30 de julho de 2025

juninho

do outro lado junto ao muro, cresce um pé de mandioca, que sombreia a concertina, que, por sua vez, tenta o quanto pode cercar ou concertar o que lhe cabe. julgando ali um bom lugar, sob a proteção de folhas e entre espirais que cortam, surge uma ideia para um casal: gravetos e galhos e pauzinhos, um círculo se monta e se faz e: eis um ninho de pombo. para a curiosidade de todos os pássaros do parque dos pássaros e, inclusive, a nossa. um ninho?

assim começa, inserindo-se na ingenuidade dos dias, o entretenimento natural: pardais chegam perto e dão notícias sobre, canarinhos também, mas pula-pulando e cantando; bem-te-vis dão rasantes e sentem fome, mas não tentam mais do que atentam. nós, da janela, comentamos tudo e agimos: gritos com os bem-te-vis, cocho de canjiquinha e pão ralado, água clorada, porém fresca da piscina. o pombo-pai aparece rapidamente e logo flana, exercendo sua paternagem territorial. a pomba-mãe escrutina empoleirada e arrulha repetidas vezes, tentando entender ou entendendo de fato e deixando a nossa parceria.

durante a postura e a incubação, pombos-pais se alternando nos cuidados do ovo, como são inteligentes, a natureza é perfeita, etc. tão perfeita que nós, muito humanos, observamos e significamos tudo: agora a mãe, agora o pai, o filho já nasceu?, cadê o pai? só estou vendo a mãe aí... será que está triste? saiu pra comprar cigarro e nunca mais voltou, deve estar no trabalho, logo choca e voa para fazer faculdade, etc. observamos e significamos a partir da nossa perspectiva, o que é, afinal de contas, uma incapacidade de observar e significar. ao fim e ao cabo, seguimos observando, enquanto o casal natural resistia à própria natureza, isto é, aos calangos, ao vento, ao frio.

especulações sobre o mundo das aves e projeções biográficas, o tempo age e nasce juninho, o filhote. menorzinho, quando despontou do ninho para nós, com exceção da cara de criança, nos pareceu idêntico a qualquer outra pomba-asa-branca de sua espécie (Patagioenas picazuropatageö e oinas, do grego, "barulho, barulhento" e "pomba", respectivamente; "pcázuró, do guarani, "pomba amarga, amargosa"). acinzentado, amarronzado, esbranquiçado, a depender do ângulo e da parte do corpo. cauda ligeiramente mais escura, quase preta. ainda é silencioso. apesar do amargo de sua espécie, por força dos costumes e opções alimentares, não saberemos seu sabor.

a não ser nossa ficção de gênero em nomeá-lo como macho, é muito parecido com a mãe, o que não resolve a verdade de seu sexo de imediato. ainda assim, juninho é um(a) pombo(a) tão amparado(a) de cuidados, mesmo na ausência instalada do pombo-pai! definitivamente, sua criação será feminina. ainda que mal, pela incipiência de sua infância, já quase age como todos os seus: pede leite de papo, cisca aleatoriamente, estende as próprias asas ainda sem o espelho que lhe é característico, recolhe-se ao ninho, canta um gú-gu-gúu meio tímido, pouco barulhento. ainda não sabe voar, e seus ensaios ocupam as tardes e servem de muita graça; daqui a pouco, quem sabe? por enquanto, juninho cresce e aparece.

o problema: o instituto nacional de meteorologia emite um alerta amarelo de declínio de temperatura com duração de dois ou três dias desde seu anúncio. tais previsões se concretizam em um fim de tarde de segunda-feira com uma ventania forte, que durou alguns poucos minutos, mas o suficiente para sacudir a copa das árvores e espalhar poeira e fuligem... o que resultou, para o desgosto dos varredores do serviço de limpeza urbana e dos afeitos ao asseio doméstico, em vias imundas de folhas secas e casas sujas, quintais e passeios emporcalhados.

o drama: o ninho, pouco guarnecido em sua própria estrutura frouxa, muito frestado e mal coberto pelo pé de mandioca já desfolhado, tombou ainda mais para trás com os ventos, enroscando-se nos galhos ao lado, enganchando-se nas farpas da concertina. nos dias anteriores, com os ventos de inverno, a pomba-mãe havia tentado ser algum peso para gangorrar o ninho de volta ao muro, sem muito sucesso. diante do pé de vento, não houve remédio.

juninho ficou sentado no cimento dos tijolos do muro, aparentemente lamentando que sua casa se tornou porcaria, talvez assustado pela força da matéria mesma que o fez. juntos, mãezinha e filhote passaram uma noite de frio, o que faz confundir sofrimento e natureza. pela manhã, vimos que havia sumido. a pomba-mãe, com seu olhar estático, ficou um pouco ao lado do ninho tombado, emitindo gu-gu-gús, traduzíveis em chamamento e choro. logo voou. da vista da janela, restou o ninho vazio, imprestável e para trás.

no dia seguinte, não sabemos se as outras pombas-asa-branca que pousam por aqui é de fato a pomba-mãe ou o próprio juninho, já mais desenvolvido por ter sido calejado pelas intempéries da liberdade. fato é que se interessam pelo ninho, espreitam e esticam o pescoço, cientes ou não do que se passa ou se passou. fato é que, do nosso lado, o que era um convívio indiferente se tornou experiência, portanto carinho e preocupação. dados os muitos encontros com outras pombas da mesma espécie, todas têm nome e (como é difícil evitar o espelhamento) são, senão em par, juninho, ou uma mãe eternamente em busca de seu filho perdido. intempéries da liberdade.

9 de maio de 2025

às pressas por me prensar entre os minutos ou por qualquer atraso inventado, sem a calma que asseguraria a atenção e a prudência em ir pedalando, às pressas como se contra a noite e pouco amparado pelas luzinhas da bicicleta, com o acúmulo do dia se esvaziando por meio das pernas e do uivo do vento aos ouvidos, às pressas diante dos carros que envelopam o corpo, tão maiores e vorazes, enquanto esta matéria frágil quase ignora a si mesma para fazer movimento, às pressas descendo a rua sem saída da garagem da viação da cidade, ao lado um descampado de mato alto e terra revolvida, às pressas guinchos de corujas e estrídulos de grilos, a beleza sinistra da vista da cidade logo após a hora de maria, chão e ar tremendo pelo motor do trem às pressas vindo, vindo, vindo, às pressas outro tempo se impõe: espero desmontado e à beira – medo e hipnose pela máquina – passar pelos trilhos – sentir sem olhar de frente: vagões se deslocando: buzinas alongadas – freios estridentes – assobios explosivos: quantos? – e sigo.

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pare, olhe, escute. na ruidosa calma que lhe é própria, segue indiferente à sua própria proporção, ritmando sem escutar, como um metrônomo maquinal que se ecoa pelos próprios trilhos. anuncia-se junto ao badalo de sineta em crescendo, em grandioso ribombo de pistões e freios, dando mostras de apertos e alívios de compressões, calmamente. seu conjunto emula qualquer ideia sinérgica de ordem, sequência e união. os trilhos servem de cenário para ensaios fotográficos e metáforas de gosto duvidoso. ainda, os trilhos servem de caminho ou ponto de referência para os geográfica e existencialmente desbussolados, à beira. e o maquinista, iluminado pela luz azul do monitor de seu painel de observações, diverte-se buzinando sua inconveniência, mas mais contido à meia-noite. fosse sangue, seria parte de um sistema sanguíneo-ferroviário que marca o passo da cidade-coração. afinal, funciona como um relógio que conta a si mesmo, aproveitando-se em alongamento espichado de pura horizontalidade, carregando mercadorias e, portanto, delírios de ser parte da ideia de locomotiva de um país. portanto, não é menos do que uma sucessão de vagões, isto é, uma tristeza alegremente cativada em sua alienação, uma síntese ontológica da alma da cidade, um corpo que não dói e em constante trabalho.

25 de abril de 2025

"[...]
Faço pensamentos com a recordação do que el[e] é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
[...]
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nel[e].
Não peço nada a ninguém, nem a el[e], senão pensar"
(Alberto Caeiro, "Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,")

é latente a confusão no sorriso automático
algum desespero escapa do olhar sedutor
posa o corpo de delícias e artifícios
a felicidade se finge num jogo luminoso
no qual o cotidiano se mistura à autoexposição
por meio de frases feitas e amenidades

a imagem não registra a imaginação
não se fazem sinônimos amor e pensamento:
o gosto distraído por se fazer vitrine
não esconde bem o desejo de ser desejado
e a vida mesma não se apresenta como tal:
fulgurante, vertiginosa, obscura, inefável

9 de abril de 2025

revisão

lerolhar de novo
de novo
e de novo

até que surja do mesmo
o novo
de novo

(quando acaba?
trabalho infinito?
pelo em ovo?)

olhos já cansados
leve dor de cabeça
querida desalfabetização, [...]

por fim: o texto pronto
revisado, pecável
higienizado, culposo





eis o leitor, verdadeiro novo:
"por que não um omelete?"
"mas não estão no dicionário"

pois bem: uma ou um omelete? (s. 2g. ou sm+f)
o dicionário não encerra as palavras
no entanto nele fazem casa e descansam

"por que não buscar no ovo
um(a) omelete, em vez de pelo?"
"expressões idiomáticas não vão bem" etc.

água mole, pedra dura
quem com ferro fere com ferro será ferido
leia, leitor, sem gaguejar (veja como é arbitrário), sua razão de ser:

casa suja, chão sujo, casa suja, chão sujo
casa suja, chão sujo, casa suja, chão sujo
casa suja, chão sujo, casa suja, chão sujo

26 de fevereiro de 2025

longe do centro, do progresso contrário à saúde
ruralismo ingênuo que ignorava a si mesmo
ao gosto dos fenômenos se espalhava algo de natureza

num vale arborizado corria um pequeno córrego
mato alto por muito tempo quase intocado
pela grande indiferença se fazia morada do sol e afins

a proximidade mais ou menos respeitada
como se fosse não afetada pela cidade
coexistindo com os cafezais viciosos logo ali

(fica estabelecida, pela prefeitura desta comarca municipal, a circunscrição desta região em que cada rua fixa um pássaro
correspondente, atravessada por uma avenida de mesmo teor, para empreendimentos e fins de comércio e moradia;
a preservação do meio ambiente e da fauna e flora locais será tratada em momento oportuno)

estrada de terra batida picando o cerrado
piche e manilha e tem-se trânsito e água encanada
tímidos mas definitivos os postes enfileirados





cercas criam lotes que criam casas que criam pessoas
obras poeirentas que se querem rápidas e minimalistas
numa reprodução idêntica de sua própria monotonia

escritórios de soluções para o seu negócio, depósitos suspeitos
oficinas de implementos agrícolas, lojas agropecuárias, corretoras de café
galpões de logística sem placa de identificação, espaço instagramável de eventos

tratores e colheitadeiras no mostruário, pivôs aspergindo nuvens vermelhas
padaria de pão ruim, box de crossfit, concessionária de picapes (obviamente)
armazéns ensacando grãos, caminhões abraçados por empilhadeiras

paisagem cenográfica de montes polvilhados de antenas
verde tornado cinza na serra queimada do cristo redentor
porque um casal decidiu soltar fogos num chá-revelação

ao meio-dia sistematicamente desfila um carrinho de picolé
um idoso se derretendo caminhando buzinando para ninguém
cachorros de rua cochilam nos montes de areia e brita





um galo abre a madrugada como se fosse hora
chamando para a existência aqueles já acuados
verdadeiramente nativos por muita insistência:

beija-flor, patativa, uirapuru, arara, pintassilgo, sanhaçu, periquito
andorinha, gavião, tucano, juriti, flamingo, inhambu, bem-te-vi
garça, asa-branca, papagaio, codorna, sabiá, joão-de-barro, cardeal, araponga

de manhã cantam um pouco da morte do mundo
pela tarde calmaria e descanso nos fios da rede elétrica
corujas dão rasantes e assustam o guardinha da ronda à noite

quero-queros buscam buracos na grama para novos ninhos
pombas e juritis chocam entre as concertinas do muro
enquanto lagartos espreitam em loteria os ovos

marcam um andamento inevitável graúnas e pica-paus:
do parque: fuga ou morte por excesso de humanidade
os pássaros: sobrevivos por direito natural

27 de janeiro de 2025

disk-poesia

a coleção moraes-barbosa
lançou em 18 de janeiro de 2025
a versão brasileira de
dial-a-poem, de john giorno

com curadoria de marcela vieira,
o projeto reúne leituras de poemas
feitas por diversas vozes contemporâneas
em parceria com a empresa vivo

os diversos selecionadíssimos poemas
têm como denominador comum o erotismo
tema caro à investigação artística
do badalado multimedia artist

podem ser escutados em todo o país
através do número 0800-01-POEMA
ou, para quem está fora e internacional,
através do +55 11 5039 1344

os timbres das vozes imprimem modulações
outras aos poemas performados via telefone,
complexificando os sentidos possíveis
nesse cruzamento de linguagens etc.

pois bem: sentei-me confortavelmente
reuni a dispersão do meu ser em um ponto,
concentrado para a ligação-experiência,
afinal não é sempre que etc.

barthes intuía o grau 0800 da escrita?
a alteridade de lévinas imagina tu-tu-tu?
o que george bataille acharia do sexofone?
alô, lacan? é claro que sim!

discado o número, celular à orelha,
esforço sublime, sensibilidade aguçada:
a face do erotismo, brasileiramente:
"telefone temporariamente fora de serviço"






frustrado pelo mau gosto da realidade,
então a vida é dura, sem beleza?
sugestão da amiga muito amiga:
"consegui neste número: +55 11..."

descrente e como que por distração,
redisquei. de supetão: arte, à mão:
"flora thomson-deveaux. cabo machado, de
(boca bem cheia), mário de andrade

cabo machado é cor de jambo, (pausa curta)
(um pouco solene e alegre) pequenino que nem
todo brasileiro que se preza. (pausa longa)
cabo machado (voz aspirada) é moço bem bonito [...]"

logo mário? cabo machado? será?
quais seriam os outros, as outras vozes?
cinquenta e quatro poemas eróticos
para cinquenta e quatros vozes erotizadas

eis a obra como um call center de poetas
em que serviço público se mistura à arte
ruminando a velhanova questão:
o artista é um trabalhador? (a artista com certeza é)

não sei se como para um número qualquer
ou ainda para um número de emergência
ligo de novo dessa vez mais esperto
disposto a qualquer excitação:

"horácio costa (grossura, calibre). velhos
(sibilação alongada), de minha autoria
(silêncio, o poema assim se avolumando)
descendo a rua mato grosso, em higienópolis [...]"

não consegui exatamente escutar o poema;
algo como roberto piva de bermuda azul coxeando,
números no painel de um carro que envelhece,
tomie ohtake como tesouro nacional, saramago etc.

parecia uma crônica semipoética (não gostei)
em que comentários anedóticos se misturam
à velhice de um homem (horácio costa gosta?);
a voz (o verdadeiro poema), a voz, no entanto

21 de janeiro de 2025

vem como viria já prenunciada desde antes:
(céu acinzentando salpicado em chuvisco)
idade somada a um coração envelhecido
– corpo enfermo, alma enferma? –
fez ver nas imagens o rastro de um toque,
mancha difusa já muito apegada aos pulmões

contra o gozo dos irônicos e dos tabagistas,
(aura enfumaçada alguma, cilindros de oxigênio)
um último método contra a queda dos grãos:
consumir as horas como um homem de horas
à espera pela visita exata da senhora imemorial
severidade e riso emagrecidos por fim

ainda cronometrando aquilo que passa rente ao tempo
(feixes de sol contra a tarde) para ainda dar ordem:
remédios e copo d'água dispostos sistematicamente
no aparador ao alcance de seus braços-ponteiros –
que se feche o quarto contra ruídos e clarões
como sempre soube: silêncio e penumbra