18 de outubro de 2020
10 de outubro de 2020
17 de setembro de 2020
autorretrato
à espera de um ato libertário
(expressão de amor próprio?)
este registro do impossivel
do mutável por excelência
vem dar a ver a si
em exibicionismo da abjeção
e fixação fiel do espírito
construído lentamente pelos anos
nada porta o gesto familiar
além da semelhança irretocável
que as linhas encerram
os outros baixam a voz e dizem "são eles"
eis a anti-história a ser traçada
a despeito da nossa incompreensão
nossa, que a ela estamos referidos:
clamante o olhar que se resigna
à escolha da própria contingência
acusador o nariz ossudo e boleado
que aponta sem o auxílio das mãos
emoldurada a boca por uma barba (signo
de descuido ou novo erotismo)
as palavras se silenciam no nó da garganta
à imagem de um objeto que comunica
o escuro desejo de um eu a se dissolver
indiscreta é a dobra das pálpebras
que não arredondam as intenções
penteados estão os cabelos grisalhos
assim se emoldura a violência eterna
definida por meio do rosto
esvaziado e imóvel de nosso pai
12 de agosto de 2020
homenagem
o tributo ao que não se vê
duremos até que a comunhão se faça
e desponte nos rostos o horizonte
ainda nossos e quentes
movamo-nos a esta estela
que fixa o ausente refletindo
o mundo avesso dos céus
e não cintila contra o fogo
nos recolhamos mais
ainda guardados e devagar
à compreensão do pranto
umedeçamos a terra com
licores elixires águas perfumadas
pousemos o colhido da terra
de volta aos pés da terra
abramos bem os olhos para
obter das sombras o lampejo
tatear do mistério a resposta
vir à luz outra luz
afirmemos os votos
à soberania da memória
não escapa o mal
lembremos daqueles
que tiveram suas cabeças
vestidas com o véu
da noite e seus corpos
resfriados à pedra
pelos ventos mínimos
sorvidos de volta
iniciemos agora
o culto ao silêncio:
22 de julho de 2020
para na porta do ouvido
não se reconhece como dito
não parece palavra
não é palavra
não se escreve
ausentes texto ou mensagem
é dito sem saber que se diz
não há som boca sentido
toma forma contra o real
surge anterior ao silêncio
como um ruído branco (ouço)
uma voz destacada do corpo
que diz a si mesma
em timbre puro, não mudo:
há algo além que não
espelho do mundo
29 de maio de 2020
em feixes retangulares o retalho impossível
no chão um mosaico irregular e temporário
se desenha pelo tapete outro tapete
iluminados nos banhamos como quem se cobre
dos destinos do mundo natural – apenas existimos
e os gatos olham e piscam sem suspeitar
(à noite incandescem as luzes domésticas
rente às janelas o tempo passa à deriva
os sóis descem à paisagem dos apartamentos
perguntamos acima e desde antes apartados
pelo nosso insistente erro ou engano humanos –
no frágil pano cósmico se trama nenhum desígnio
longe responde certeiro um sorriso prateado de foice)
21 de maio de 2020
6 de maio de 2020
praia do morro
I
segurando no meu ouvido a concha retorcida
que na mesa de centro da sala da minha tia
decorava a casa – meu primo
"reconhece esse barulho?" (cf. Bruna Mitrano, "moro a 70km do mar")
pela primeira vez ouvi o rumorejo
por aquela boca de nácar casa de nenhum molusco
"é o mar" "como é o mar?" perguntei como se
ao que meu primo me apresentava
fosse explicável de outra boca
à graça da minha razão de criança
"ah, o mar... é o mar" "assim não"
invejava o queimado na pele daquele que
testemunhava as férias na praia de jacaraípe
em serra no espírito santo onde sua mãe possuía casa
"o mar é perigoso" "como?" assim tinha de ser
pela espuma raivosa pelo cheiro dos peixes salgados
pelas maldições lançadas na areia
como eu imaginava mas não sabia
"o mar... mata" sim – como matam
os carros as doenças o desgosto a velhice
"como?" "com a força da água" sim a força da água
saindo das torneiras das hidrelétricas
dos bocais das piscinas da ponta
da mangueira pressionada com o dedo
"como?" "o mar é onde as pessoas vão para morrer"
longe da linha que demarcava e se perdia
entre azul borrado e verdadeiro céu
era o mar massa gigantesca que a tudo toma
e também casa das pessoas que morriam nele
por vontade ou desengano
"como elas morrem?" "pela boca,
como os peixes... não essa" e pousava
a concha de volta à mesa me deixando imerso
nas minhas poucas experiências doces ou cloradas
no olhar estático dos que se afogavam
contra a imaginação e o jogo de palavras
eu me aborrecia por não saber do mistério do som
reproduzido em um objeto-extensão
não saber dos desejos dos que poderiam como nós
morrer engasgados por alguma sede
II
verão-janeiro de 2000
como toda família mineira
passeio em guarapari na expectativa de descanso
as férias transformando os dias em lazer ou trégua
fora do claustro dos prédios da cidade
realização do suor do trabalho de mamãe e meu irmão
por fim iria pela primeira vez à praia
assim seríamos provisoriamente outros
as pessoas felizes e douradas que víamos
nas novelas da globo ou nos filmes de fim de semana
sob o império do sol estávamos todos equipados
cadeiras de praia cangas toalhas sacolas
nos corpos sundown óculos shorts chapéu
sobre o escaldo da areia a vida litorânea se desdobrava
os ambulantes oferecendo suas mercadorias enquanto
outras famílias desconhecidas se cumprimentavam
em busca de algum vínculo comum "ô, cêstamémsãodmins?"
respirávamos fundo e sentíamos o mundo tal
qual um acúmulo de calor e brisa – enquanto distante
um barco ou jet ski ondulava a paisagem sossegada
éramos à beira inundados pelos cheiros
alga peixe limão cerveja queijo coalho braseado
abaixo dos coqueiros as novidades eram caranguejos gaivotas
nos pés torrados cutucavam pontas de conchinhas pisadas
finalmente perto do borbulho do murmúrio
emergiam de outras águas meu primo a concha o som
eu sentia a pele ardendo nas mãos autoritárias do sol
como uma resposta às perguntas impossíveis que fiz sobre
o perigo que poderia dar e receber o mar
receando tímido como iria ao mar – e o mar a mim
quis também ser um novo animal unido à concha e
fazer jus ao sentimento oceânico imposto aos sentidos
– pela dissolução quis me perder como parte do todo
assim como reproduzia o som ecoado na mesa de centro da sala da minha tia
quis rir de volta dos jogos do meu primo
eu transformado em molusco compreendendo
que o mar sova salva e pune todos com água e sal
segredo e força da água volumosa diante de nós
enquanto testava o pé nas espumas e intuía algum fundo infinito
investigando o repuxo da morte o desejo de não me afogar
III
em revolta contra a grandeza e diante da necessidade
de iniciação à ordem dos que conhecem o mar
da profecia da euforia da alegria imaginadas
decido dar corpo às águas salgadas pela primeira vez
me fazer espumoso-líquido – salgar e empanar a pele
ir ao mar e o mar a mim como num segundo batismo
executado sem ocultismo e à luz do dia
guiado pelo barulho da concha na memória e pelo estrondo
das ondas quebradas – bebo da água que aperta o céu da boca
sob o céu externado mergulho tomo caldinhos e brinco
nas proximidades do nosso guarda-sol
onde eu brincava à vista dos meus – um acontecimento
uma banhista se viu surpreendida nas águas
uma garra de cinco peixes a roçarem os seus tornozelos
como se buscasse grudar um corpo ao seu corpo vivo
vivíssimo e nadante que se esbarrou em um cadáver
um homem diziam dali desaparecido há quase uma semana
que pescava junto às pedras da encosta e havia por
acidente se deslizado e respirado água imensa
como um peixe que busca de boca aberta o chamado
torna sempre ao mar o que é do mar
vasculhado pelos bombeiros ao horror da moça
abraçada pela mão cadavérica que quase nela se fechou
eu me via longe da sala da minha tia mas devolvido ao riso do meu primo
diante de um afogado um afogamento maior
como é o mar – sim – mas o que é o mar – o que é o mar?
onde estava o silêncio pousado na mesa de centro para diminuir o marulho da morte
mamãe me cobria com uma toalha (ninguém sabia francês
para jogar com mer mère e desfazer ali os excessos)
e me murmurava "acabou por hoje", "já vamos embora"
dessalgado o corpo pelo banho de chuveiro e tendo mamãe passado
pasta d'água nas minhas costas insisti ainda em alguma razão
para conter a graça e o medo de mar-mistério-morte
ausentes a concha e meu primo – a primeira vez à praia lecionava
o mar é a morte o mar é um cemitério o mar é o mar
eu quebrava e ecoava eu conheço o mar eu conheço o mar
à noite esclareci a deus que não era molusco e confessei
que não compreendia como aquilo tudo chegava à sala da minha tia ou de lá até mim
rezei três pai-nossos contive água num copo e a bebi devagar
deitado antes de dormir por precaução aos dedos de peixe calcei meias
19 de abril de 2020
exercício machadiano
vale nutrir à pena a seiva farta
de tinta, terra preta mais textura?
cuidar raiz, texto, com verbo, ar?
quais temas em botão hão de dar voo
aos ideais de candura e pureza?
a infância, cristo, os deuses, os louros,
as estrelas, o azul, a beleza?
dias gastos de frente à folha em luta,
flor, céu... pena! oh! é tempo ser fruta!
de quais pétalas, versos, está prenhe?
que as guerras tão germinadas aprendam:
não há livro nem obra que lhes valha:
"perde-se a vida, ganha-se a batalha"!
5 de abril de 2020
Das considerações sobre o poeta dormindo, de João Cabral de Melo Neto
contra a realidade
não há método ou tese
e os espíritos
com ou sem ciência
vagam dormindo
guiados ao mínimo esplendor
pelo real insone
I
1.
o sono é o que
o sonho não é
o sono não sonha
poemas, antes
os condiciona
o sonho não acorda
poemas, antes
os conforma
2.
afastar-se dos ruídos
afofar os travesseiros
embutir-se nos lençóis
dosar da noite o calor
arranjar-se no colchão
esperar pelo salto
a despeito dos tratados de versificação
deixar de ser poeta
e ir à massa dos poemas
II
1.
o sonho é notícia vulgar:
interpretado ou traído
conforme o simbolismo
esperançoso ou agourento
(perde assim seu peso
de enigma ou tempo)
o sonho é obra particular:
se recria, a cada afeto contado,
como um poema incessante
que se escreve de olhos fechados
(a serviço da memória que
se adianta, apesar da história)
2.
para criar um sonho
letras e ideias
para escrever poemas
cobertor e travesseiro
3.
às vezes há pesadelo e
o sonho perturba o sono
às vezes há gozo e
acordamos eriçados, remelentos
as interpretações do sonho
estão nos jornais nas loterias
os remédios para o sono
nas farmácias nos livros
4.
se o sono é trampolim
o sonho é piscina
o exercício do corpo
imprime a realidade
dormindo nos dividimos
entre águas corridas
e tremores involuntários
ressonamos e agitamos
braços e pernas
como nas aulas de natação
III
1.
reiteradamente imita
o sono a morte
desfaz-se das palavras
dos souvenirs
dele, resta
a ausência
dela, a mudez
2.
o sono é corpo adormecido
o sonho é alma acordada
à simulação da eternidade
ambos se distraem, confundem
enquanto estamos deitados
3.
o sonho é uma defesa
do sono:
à ação do sono
não há ação contrária:
a vigília é um estado
onírico por excelência
4.
corre o rio da madrugada
ditando um poema que se escreve
às avessas no homem que dorme
se afoga ele em outro tempo
bebendo o sal do sonho
ensopando com febre os lençóis
contra nenhuma resistência
se se acorda vem o poema
à boca com sede dos nados
sorvidos os versos e já escritos:
junto à calmaria sem hora
despertado o corpo ainda rente
ao sono (o copo d'água logo ali)
o homem comum se torna poeta
5.
este chão movediço cercado de mato
as horas ladrilhadas no quintal
o ruído da chuva oblíqua ou seria outro som?
o corpo cimentado à cama ou à porta de todas as casas
em um terreno não cartografado mas que conheço
a visão borrada e distorcida do alpendre
faz-se um mundo imaterial plasmado dos escombros
do claustro enfim arejado surge a vida profunda
as ações se superpõem vagarosas ou imediatas
estou junto a meus familiares todos sem rosto
pisamos em falso no chão firme da casa da roça
ouvimos o chuvisco da tv desligada à hora da janta
vivemos muito para chegar a esta cena imóvel
as luzes delineiam o pasto devastado à direita
meu vô acena de dentro e nos convida para o café
tão bonito luzente de chapéu e há anos soldado à mesa
6.
uma palavra é estrangulada
os lábios se torcem
os olhos tremem
o rosto serena
você dorme
adentro se move seu corpo
à paisagem interna se observa o rasto
balbucia-se a língua das coisas
as águas tornam desejos ingênuos
de seus afetos já mareados por outros desejos
os traços se perdem nos objetos
o pensamento está rente à línguagem
nenhum gesto cerca os sentidos
nesta língua feita de espasmos ou não sons
do que sempre resta logo ali você descobre ser
IV
1.
não se desce a um poema
a um sonho não se sobe
o sono predispõe à poesia
e o bom poeta dorme
(um poeta insone
apenas faz versos)
2.
cerrados os olhos
no mistério se penetra
ressoa do sono a voz
do escuro ao poeta
como num exercício
ainda sem metro ou imagem
os versos um a um
se cantam e são cantados
3.
o som do sono prolonga-se
como um mantra um tambor
a voz do homem falando
ao abismo e ressoando: /'sõ:nu/
4.
por esmero e estilo
contra as horas de conflito
diante da folha em branco:
um cochilo e o verso nasce
ainda que sonolento
com bafo e despenteado
V
1.
dorme-se para fugir
do medo do tempo
e sua passagem
a conta-gotas
ao eterno
dorme-se para revestir
o nebuloso de uma ordem
e sua fumaça envolve
um corpo que se desfaz
à tranquilidade
2.
e aqui temos uma cama box um e noventa por dois metros
king size colchão com molas ensacadas individualmente
tecnologia turn free e tratamento antiácaro
densidade confortável para a coluna e a retidão de vossos versos
vem com conjunto de travesseiros antirronco de biolátex fáceis de lavar e sempre frescos como a arcádia
(recomendado por fisioterapeutas, ortopedistas, tratadistas, filósofos, conversadores e polímatas)
a qualidade de vosso sono será incomparável à grandeza de vosso cantar
as incursões ao submundo serão todas registradas pelas espumas autoajustáveis ao peso de vosso corpo
pela vossa simulação da morte garantimos ressurreições diárias de restauração e esclarecimento
esquecei a catábase a anábase a velha forma o dossel o metro viciado o mosquiteiro o soneto proust joyce mallarmé
as cabeceiras barrocas de arabescos não portam mais os ares ocultos dos grandes feitos dos séculos passados
os estrados carunchados não sustentam mais o fardo parnasiano e penumbrista das tradições literárias
pois asseguramos que nesta cama nascerão as novas gerações dos grandes homens do futuro mundo antigo
um homero um virgílio um petrarca um dante um camões talvez mais ao gosto onírico de vosso novo reino
nesta cama surgirá o novo gênio do teatro elisabetano sem necessidade de musas mortas ou crises de noites maldormidas
deitará nela o novo romancista russo capaz de cartografar toda alma bidimensional incluindo os afetos dos unicelulares
após uma bela e folgada noite de sono vós poetastro sereis transmutado em poetíssimo poeta poetão poeta-sol
arcos liras cruzes lanças foices fogueiras astrolábios embarcações alavancas moinhos compassos telescópios pêndulos catapultas máquinas explosivas chips de silício criptomoedas nada escapará à técnica de vossa pena
de brinde um jogo de lençóis e fronhas de mil fios cardados pelas moiras proletárias já entediadas com a humanidade
sede vós o grande nome revolucionário libertário panfletário utilitário da eterna contemporaneidade
por apenas cinco mil e novecentos e noventa e nove reais à vista ou doze parcelas de quinhentos reais sem juros
aceitamos dinheiro cartão de crédito ou débito boleto bancário ou vossa dignidade
3.
manifesto contra o mundo: dormir!
para caminhar aos modos
(já que morreremos)
de viver impreterível;
para acordar do sonambulismo
(o bocejo é um ato revolucionário)
e repousar sem sonhos;
pela eterna fixação
(viva o ronco, poesia irrefutável)
do sono em versos!
4.
pessoa sobre o sono português:
o areal absorve o corpo
a espera torna à pátria
ficaram à deriva a Sorte
e o homem, cadáver adiado
sem mais crias
5.
o tempo do Verbo
é o tempo do poeta
(segundo os especialistas,
oito horas por dia)
VI
1.
os sonhos ditam o rumo dos passos
os pés pisando cautelosos a noite
vamos em vão para o que se aproxima
do grão mínimo das coisas
acordamos com sede ainda da busca
ofegantes e com as pernas dormentes
2.
noites em claro lendo
o que se produz no escuro:
novos textos de outrora
letras antigas rearranjadas:
obras escritas por mãos canhotas
sílabas contadas nos dedos
3.
po.e.ma /po.ẽ.ma/ (sm):
registro impossível
em que dormir é a forma de
escrever o desejo de dormir
4.
retornando de alguma escrita estranha
registramos o que cabe à lucidez
sem tomar notas se luta contra o peso
das pálpebras que tornam a abrir leves
por um triz não ficamos suspensos
entre frases soltas e imagens cintilantes
sem ideia alguma de ressurreição
escovamos fora a morte dos dentes
penteamos os cabelos como passamos páginas
limpam-se os rastros do corpo como
varre-se uma biblioteca
damos de preencher ao estômago como
quem busca nos livros algum pertencimento
vestimos nada que lembre a mortalha
esquecendo que a contracapa da pele é terra úmida
durante o dia se distrai do encontro com a noite
cansados nada sabemos do destino ou da morte
até a hora de deitar e ir novamente aos textos
epopeias de várias vidas novelas viciosas
romances sintetizados em microcontos
escritos fugazes dados a olhos cegos
VII
1.
o sono não escreve poemas
não é um utensílio poético
não só se faz poeta por dormir
mas por se dar à noite, aberto
2.
bane os demônios
adestra as éguas
da noite cantarão
outras memórias
teus versos sem horror
3.
batem as patas agitados
nos sonhos que não são sonhos
a angústia se despeja a galope
nas noites de visão e cura
trotam forte os cavalos
rumo àquilo de mais umbilical
– estão se aproximando, ouça –
com olhos injetados e brilhando
27 de março de 2020
i.
todo sentimento é confuso
confusa é toda infância
temem algum desastre
um perigo não perigoso
papai ameaça bater
por andar na ponta dos pés
mamãe grita e dá tapas
quando vê rodopios e piruetas
nosso irmão para provocar
imita seu gesto sua voz
na escola sorriem
e olham torto
assim é o rosto do mundo
aos oito anos de idade
ii.
sobre o que vai dentro
escondido e à mostra
não há o que se dizer
a mais do que está dito
os joelhos se dobram
e a redenção não vem
o corpo é mapa do outro
vertiginoso tesouro
as linhas as luzes
demarcam o invisível
assim é o nosso curso
apesar dos empenhos em fugir
desde pequeno já nos figuram
a determinação do ódio
iii.
jeitos já são trejeitos ou pintas
a sensibilidade é condenável
um destino de ofensas talvez
também pela cor da pele
dia a dia se refaz e se renova
a contragosto o desamparo
esta infância insiste no tempo
contra a urgência de crescer
de todas as cores comuns
o azul ou a penumbra
iv.
entre o medo
e a expressão
entre o risco
e a folha de papel
entre o desejo
e o lápis de cor
surge à vontade
o desenho:
poças de sangue
caveiras que choram
árvores sem folhas
cigarros garrafas
homens desmembrados
entre cacos de vidro
v.
"você vai morrer
de tanto rir"
"você vai se contorcer
de cosquinhas"
sem supervisão de pai,
brincadeira entre irmãos:
começa em paz,
acaba em chateação
de repente um cai,
bate a cabeça e – NÃO
vi.
uma infestação de toda praga
como se vazasse da casa
para o quintal em meio à noite
por baixo das portas
dentro as janelas fecham
a escuridão nos corredores
três pontos brilham sozinhos
na sala como uma meditação
fumaça rodopiando
ele se rarefazendo
os olhos vibram enquanto um
cigarro queima as horas
à fuga asquerosa dos bichos
se levanta sorrindo com gosto
papai envolve as cobras na mão
falando nas línguas bifurcadas:
"existem tantos amigos do fogo
enquanto o jardim se incendeia"
vii.
o ruído do balanço aos ares
é o som primevo da felicidade
o mundo é bom e belo
até que descemos o escorrega
os castelos murados
se desfazem com o vento
de repente somos adultos
vida e gangorra se assemelham
no fundo do bolso guardamos
um pouco da areia do parquinho
viii.
dorme, irmãozinho
deixa vir o descanso
banho tomado
dente escovado
brincamos muitos anos
nestes curtos poemas
que o sono ceda
aos sonhos estranhos
experimenta este chão
difuso e movediço
enquanto o corpo repousa
e a alma redesenha os fantasmas
deixa o pesadelo sair
de dentro do armário
vem ele todo monstrengo
contar o que sabe para nós:
"o segredo são os ursos, os lobos"
ou "é tudo coisa da imaginação
rugindo rasgando devorando"
mentira e verdade são uma só
descoberta logo ali:
somos nós o bicho-papão
10 de fevereiro de 2020
hermeneuta afetado traduz the tyger de william blake
O Tigre
Tigre! Tigre! Que queima, arde
nas selvas da noite sombria,
quais mãos imortais, qual olhar
fabricaram tal simetria?
Em quais abismos, em quais céus
queimou a chama dos seus olhos?
Com quais asas alçou ao sólio?
Qual mão fechou-lhe fogaréus?
Qual ombro, que arte fez torcer
as cordas do seu coração?
Quando este, já de pé (em vão?),
começou a bater? Temer?
De que martelo? Qual corrente?
De qual forja veio tal mente?
De que bigorna? Que miséria
se fechou, fatal, na matéria?
Quando os céus deitaram as armas
e choraram no paraíso,
sorriu, ao ver obra, juízo?
Fez Cordeiro, quem lhe deu ar?
Tigre! Tigre! Que queima, arde
nas selvas da noite sombria,
quais mãos imortais, qual olhar
ousaram atroz simetria?