28 de outubro de 2015

desce daí
pose pra quem
o reino do carão
é aqui embaixo
mais real que esta prisão
de feridas
masculinas
estátuas de si mesmas
desce daí
sem medo de lâmpada
do armário surdo
uterino
da voz de dentro gritando
viado
viadinho
desce daí
promessa do submundo
do ralo abaixo
pela ciência higiênica
assumir uma identidade
todos diferentes
tão iguais
virados
invertidos
desce daí
ninguém deixou de ser gente
homem macho
mulher fêmea
tesão impossível
por uma verdade
simples e honesta
apesar de todo o dinheiro
o amor ainda não tem preço
mas entre nós se aceita cheque

3 de outubro de 2015

contundência

1. lesão ou contusão causada em um corpo por batida ou choque;
2. dureza, peso; força impressa no ato de descarregar;
3. sofrimento gerado pela agressividade ou violência;
4. decisão ou firmeza.

vejo de longe o conferencista. não consigo escutar com precisão devido à distância entre a platéia e a mesa, levando também em conta minha posição na platéia e meu já desinteresse na mesa. a mim chegam somente alguns ruídos sonoros e o silêncio de profunda pose de compreensão dos que conseguem ouvir ou fingem. escuto então o que vejo: um senhor grisalho a deixar papéis e canetas caírem no chão enquanto espanta do ar o ar. um professor pós-doutor titular emérito aposentado a aparentemente fechar os olhos e a contrair a boca e a arear o nariz (as abas distendidas). o polegar e o indicador fechados em um círculo, os outros dedos esticados, a mão perpendicular ao eixo vertical do corpo em um movimento descendente. descubro então o que vejo. um leão. rugindo, rugindo.

2 de outubro de 2015

o george michael não faria
essas coisas tão absurdas
de dançar sem gosto
de jogar com amores
não faria não tentaria
transgressões nem desafios
sem uma intenção inteligível
bem elaborada a mensagem
pela cintura e pelo corte da barba
futurista e penteado
couro verniz látex
sem medo do ridículo diria que
but if you're looking for fastlove
if that's love in your eyes
com remorsos de um passado
privado mas público

o george michael não faria caso
dos sofrimentos das despedidas
dos olhares prolongados
muito compreensivo com os desencontros
muito apegado aos cantos de parede
por fim curaria a si sozinho
me escreveria cartas de desculpas
em que fingiria umas verdades
apenas por puro apreço estético
entregaria na minha porta
black-tie e rosa na boca
dizendo que se eu quisesse
se eu quisesse
a gente podia sair para jantar
ou largar tudo e velejar
ou perder a tarde num motelzinho

o george michael não faria questão
de saber o que se passa
no mundo ou nos noticiários
sendo o homem frágil que é
ocupado com a própria sensibilidade
estaria entre cordas e correntes
amarras de um coraçãozinho delicado
não gastaria tempo buscando entender
o que é quem é como é por que é
mais preocupado em existir e viver
sem muitas profundidades ou filosofias
mas sempre disposto e em conjunto
casal trisal bacanal igual entre iguais
único jeito possível ou talvez ainda mais
os excessos sem dimensão do pior
sob o globo espelhado? ainda melhor

porque o george michael
este deliciosamente inventado e meu
de vida doméstica e fantasiosa
chão limpo geladeira cheia choros de madrugada
dancinhas e joguinhos cristalinos
só liga para mim
pra cantar e dizer com clareza
cedendo cintura e barba
guilty feet have got no rhythm
sem silêncios ou olhares dúbios
que ainda está disposto
(e muito) apesar de
me espera paciente
todo próprio buracos em flor
sem black-tie
nas mãos a rosa rígida