14 de fevereiro de 2015

não saberia como começar a dizer tudo que vi, tanto visto por pouco olhado. não pensar havia sido solução temporária para sobreviver à incursão às águas, proposta de viagem que eu mesmo criei, mas que se tornou pesar ao me pensar a companhia inadequada com vistas a uma filiação que não se reduzirá ao sobrenome da família. viajar com uma tia entrando na velhice não é lá inteligência, por mais engajado que eu esteja em reconhecer meu traço como meu. algumas fotos foram tiradas, mas a cama do hotel e o meu humor estavam em desarmonia e não fiquei bem; minha tia não se importou com o estar bem na foto, apenas com o estar. mas lá, engraçado, como lá, em águas de catarata, pude também me cegar um pouco pela circunstância. nos parques, vários quilômetros a pé para se aproximar das quedas, água-grande, tanta gente a ver e a fotografar, optei por não registrar o momento, mas, palavra, tanto que 'catarata' me foi saltado aos olhos assim que a opacidade das águas brancas, o barulho do choque com as pedras, foram pensados. não enxerguei senão água fora e dentro dos olhos, pude me emocionar como qualquer ser humano diminuído à sua real condição. "mas mar?, tão longe daqui", pensamento rápido de que "água é tudo igual" para justificar a remissão do som. nada. sem conforto: água em queda é tão valioso quanto água que vai e vem, preferi não me dar às comparações injustas. chorei quando na garganta do diabo: depois de vencer a insegurança de andar pelas plataformas de metal e abrir mão do imperativo de olhar, fui firme rumo ao lugar que por dentro me referia como 'aquela cena do filme' porque podia jurar um acontecimento, para além de algo que se dissolveria naquela garganta, sabendo da impossível dissolução de afetos em água, outra prova fracassada do que é o recomeço. um grupo de turistas orientais, não saberia dizer se eram ou japoneses ou chineses ou coreanos ou etc., começaram a rezar em coro. qualquer sagrado é reconhecível mesmo em língua desconhecida. o profundo se transmite mesmo assim. inesperado como eu estava, não resisti ao clichê e caí minha própria água.

6 de fevereiro de 2015

de cisão

um a menos
para
um há mais.