9 de abril de 2025

revisão

lerolhar de novo
de novo
e de novo

até que surja do mesmo
o novo
de novo

(quando acaba?
trabalho infinito?
pelo em ovo?)

olhos já cansados
leve dor de cabeça
querida desalfabetização, [...]

por fim: o texto pronto
revisado, pecável
higienizado, culposo





eis o leitor, verdadeiro novo:
"por que não um omelete?"
"mas não estão no dicionário"

pois bem: uma ou um omelete? (s. 2g. ou sm+f)
o dicionário não encerra as palavras
no entanto nele fazem casa e descansam

"por que não buscar no ovo
um(a) omelete, em vez de pelo?
expressões idiomáticas não vão bem num poema"

mas água mole, diante de pedra dura
quem com ferro fere com ferro será ferido
leia, leitor, sem gaguejar, o sentido de sua existência:

casa suja, chão sujo
casa suja, chão sujo
casa suja, chão sujo

26 de fevereiro de 2025

longe do centro, do progresso contrário à saúde
ruralismo ingênuo que ignorava a si mesmo
ao gosto dos fenômenos se espalhava algo de natureza

num vale arborizado corria um pequeno córrego
mato alto por muito tempo quase intocado
pela grande indiferença se fazia morada do sol e afins

a proximidade mais ou menos respeitada
como se fosse não afetada pela cidade
coexistindo com os cafezais viciosos logo ali

(fica estabelecida, pela prefeitura desta comarca municipal, a circunscrição desta região em que cada rua fixa um pássaro
correspondente, atravessada por uma avenida de mesmo teor, para empreendimentos e fins de comércio e moradia;
a preservação do meio ambiente e da fauna e flora locais será tratada em momento oportuno)

estrada de terra batida picando o cerrado
piche e manilha e tem-se trânsito e água encanada
a chegada tímida mas definitiva dos postes enfileirados





cercas criam lotes que criam casas que criam pessoas
obras poeirentas que se querem rápidas e minimalistas
numa reprodução idêntica de sua própria monotonia

escritórios de soluções para o seu negócio, depósitos suspeitos
oficinas de implementos agrícolas, lojas agropecuárias, corretoras de café
galpões de logística sem placa de identificação, espaço instagramável de eventos

tratores e colheitadeiras no mostruário, pivôs aspergindo nuvens vermelhas
padaria tudo-caro, box de crossfit, concessionária de picapes (obviamente)
armazéns empilhando e ensacando grãos, caminhões compulsivos circulando

paisagem cenográfica de montes polvilhados de antenas
verde tornado cinza na serra queimada do cristo redentor
porque um casal decidiu soltar fogos num chá-revelação

ao meio-dia sistematicamente desfila um carrinho de picolé
enquanto um idoso se derrete caminhando e buzinando para ninguém
cachorros de rua cochilando nos montes de areia e brita





um galo abre a madrugada como se fosse hora
chamando para a existência aqueles já acuados
verdadeiramente nativos por muita insistência:

uirapuru, tucano, sanhaçu, pardal, periquito, juriti, patativa, arara
beija-flor, pintassilgo, gavião, bem-te-vi, flamingo, inhambu, garça, asa-branca
andorinha, papagaio, codorna, sabiá, joão-de-barro, cardeal, araponga

de manhã cantam um pouco da morte do mundo
tarde de calmaria e descanso nos fios da rede elétrica
corujas guincham e assustam o guardinha da ronda à noite

quero-queros buscam buracos na grama para novos ninhos
juritis chocam entre as concertinas do muro
enquanto lagartos espreitam em loteria os ovos

marcam um andamento inevitável os pica-paus:
do parque: fuga ou morte por excesso de humanidade
os pássaros: sobrevivos por direito natural

27 de janeiro de 2025

disk-poesia

a coleção moraes-barbosa
lançou em 18 de janeiro de 2025
a versão brasileira de
dial-a-poem, de john giorno

com curadoria de marcela vieira,
o projeto reúne leituras de poemas
feitas por diversas vozes contemporâneas
em parceria com a empresa vivo

os diversos selecionadíssimos poemas
têm como denominador comum o erotismo
tema caro à investigação artística
do badalado multimedia artist

podem ser escutados em todo o país
através do número 0800-01-POEMA
ou, para quem está fora e internacional,
através do +55 11 5039 1344

os timbres das vozes imprimem modulações
outras aos poemas performados via telefone,
complexificando os sentidos possíveis
nesse cruzamento de linguagens etc.

pois bem: sentei-me confortavelmente
reuni a dispersão do meu ser em um ponto,
concentrado para a ligação-experiência,
afinal não é sempre que etc.

barthes intuía o grau 0800 da escrita?
a alteridade de lévinas imagina tu-tu-tu?
o que george bataille acharia do sexofone?
alô, lacan? é claro que sim!

discado o número, celular à orelha,
esforço sublime, sensibilidade aguçada:
a face do erotismo, brasileiramente:
"telefone temporariamente fora de serviço"






frustrado pelo mau gosto da realidade,
então a vida é dura, sem beleza?
sugestão da amiga muito amiga:
"consegui neste número: +55 11..."

descrente e como que por distração,
redisquei. de supetão: arte, à mão:
"flora thomson-deveaux. cabo machado, de
(boca bem cheia), mário de andrade

cabo machado é cor de jambo, (pausa curta)
(um pouco solene e alegre) pequenino que nem
todo brasileiro que se preza. (pausa longa)
cabo machado (voz aspirada) é moço bem bonito [...]"

logo mário? cabo machado? será?
quais seriam os outros, as outras vozes?
cinquenta e quatro poemas eróticos
para cinquenta e quatros vozes erotizadas

eis a obra como um call center de poetas
em que serviço público se mistura à arte
ruminando a velhanova questão:
o artista é um trabalhador? (a artista com certeza é)

não sei se como para um número qualquer
ou ainda para um número de emergência
ligo de novo dessa vez mais esperto
disposto a qualquer excitação:

"horácio costa (grossura, calibre). velhos
(sibilação alongada), de minha autoria
(silêncio, o poema assim se avolumando)
descendo a rua mato grosso, em higienópolis [...]"

não consegui exatamente escutar o poema;
algo como roberto piva de bermuda azul coxeando,
números no painel de um carro que envelhece,
tomie ohtake como tesouro nacional, saramago etc.

parecia uma crônica semipoética (não gostei)
em que comentários anedóticos se misturam
à velhice de um homem (horácio costa gosta?);
a voz (o verdadeiro poema), a voz, no entanto

21 de janeiro de 2025

vem como viria já prenunciada desde antes:
(céu acinzentando salpicado em chuvisco)
idade somada a um coração envelhecido
– corpo enfermo, alma enferma? –
fez ver nas imagens o rastro de um toque,
mancha difusa já muito apegada aos pulmões

contra o gozo dos irônicos e dos tabagistas,
(aura enfumaçada alguma, cilindros de oxigênio)
um último método contra a queda dos grãos:
consumir as horas como um homem de horas
à espera pela visita exata da senhora imemorial
severidade e riso emagrecidos por fim

ainda cronometrando aquilo que passa rente ao tempo
(feixes de sol contra a tarde) para ainda dar ordem:
remédios e copo d'água dispostos sistematicamente
no aparador ao alcance de seus braços-ponteiros –
que se feche o quarto contra ruídos e clarões
como sempre soube: silêncio e penumbra